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Dostoiévski certa vez escreveu: “Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade”.
Cristo, para o grande escritor russo, autor de obras primas como Memórias do subsolo, O Idiota, Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov tinha Cristo como um ideal para além da verdade oferecida pelo mundo. Aliás, como escreve seu maior biógrafo, Joseph Frank, “todas as principais obras de Dostoiévski dramatizarão a oposição fatídica entre a lei de Cristo e a lei da personalidade”, já que “a vida para ele era, como havia sido para Keats, ‘um vale de fazer almas’, ao qual Cristo viera para conclamar o homem a lutar contra a morte da imersão na matéria e para inspirar o combate pela vitória final do egoísmo”.
Nessas férias, li a magnífica obra de Frank, Dostoiévski: um escritor em seu tempo. Fiquei intrigado ao ver como Cristo foi cada vez mais um ideal na vida e na obra dele. No período da leitura (são 1.180 páginas), ganhei de presente o livro O custo do discipulado: a doutrina da imitação de Cristo, do meu amigo Jonas Madureira. Instigado por essas duas leituras, não poderia deixar de conversar com ele a respeito desse “custo”. Jonas tem um baita currículo na área de filosofia e teologia. É mestre em Filosofia pela PUC-SP, doutor em Filosofia pela USP e pela Universidade de Colônia, na Alemanha. É professor de Filosofia e Teologia e autor de um livro que eu recomendo muito publicado pela editora Vida Nova: Inteligência humilhada.
"Se dissermos que imitamos Cristo, mas nossos atos diferem dos atos dos apóstolos, então já não estamos mais imitando Jesus, e sim uma ideia que fizemos dele"
Afinal, o que significa a doutrina da imitação de Cristo?
É a ideia de que o modelo último da ética cristã é o próprio Cristo, ou seja, é a noção de que cada cristão espalhado pelo mundo deve viver sua vida como um seguidor de Jesus. Nesse sentido, a imitação de Cristo não é um imperativo apenas para os primeiros discípulos – os apóstolos –, mas também para todos aqueles que foram alcançados pela pregação apostólica: “Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo”, disse o apóstolo (cf. 1Co 4,16 e 11,1; 1Ts 1,6; 2Ts 3,7). A imitação de Cristo, como uma vocação para seguir Jesus, é determinada pelo exemplo dos apóstolos. Eles são o primeiro e mais importante modelo de imitatio Christi e, por essa razão, são o critério ético para todos os cristãos, de todas as épocas e de todos os lugares. Portanto, se dissermos que imitamos Cristo, mas nossos atos diferem dos atos dos apóstolos, então já não estamos mais imitando Jesus, e sim uma ideia que fizemos dele. Aqui, atingimos o cerne da questão: a imitação de Cristo não é uma prudência especulativa, mas, pelo contrário, é uma prudência mimética, imitativa. Não posso fabricar uma ideia de Cristo, seguir esse Cristo imaginado e depois sair por aí dizendo que sou um cristão.
Em uma sociedade liberal e secularizada até a raiz como a nossa, por que Cristo ainda deve ser imitado?
No filme Cavaleiro de copas [Knight of cups, 2015], Terrence Malick descreveu, com o lirismo que lhe é tão peculiar, a vida completamente desorientada de Rick (Christian Bale), um ambicioso roteirista hollywoodiano com profundas crises existenciais, que perambula pelo mundo como se estivesse num deserto, sem rumo. O filme não começa com Rick, mas com um fundo negro e com a voz de Ben Kingsley recitando o título completo da obra mais conhecida de John Bunyan (1628-1688), O progresso do peregrino: “deste mundo ao que está por vir, dado sob a similaridade de um sonho, em que se descobre o modo como ele funciona, sua perigosa jornada, e sua chegada a salvo na terra desejada”.
O livro de Bunyan, além de ser uma joia preciosa da imaginação literária do século 17, é a sempre oportuna lembrança de que a imitação de Cristo é dada numa jornada, numa peregrinação. Por isso, não é um mero conjunto de regras para viver bem, mas uma bússola para desorientados, para gente sem senso de missão e sem sentido na vida. O que Malick fez, e fez magistralmente, foi desnudar o vazio espiritual de peregrinos desorientados, que perambulam numa terra estranha, sem bússola, sem rumo, sem sentido. Assim, a pergunta crucial não é se Cristo ainda deve ser imitado, mas sim como, diante do vazio espiritual do secularismo, não imitá-lo.
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É possível reduzir Cristo a um mero modelo ético ideal a ser seguido sem se comprometer com as exigências teológicas e os custos sociais de se tornar membro de uma igreja?
Sim, é possível. Um fenômeno bastante curioso que é o da “adesão à ética cristã, sem compromisso público com Cristo e sua igreja” pode ser visto em alguns adeptos da chamada “nova direita”. Por motivos bastante plausíveis, alguns se tornaram politicamente conservadores. Por conseguinte, alguns deles também se tornaram cristãos, todavia por motivos errados. Ora, se alguém se torna um cristão, o faz não para vencer uma batalha política, mas para vencer o vazio espiritual que atravessa a alma humana. Nenhuma batalha política pode redimir o ser humano e salvá-lo do seu desespero e niilismo. Pelo contrário, pode aumentar o vazio e a angústia. Quando pessoas se tornam cristãs para vencer uma batalha política, elas, na verdade, não se tornam cristãs. Elas dizem-se cristãs, mas não são e nem vivem como vivem os cristãos.
Certa vez, Jesus disse: “O sal é bom, mas, se ele perder o sabor, como restaurá-lo?” (Lc 14,34). O que a metáfora do sal tem a ver com a doutrina da imitação de Cristo? Imagine que alguém que não avalia o custo de tal imitação, comece a seguir Jesus, mas permaneça no anonimato (ou seja, quer ser cristão, mas sem compromisso público com Jesus e seu ensino), na verdade, esse alguém não é um autêntico cristão. É o tal do “parece, mas não é”. Ele é como o sal que perdeu aquilo pelo qual o sal é o que é. Por exemplo, graças ao sal, a carne pode ter um sabor mais agradável tanto quanto pode ser conservada. Mas isso só vai acontecer se o sal permanecer sendo sal. Quando o sal perde sua essência, por mais que ainda mantenha a aparência de sal, não cumpre mais com sua finalidade. Torna-se, por isso, inútil.
Cristãos sem compromisso público são como o sal que não salga, que perdeu sua essência. Dizem que seguem Jesus, mas O seguem do seu jeito e, por isso, não O seguem. Como consequência, reproduzem outros seguidores publicamente irresponsáveis, com um entendimento raquítico ou até mesmo falso do cristianismo, que são incapazes de avaliar, de forma prudente e corajosa, o custo da imitação de Cristo. A negligência quanto ao custo da imitatio Christi não exime os cristãos das implicações decorrentes da falta de comprometimento com Cristo e com sua pregação. No fim, como disse Cristo, o sal que perdeu sua essência deverá ser jogado fora.
"Quando reconhecemos que nossa autenticidade não é fruto da nossa pretensa originalidade, mas da imitação dos nossos modelos, então damos lugar à sinceridade"
Em seu livro, você discute “sinceridade e autenticidade” a partir das obras do filósofo Charles Taylor e do pensador cultural e crítico literário Lionel Trilling. Você diz o seguinte: “Para ajudar alguém a seguir Jesus, é preciso tanto imitar Jesus como resistir à tentação de ser autêntico. Não há espaço para originalidade”. Como conciliar essa mensagem com uma cultura tão voltada para o imperativo individualista da originalidade?
Há algum tempo venho acompanhando algumas importantes discussões sobre a “cultura da autenticidade”, e acredito que essas discussões podem nos ajudar não somente a entender a crise de referência que vivemos hoje, como também a nos dar alguns bons motivos para entender a atual crise do testemunho público dos cristãos. Essas discussões foram praticamente inauguradas na década de 1980 por pensadores como Christopher Lasch, Allan Bloom, Marshall Berman, Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky e Charles Taylor, entre outros.
Qualquer um que tenha lido as obras desses pensadores, sobretudo no período de 1980 a 2015, facilmente perceberá que a discussão gira quase sempre em torno da adesão ao relativismo como uma visão modeladora da cultura contemporânea. Um efeito dessa modelagem é o compromisso religioso de nossa cultura com a autenticidade, explícito sobretudo no enorme desinteresse pelo “outro” e na busca desenfreada por autossatisfação. A atitude centrada na autenticidade tem preocupado demasiadamente esses pensadores e, por isso, eles têm feito críticas bastante ácidas às culturas do relativismo e da autorrealização como responsáveis pelo declínio do homem público. Mas essa reação avinagrada contra a cultura da autenticidade não é unânime.
É nesse ponto da discussão que considero oportuna a contribuição do canadense Charles Taylor. Em seu livro A ética da autenticidade, Taylor concorda parcialmente com a maioria, sobretudo no que diz respeito ao relativismo. Como a maioria, ele afirma que o “relativismo é um engano profundo”. Por outro lado, o filósofo canadense argumenta que a autorrealização entendida como busca por autenticidade não deveria ser de todo execrada. Em sua visão, a maioria dos pensadores tem jogado a água suja do banho junto com o bebê, e por isso se equivocam. No caso, a água suja seria o relativismo e o bebê, a busca por autenticidade. O que interessa é saber se é possível conceber de forma positiva a busca contemporânea por autenticidade.
Segundo Trilling, a chave está em distinguir sinceridade de autenticidade. Se a sinceridade remete à revelação do que quase sempre é ocultado por nós, a saber, os modelos que imitamos, a autenticidade, por sua vez, refere-se à recrudescência do ocultamento dos modelos que imitamos para formar nossa identidade. Em outras palavras, enquanto uma pessoa sincera seria consciente de que sua identidade é fruto da admiração que nutre por outras pessoas, uma pessoa autêntica seria, nesses termos, alguém que tem seu caráter forjado por pessoas que admira, mas esconde essa admiração sob a prerrogativa de que é uma pessoa absolutamente original, ou seja, que não imita nem toma alguém como padrão para viver. Nesses termos, o paradigma da autenticidade é, como diria René Girard, uma mentira romântica.
Você usa René Girard para tratar do paradigma da autenticidade como uma mentira. Qual a importância da obra René Girard nessa discussão?
Usei a teoria mimética de Girard para explicar tanto o equívoco do paradigma da autenticidade como a natureza mimética da imitação de Cristo. A obra fundante da teoria girardiana é Mentira romântica e verdade romanesca, publicada em 1961. Nessa obra, o pensador francês chama de “mentira romântica” o que chamo de paradigma da autenticidade, ou seja, a crença de que é possível sermos autênticos sem jamais termos um modelo, um mediador, alguém que nos cause profunda admiração e que nos faça desejar o que queremos ser. Quando reconhecemos que nossa autenticidade não é fruto da nossa pretensa originalidade, mas da imitação dos nossos modelos, então damos lugar à sinceridade. Assumimos que somos uma complexa imitação daqueles que tanto nos influenciam. Penso que o paradigma da sinceridade é a via da redenção da vergonha que temos por não sermos tão somente nós mesmos. Parafraseando Ortega y Gasset, eu sou eu e os mediadores que imito. Se não tenho consciência dos mediadores que imito, não tenho consciência de mim mesmo.
Há um trecho no seu livro Inteligência humilhada de que eu particularmente gosto bastante: “O mistério humilha a razão humana e a torna ainda mais dependente de Deus, o único ser que conhece exaustivamente todas as coisas”, e prossegue com um exemplo: “A doutrina da Trindade não é uma contradição, mas um mistério que humilha a inteligência humana”. Filosoficamente falando, como um cético (e descrente) deveria entender isso?
Escrevi Inteligência humilhada tanto para crentes como para céticos, para que aqueles encontrem algumas dúvidas por trás de suas certezas e para que estes encontrem algumas certezas por trás de suas dúvidas. Penso que há problemas tanto “na fé que se orgulha de não pensar” como “na razão que se envaidece por não dobrar os joelhos”. No caso do cético, penso que a negação do mistério é fruto de uma compreensão equivocada.
Em seu Ensaios de teodiceia, Leibniz defende que mistério é um homônimo, ou seja, uma palavra que designa duas coisas que, apesar de semelhantes, são completamente distintas. O filósofo argumentou que é preciso distinguir entre mistério como o nome do que é irracional (contra a razão) de mistério como o nome do que é suprarracional (acima da razão). Em outras palavras, enquanto o que é irracional jamais será verdadeiro e compreensível, o suprarracional é aquilo que, embora não seja compreensível plenamente, jamais poderia ir contra a razão.
Lembro-me, agora, de uma interessante comparação que o teólogo R. C. Sproul costumava fazer entre mistério como contradição e mistério como suprarracional. Ele dizia que a afirmação “O livro em suas mãos não é um livro” nunca fará sentido, mas o mesmo livro nas mãos de um bebê, apesar de ininteligível no momento, não permanecerá como um mistério por muito tempo. Para Sproul, o mistério é um elemento legítimo da realidade, uma parte legítima do conhecimento que desejamos alcançar, e, portanto, deve provocar uma reação humilde em nós. Concordo com o teólogo e, nesse sentido, entendo que o cético não consegue dobrar os joelhos porque não consegue contemplar nada que seja maior do que sua mente.
"Do que adianta protestar contra Porta dos Fundos e Netflix como um leão, mas, na esfera pública, fugir como um rato do inescapável testemunho público da fé no crucificado?"
Como você vê a participação dos evangélicos no atual governo – digo mais especificamente com relação à pasta dos direitos humanos? Não é ruim para religião cristã essa cumplicidade com o poder?
Como batista, defendo a separação total entre igreja e Estado. São duas esferas distintas, que devem ser respeitadas nas suas esferas. Isso significa que o Estado não deve se meter nas coisas da igreja e nem a igreja nas coisas do Estado. Por outro lado, isso não significa que a igreja deva ser inimiga do Estado ou deva demonizar tudo que diz respeito à esfera pública. Pelo contrário, defendo que todos, isso obviamente inclui os cristãos, podem e devem participar da esfera pública. A crítica que faço aos evangélicos que ocupam cargos públicos é a mesma que faria a qualquer outra pessoa que usasse a coisa pública para benefício próprio. Como se trata da esfera do Estado, pouco importa se são evangélicos ou não. Há uma vocação pública a ser cumprida e que não é a mesma que um presbítero ou um padre realiza em sua igreja ou paróquia. A confusão das esferas não contribui nem para a igreja nem para o Estado.
Em A democracia na América, Tocqueville diz algo muito importante: “Vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos, à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares constituem para ele toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; existe apenas em si e para si mesmo, e, se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não tem mais pátria”.
Vejo no abuso do poder e na busca desenfreada por poder o abismo que chama outro abismo. Porém, não entendo que a separação entre igreja e Estado esteja comprometida quando um cristão atua na esfera pública. Todavia, vejo sempre traição e corrupção de mãos dadas quando cristãos e não cristãos atuam na esfera pública sem amor pela coisa pública. Johannes Althusius dizia que deveríamos exigir amor e capacidade dos homens públicos. Na falta de capacidade, o homem público deveria suprir sua limitação com a ajuda de outros homens capazes. Mas o que jamais poderia faltar é o amor. Um homem público que não ama a coisa pública é nocivo para toda a associação, seja ele cristão ou não.
"Todos, e isso obviamente inclui os cristãos, podem e devem participar da esfera pública"
Qual é a melhor forma de lidar com programas humorísticos como o especial de Natal do Porta dos Fundos? Como você analisou toda a polêmica, sobretudo relacionada a um juiz que pediu para a Netflix retirar o programa da plataforma?
Todo esse episódio me levou várias vezes para o jardim onde Jesus foi preso. As Escrituras Sagradas dizem que, quando o soldado Malco pôs a mão sobre Jesus para prendê-lo, na mesma hora Pedro sacou sua espada, mirou na cabeça do soldado, mas acertou apenas a sua orelha. Um milagre aconteceu naquele exato momento. Cristo tocou a orelha do soldado e ele ficou curado. Em seguida, repreendeu a Pedro, dizendo: “Embainha tua espada. Por que não beberei o cálice que o Pai me deu?”. Cristo estava se referindo aos sofrimentos e às humilhações que ele, o Filho de Deus, passaria. Mesmo sendo verdadeiro Deus, Cristo bebeu o cálice da vergonha e da humilhação. Por outro lado, aquele Pedro que teve tanta coragem para ferir o soldado com sua espada não teve a mínima coragem de assumir que era um imitador de Cristo. Negou ao seu mestre três vezes. E o galo cantou. Respeito quem decidiu boicotar a Netflix. Entendo os motivos e considero muitos deles plausíveis. No entanto, do que adianta protestar contra Porta dos Fundos e Netflix como um leão, mas, na esfera pública, fugir como um rato do inescapável testemunho público da fé no crucificado?