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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Gleichschaltung

Só a “cultura da liberdade” pode nos salvar da barbárie

Hitler durante festival em Berlim, em 1941
Hitler durante festival em Berlim, em 1941: leis para coibir discurso de ódio na Alemanha não impediram a ascensão do nazismo (Foto: EFE)

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No vocabulário totalitário nazista, um dos termos para uma sociedade que não aceita a coexistência plural de crenças divergentes é o Gleichschaltung, que se refere à técnica de uniformização coordenada do tecido social. Gleichschaltung significa literalmente coordenação, sincronização e conformação.  E pode ser resumido no processo de “coordenação forçada”. Noutros termos: para uma sociedade totalitária existir, deve-se eliminar tudo e qualquer elemento que ameace a sua uniformização e autodeterminação. Purificar e destruir.

O filósofo alemão Ernest Cassirer, autor de O Mito de Estado, demonstra que a Gleichschaltung é o princípio geral e o fim dos regimes totalitários. Trata-se da criação artificial de uma atmosfera mítica em que todas as individualidades, modos de vida antagônicos e divergências culturais precisam ser apagadas. É mediante a esse processo de uniformização forçada que as liberdades e responsabilidades individuais já não fazem mais sentido.

A busca de uma “comunidade do povo”, a Volksgemeinschaft pelos nazistas, está diretamente vinculado ao processo de uniformização racial em que todo e qualquer interesse individual deveria ser subordinado aos interesses do Volk, a unidade natural dos seres humanos, racialmente classificados e hierarquizados. Essa uniformização se deu por meio da militarização da sociedade, da exaltação da raça ariana e, consequentemente, da destruição de todos os inimigos raciais, sobretudo os judeus.

A Volksgemeinschaft ariana seria uma espécie de princípio espiritual, a culminância de um esforço histórico feito com sacrifício e devoção. O historiador Saul Friedländer, que escreveu uma obra monumental em dois volumes chamada A Alemanha nazista e os judeus, enfatizou o caráter redentor do antissemitismo nazista: “nasceu do medo da degeneração racial e das crenças religiosas na redenção” e que se tratava de “uma história de perdição provocada pelos judeus e de redenção por uma vitória total sobre os judeus”.

É um imaginário de destruição poderosíssimo, porque nele está embutida a apoteótica crença de que só mediante um império, um povo e um líder — “Ein Reich, ein Volk, ein Führer” — os inimigos devam ser combatidos e massacrados e o destino grandioso do Volk consagrado. O amalgama de técnica e mito político teve um efeito catastrófico.

A pergunta que devemos fazer é: seria legítimo legalizar no Brasil um partido político com essa doutrina de uniformização, redenção racial e destruição? Um projeto nazista é por definição unipartidário, para ser mais preciso, totalitário. Ou seja, não há possibilidade de existir uma “República Nazista”, apenas o culto mítico a um único Reich, um único Povo e um único Líder.

Não se trata de “liberdade de expressão”, mas da mais pura forma de contradição política. Então, sim, legalmente o nazista deve ser proibido de disputar eleições democráticas, porque não fez mesmo sentido sua presença no espaço público. Porém, um liberal que, ao usar a possibilidade de um partido nazista como exemplo de liberdade de expressão, está errado e deve estar disposto a entender os motivos do erro. Se participar de organizações nazistas para sabotar a democracia e destruir inimigos, deve responder na justiça.

Em sociedades livres, a gente deve poder livremente demonstrar para um interlocutor que ele está errado. No espaço do debate público, a liberdade de expressão também demanda um esforço tremendo de liberdade de correção e aprendizado. O estado policial, de terror e censura, que se utiliza do aparado coercitivo para não só corrigir como punir crimes de opinião, não faz parta de sociedade livres, mas de experiências apostas à liberdade, como o caso do Nazismo.

Penso que há uma diferença fundamental entre discutir os limites da liberdade de expressão — e adotar o pior dos casos de intolerância como exemplo — e participar de um movimento intolerante. Uma pessoa que não sabe o que foi o nazismo precisa aprender e a discussão sobre os limites da tolerância e da liberdade jamais pode ter limites. Afinal, não é isso o que o princípio da Gleichschaltung impõe: supressão de todo antagonismo discursivo, destruição de modos de vida?

Ora, não há liberdade irrestrita de expressão sem a capacidade de presumir a responsabilidade irrestrita de expressão. Defender liberdade irrestrita implica defender igualmente responsabilidade irrestrita. A partir daqui começa o dilema nuclear da autonomia do indivíduo no projeto liberal: a distinção entre a autonomia e o poder coercitivo do Estado. Sem uma autoridade política, como devemos corrigir ameaças à liberdade? Paradoxal, mas nem tanto. A mim me parece óbvio que só a cultura da liberdade, e jamais a uniformização promovida pela “cultura do cancelamento”, pode nos salvar da barbárie.

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