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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Sussurrar e destruir

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Membro de torcida organizada protesta contra o presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, cobrindo o rosto com um lenço onde se lê "antifascista" (Foto: NELSON ALMEIDA / AFP)

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Quem cobre o rosto não faz política. Pelo menos não no sentido em que a democracia republicana exige. Na verdade, pra ser bem honesto, não faz política em nenhum sentido. Quem cobre o rosto reduz o exercício político ao puro jogo de força. No fim das contas, resta a violência bruta, pura e simples. No rosto encoberto, a pessoa que se esconde anula o resquício de sua identidade pessoal para se perder na turba em movimento.

Na série The Walking Dead, todos os personagens têm natureza política exceto os zumbis, cujos rostos foram desconfigurados pela doença da morte. Nas duas últimas temporadas, o bando conhecido como sussurradores cobre o rosto com pele de zumbi. Nesse caso, viver como um zumbi é adotar o modo mais primitivo de vida, quase como um processo que desvela o estado de natureza da guerra de todos contra todos no horror metafísico da igualdade.

Diferentemente de todos as comunidades políticas que formam vínculos comerciais, culturais e afetivos, os sussurradores, liderados por Alfa e seu braço direito Beta — eles usam esses termos para apagar seus nomes de origem e, portanto, anular suas identidades —, optaram por uma vida apolítica consumida pelo ódio, submissão e violência. Não há mais nada além do desejo cego condicionados aos apetites intermináveis de fome e poder. Todos os que caminham com os zumbis são iguais apetite de destruição sem propósito. É o politicídio em estado puro.

O rosto de alguém deve ser considerado o polo de valor infinito na relação entre pessoas. Não à toa usamos a expressão “sua máscara caiu” a fim de registrar a verdadeira intenção de alguém que se passava como um lobo em pele de cordeiro — para lembrar de uma outra expressão com a metáfora também associada à camuflagem do rosto. Num jargão filosófico, dirigir-se ao rosto significa encontrar no outro um alguém e não um algo, a relação eu-tu como o primado fundamental da ética da alteridade.

Peço licença aos meus leitores para citar este longo trecho de uma das melhores reflexões sobre o rosto elaborada pelo filósofo francês Jean-Luc Marion:

“O rosto torna-se verdadeiramente o fenômeno de um homem quando faz surgir uma pessoa, essencialmente definida como eixo e a origem de suas relações. Se olhar um rosto implica ler aí esse feixe de relações, eu não vejo senão que se experimente aí uma ideia de infinito, a saber, este centro de relações não objetiváveis e irredutíveis a mim. Experimentar o infinito no rosto de outro nada tem de uma fórmula metafísica, trata-se de um comportamento verificável pela experiência: [...] o fenômeno absoluto de outro centro do mundo, em que habita meu semelhante e cujo olhar sobre mim permite viver graças a ele”.

Nas democracias republicanas modernas, a presença de alguém deve ser demarcada por nada mais nada menos do que a experiência direta de um rosto diante dos outros. O valor da cidadania só se sustenta pela capacidade de as pessoas se manifestarem livremente, defenderem abertamente e responderem publicamente pelos próprios atos sem qualquer constrangimento de uma autoridade arbitrária. Sem se anularem como pessoas. Só há política quando somos capacitados a justificar nossos desejos de justiça pelo discurso racional. Quem sussurra, balbucia, grita e esconde o rosto só consegue criar as condições para barbárie.

O parlamento — literalmente, o lugar de fala —, em instituições republicanas, impõe-se como um dos poderes fundamentais do livre exercício da discussão e do confronto democrático de ideias porque lá as pessoas não escondem seu rosto. A praça pública, as ruas e, sem exagero, as redes sociais são substantivamente políticas na medida em que as pessoas expõem suas demandas públicas por justiça. Quem se esconde atrás de conta fake para promover linchamento virtual é tão esvaziado do exercício político quanto alguém que sai na rua mascarado em luta pela democracia.

Resgato uma mera curiosidade histórica: o termo pessoa tem origem na palavra grega prósopon, uma palavra usada no contexto do teatro grego para indicar a “máscara” ou “a face” cuja função dramática revelava ao público o personagem no contexto da trama. Depois, os latinos recuperaram a ideia com o termo persona, que chegará até nós como a ideia de “personagem que será representado no palco”. Usar uma máscara no contexto do teatro é interpretar um papel público no palco e não o refúgio de indivíduos acovardados e anulados. É, ao contrário, dar vida pública a um personagem. Na política, é ser reconhecido pela sua dignidade pessoal.

Portanto — e direciono toda essa crítica aos membros da Antifa que deram uma entrevista para CNN Brasil —, quem vai com o rosto encoberto para o espaço da experiência política não vê o adversário como tu, mas como uma coisa a ser aniquilada. Os objetivos do Antifa são mascarados por uma suposta luta pela democracia, mas o grupo se recusa a participar do debate público como pessoas quando faz a opção pela máscara. Não fala e pensa como alguém, racional e livre, no debate democrático. Pelo contrário, age como máquina de guerra. Afinal, quem cobre o rosto não participa da experiência política senão para sussurrar e destruir.

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