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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Censura

Missionários da verdade – quando calar é civilizar

Sidônio Palmeira
Sidônio Palmeira, novo ministro da Secom, discursa em sua posse. (Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República)

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De repente, a desinformação virou o mal supremo. É o grande inimigo da humanidade, segundo Sidônio Palmeira, novo ministro da Secom. Em tom messiânico, declarou: “Precisamos enfrentar a desinformação neste país. Esse é o grande mal da humanidade. E é isso que tem feito proliferar a extrema-direita no mundo. Ela estava sumida desde o fim do nazifascismo, mas tem estado de volta. Não por causa das redes sociais, mas pela desinformação”.

Coincidentemente, no mesmo dia, Merval Pereira – que já teve momentos melhores de lucidez –, da Globo News, completou o sermão:

“Se a gente acreditar que esse movimento todo faz parte de uma coisa política, que pretende controlar as redes sociais no mundo – e eu acredito nisso –, com o apoio do Trump, e como parte da estratégia do Trump de liderar o mundo político da direita, eu acho que a gente tem de ficar de olho mesmo e tomar todos os cuidados. Tudo indica que há um sistema se formando para levar essa ideia de que as redes sociais têm de ser um território livre de regulação, e isso favorece à extrema-direita. Já favoreceu em eleições passadas, o próprio Trump. E isso é um projeto de poder. O governo tem de levar isso a sério, porque não é brincadeira. É o novo front de uma guerra cibernética.”

Regulação nunca protegeu cidadãos em democracias. Protegeu governos. E o PT, que nunca teve um projeto de sociedade, mas de poder, está empenhado em se manter vivo

Sidônio Palmeira fala, Merval Pereira repete. O governo planta, a imprensa colhe. Aqui, é óbvio, não se trata de combater desinformação. Trata-se de controlar a narrativa. Sidônio faz da desinformação o bode expiatório da extrema-direita. Sua tese é simples: a direita cresce porque o mundo está mergulhado em mentiras. Adivinhem, caros leitores, qual será a solução? O governo dele combatendo “falsidades”. Justo o PT. Regulação nunca protegeu cidadãos em democracias. Protegeu governos. E o PT, que nunca teve um projeto de sociedade, mas de poder, está empenhado em se manter vivo.

Tudo indica que Merval não discorda. Não sei. É muita coincidência essa ladainha. Para ele, a liberdade das redes é o perigo. Segundo sua lógica, o caos da internet alimenta um sistema global liderado por Trump e seus aliados. Não sei se ele realmente acredita nisso. Tudo parece uma cruzada contra a verdade. E, claro, quem poderá deter essa catástrofe a não ser... o governo e a imprensa tradicional? Não qualquer governo, obviamente. O governo certo. Os jornalistas certos. Ou seja, aqueles que Merval autoriza. Merval finge esquecer que a liberdade também dá voz a quem critica a direita. Prefere acreditar que o caos digital só favorece seus adversários. Uma conclusão conveniente.

Sidônio Palmeira clama que a desinformação é o “mal da humanidade”. Ele precisa enaltecer o novo cargo. Enfatizar sua missão. Para isso, não precisava ocultar a fome, a violência, as guerras ou os textos do Felipe Neto. Tudo isso parece menor. No Brasil, o surto de dengue, as escolas sucateadas, a seca no sertão nordestino, gente literalmente morrendo na fila do SUS, o crime organizado e a violência diária são meros detalhes. O grande problema é o que circula nas redes. O discurso de ódio. O pacto entre Elon Musk, Mark Zuckerberg e Donald Trump. O Mal. Sidônio é um missionário da verdade.

O que nem Sidônio nem Merval mencionam é que a desinformação não tem lado fixo. Progressistas woke, extremistas de esquerda e canceladores também habitam as redes. Suas campanhas não apenas desinformam; eles perseguem, silenciam e destroem adversários. O linchamento virtual é um mecanismo de controle bem progressista, a propósito.

Sidônio afirma que a desinformação trouxe a extrema direita de volta, “sumida” desde o fim do nazifascismo. É uma visão infantil do problema – para não dizer mentirosa. O autoritarismo nunca desapareceu. Ditaduras também germinaram na América Latina, na África e na Ásia, e não apenas à direita. Sidônio Palmeira acredita, a fim de fazer média com o novo chefe, que o mal da história só tem uma mão pesada. Para ele, a extrema esquerda não existiu, o narcoterrorismo de esquerda é um conto de fadas.

O que dizer do Khmer Vermelho no Camboja, que exterminou quase 2 milhões de pessoas em sua tentativa de criar uma sociedade agrária ideal? Ou da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung, que purgou intelectuais e camponeses em massa e mergulhou a China em fome e violência? Isso sem falar no camarada Stalin, com seus expurgos políticos e campos de trabalho forçado, que liquidaram milhões sob o pretexto de uma coletivização inevitável, de um mundo ideal conduzido pelo Partido. Tudo isso é o quê, Sidônio?

O controle narrativo não é novo. A novidade está no discurso. Hoje, censura é rotulada como defesa da democracia e do amor contra o discurso de ódio fascista

Na América Latina, a brutalidade revolucionária da extrema esquerda foi uma invenção da direita? Grupos como os Montoneros, na Argentina, e o Sendero Luminoso, no Peru, espalharam terror entre civis. O Sendero, em especial, impôs massacres e execuções públicas – foi para sustentar a democracia? Mesmo movimentos menores, como os Tupamaros do Uruguai, recorreram a sequestros, execuções e ataques a bomba. O pretexto era sempre o mesmo: libertar o povo da opressão, do fascismo e do imperialismo estadunidense.

Sidônio, deliberadamente, ocultou essa página do livro de história. Ou talvez prefira acreditar que só a direita mente e oprime. A história, entretanto, é impiedosa com seletividades. A brutalidade não escolhe lado. E a esquerda está muito longe de ser redentora.

Então, quem define o que é desinformação? Sidônio sugere que cabe ao governo. Merval parece confortável com uma parceria entre Estado e imprensa (conveniente a ela, claro). Ambos ignoram a velha e mais importante pergunta política republicana: quem vigia os vigilantes? O controle narrativo não é novo. A novidade está no discurso. Hoje, censura é rotulada como defesa da democracia e do amor contra o discurso de ódio fascista. Regular é proteger. Calar é civilizar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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