Detalhe da “Anunciação”, de Fra Angelico, no Museu do Prado, em Madri (Espanha).| Foto: Google Art Project
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Recentemente, li um texto criticando o Projeto de Lei 478/2007, cuja ementa dispõe sobre o “Estatuto do Nascituro e dá outras providências”. Não quero entrar no mérito da discussão a respeito do PL 478 e muito menos a respeito do aborto; minha resposta ao problema do aborto está bem documentada no meu livro Contra o Aborto, já em sua sexta edição. O que me chamou a atenção foi a linha argumentativa da renomada cientista Natalia Pasternak. O título do texto é uma pergunta praticamente retórica: Desde a concepção? Vocês já devem saber a resposta. Ela alega o seguinte:

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“Vida humana existe independentemente da concepção. E o que é concepção? Popularmente, imagina-se que ocorra no encontro do espermatozoide com o óvulo, formando um zigoto. Mas um espermatozoide certamente está vivo, assim como uma célula de pulmão. Dá para dizer que um zigoto é ‘mais vivo’ do que um espermatozoide um ou óvulo? Ou que uma célula qualquer do corpo humano? O zigoto não tem como sobreviver fora do corpo, e as células do seu pulmão, também não. A ideia de que existe um momento sagrado da concepção é equivocada. A concepção é um processo.”

À primeira vista, as perguntas que ela apresenta fazem bastante sentido e até parece que estamos diante de uma especialista de verdade, que pretende corrigir a opinião vulgar do populacho, que não sabe nada de ciência. No entanto, quando se analisa o argumento com mais cuidado filosófico, sobressaltam alguns problemas sérios com esse tipo de raciocínio. É nessas horas que precisamos recorrer à reflexão filosófica para nos ajudar um pouco, considerando que a maior contribuição da filosofia para o debate público é clarear o próprio debate.

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A realidade do ser humano não se limita ao ponto de vista do processo biológico

A cientista está correta em afirmar que “a concepção é um processo”. Contudo, para a reflexão filosófica mais cuidadosa, afirmar isso não é o suficiente para sustentar que um embrião não é uma pessoa humana. E por quê? Ora, porque a realidade do ser humano não se limita ao ponto de vista do processo biológico. Natalia Pasternak, que até distingue vida humana de pessoa humana, não conhece o básico da discussão em filosofia. Para ela, e para muitos cientistas, se a resposta à realidade humana não for dada pela ciência natural, logo só pode ser moral ou religiosa. Se é moral ou religiosa, não deve ser levada a sério, exceto se você viver numa teocracia.

Não à toa ela diz que “a ideia de que existe um momento sagrado da concepção é equivocada”. Curiosamente, não há uma única linha no texto do PL 478 a respeito dos fundamentos religiosos do momento da concepção. No documento, a definição para nascituro é “ser humano concebido, mas ainda não nascido”, pois “o nascituro adquire personalidade jurídica ao nascer com vida, mas sua natureza humana é reconhecida desde a concepção, conferindo-lhe proteção jurídica através deste estatuto e da lei civil e penal”. Não há única palavra para a ideia de “momento sagrado”. A cientista criou um espantalho.

A realidade natural do ser humano, constatada pelo cientista em seu “laboratório”, não passa de uma província da realidade humana. Fatos morais não estão abertos ao escrutínio da crítica biológica. A perspectiva da realidade humana cujo referencial teórico é a biologia nunca verá no processo uma pessoa e fatos morais. Só tem “olhos” para os fatos biológicos. Afinal, sempre seremos processo biológico para o biólogo; processo químico para químicos; matéria em movimento para os físicos...

A cientista até chega a distinguir “pessoa humana” de “vida humana”. Silencia, porém, sobre a categoria “pessoa” e o fundamento dos fatos morais, completamente ocultos para as lentes do naturalismo.

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Numa outra passagem, ela afirma o seguinte: “se usamos morte cerebral para definir o fim da pessoa humana, mesmo que seus órgãos continuem funcionando, não podemos usar algo análogo para definir o início?” De fato, a morte cerebral indica o fim de um processo biológico, mas ainda assim não diz absolutamente nada acerca do sentido da morte para os seres humanos. Adotar a morte cerebral para indicar o fim de um processo biológico não implica dizer que pessoas deixam de ser pessoas com a morte cerebral – da mesma forma que nada pode ser dito de entidades biológicas que se transformem em pessoas a partir da atividade cerebral.

E, para falar em nascimento, gostaria de desejar um Feliz Natal do Senhor para todos vocês, caros leitores. Sim, Cristo Jesus desde a concepção.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]