De tanto se ouvir falar, falar e falar até ficamos com a impressão de que as abordagens dos problemas sociais e históricos propostas pelos defensores do estruturalismo e da teoria do conflito são as únicas abordagens legítimas. Não faz o menor sentido priorizar uma única forma de como deveríamos compreender o passado e o mundo atual. Infelizmente, têm prevalecido no debate público abordagens que só se sustentam pela força de sua sedução retórica.
Entretanto, em ciências sociais, não vale o mesmo critério metodológico adotado para explicar fenômenos naturais. Um amigo biólogo, da área da botânica, costuma brincar comigo dizendo que estudar samambaia é muito mais tranquilo do que se envolver com os dramas humanos. Tudo o que envolve o homem é bem complicado. Não é constrangedor saber que somos tão seres humanos quanto foram São Francisco de Assis, um dos maiores santos, e Reinhard Heydrich, um dos maiores carrascos nazistas?
Agora, quando lemos que “abundam evidências” de que no passado as coisas eram assim e assim, isso não significa como realmente eram as coisas no passado, tal como os teóricos da pureza moral sugerem; porque toda evidência relacionada aos fenômenos humanos depende do modo como elas são interpretadas pelos teóricos. Abundam evidências e interpretações, portanto. E o próprio ato de privilegiar certos eventos tem fundamento em pressupostos teóricos de que nenhum teórico consegue se livrar.
Nossos antepassados fizeram coisas das mais abomináveis, desprezíveis e cruéis. Mas não porque estavam no passado, motivados por ideias atrasadas. Fizeram coisas estúpidas simplesmente porque são seres humanos
Isso para não falar das inúmeras possibilidades de combinação metodológica entre história e sociologia. E quando vamos para o ponto de vista moral a coisa se complica ainda mais, pois o comportamento social passado não pode ser julgado com as réguas dos nossos valores atuais, exceto se você concebe algum sentido mais substancial entre as experiências dos nossos antepassados e as nossas.
Sim, nossos antepassados fizeram coisas das mais abomináveis, desprezíveis e cruéis. Mas não praticaram crueldade porque estavam no passado, motivados por ideias atrasadas, enquanto nós, que estamos num lugar privilegiado da história e com ideias libertadoras e moralmente superiores, podemos julgá-los como se nossas ideias fossem melhores e superiores que as deles. Fizeram coisas estúpidas simplesmente porque são seres humanos. E é o que os seres humanos estão propensos a fazer: coisas boas e coisas estúpidas.
Claro que eu não concordo com a forma como os espartanos educavam seus filhos. Também discordo da forma como as mulheres eram reduzidas à vida doméstica em Atenas. Não estou dizendo que a escravidão do mundo antigo e moderno deva ser justificada. A única coisa que estou dizendo é que o passado é complexo demais por ser condenado como um todo pelo tribunal da nova inquisição. Se o passado não tiver a pureza moral que exigimos de nós mesmos, deve ser completamente apagado?
Não, o passado não deve ser apagado mesmo que traga a lembrança de coisas abomináveis. Além do que, não acredito que sejamos moralmente superiores aos nossos ancestrais. Esse pressuposto de que o pecado está nos outros é o pior de todos os pecados. Estudamos o passado com o objeto de não cometermos os mesmos erros, não para condená-lo.
Em As fontes do poder social, o sociólogo inglês Michael Mann oferece uma das mais interessantes abordagens referentes ao modo de interpretar socialmente o passado. Primeiro, porque ele se opõe a toda teoria que tenta reificar as sociedades, torná-las uma coisa única, fechada, singular. Para ele, não há “uma ‘sociedade francesa’ ou uma ‘sociedade americana’ singulares”, assim como não há “sociedade industrial”, “pós-industrial” etc.
A propósito, Mann chega a dizer que “essa pode parecer uma posição estranha para um sociólogo”, mas que, se ele pudesse, “aboliria completamente o conceito de ‘sociedade’”. Diferentemente dos teóricos que buscam olhar as sociedades e a história como um sistema completo de mundo, Mann defende que “nenhum processo de ‘globalização singular’, nenhum ‘sistema’ multiestatal dominado por uma lógica ‘realista’, nenhuma lógica do patriarcado pode ser tomada como uma coisa”.
Ele defende que “a história não possui uma unidade fundamental conferida pela história das lutas de classes ou dos modos de produção (abordagem marxista), ou de ‘epistemes’ ou ‘formações discursivas’, códigos culturais, ou estruturas de pensamento subjacentes que governam a linguagem, os valores, a ciências, as práticas de uma época, e nada disso é marcado por um processo de poder que encapsula toda a atividade humana”.
Nos quatro volumosos livros de sua monumental obra sobre as fontes do poder social, Mann destronará aqueles que buscaram olhar a história e as sociedades como se fossem uma coisa só, um conceito abstrato que você cultiva ou condena como se fosse o objeto de nossas obsessões pela pureza moral dos outros. Parafraseando o velho Nietzsche, é preciso lembrar que aquele que luta com os monstros dos outros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro para si mesmo.