Na dúvida, faça distinções. A frase não é minha, eu só a readaptei de um adágio filosófico dos medievais. Fiz para dizer o seguinte: talvez esta seja, se não a maior, a primeira e mais importante tarefa da filosofia: distinguir. No exercício habitual de dar opiniões, quem tem pouca afinidade com o trato filosófico quase não faz distinções. Ou seja: na hora de explicar um evento, um fato ou uma crença, tudo sai meio que embolado, nebuloso e vazio. Por isso, nada como começar o dia separando o joio do trigo.
Portanto, voltando ao tema do artigo, por que uma pessoa surtada não deve ser confundida com um terrorista? E por que duas pessoas surtadas não devem ser confundidas com terroristas? Se uma é pouco, duas já não seria demais? Tem coisa aí. Um presidente populista. Um filósofo de direita-extremista oferecendo cursos gratuitos. Gabinete do ódio. Pandemia. Vírus chinês. Invasão no Capitólio. Deep Web. OK. Tem coisa aí.
No exercício habitual de dar opiniões, quem tem pouca afinidade com o trato filosófico quase não faz distinções
Muita calma nessa hora, por favor. Vamos aos fatos. Recentemente, num intervalo de alguns dias, dois policiais atacam – sabe-se lá as razões. Há muitas razões possíveis. Muitas causas, crenças motivadoras; um pânico moral aqui; uma crise existencial ali. Depressão. Nacionalismo. Na Bahia, um chegou até a disparar contra os colegas. Ele foi baleado e morreu. Num aeroporto em Foz do Iguaçu, outro policial fez uma funcionária de uma companhia aérea de refém. Esse não tem um fim trágico; entregou-se e foi preso.
Bem, o que esses dois casos poderiam ter em comum? Pergunta honesta. Para uma cabeça fértil, eles só podem representar a escalada dos extremistas de direita. No entanto, post hoc ergo propter hoc. “Depois disso, por causa disso.” Em outras palavras: dois eventos que ocorram em sequência cronológica estão necessariamente numa relação de causa e efeito – exceto pelo fato de isso ser uma terrível falácia. Sim, a pessoa vê dois eventos seguidos, e acredita que eles estão conectados de uma forma mais profunda: terrorismo.
Surto eu sei que é surto. E terrorismo? Há muitas definições. Antes das definições, recomendo começarem a assistir ao clássico dos clássicos, Lawrence da Arábia.
Com relação às definições mais técnicas, o Departamento de Estado dos EUA define terrorismo como “violência premeditada e politicamente motivada perpetrada contra alvos não combatentes por grupos subnacionais ou agentes clandestinos, normalmente com a intenção de influenciar uma audiência”. Já o Departamento de Defesa diz que terrorismo é “o calculado uso da violência ou da ameaça de sua utilização para inculcar medo com, com a intenção de coagir ou intimidar governos ou a sociedades, a fim de conseguir objetivos geralmente políticos, religiosos ou ideológicos”.
A Agência Brasileira de Inteligência define terrorismo como “ato premeditado, ou sua ameaça, por motivação política e/ou ideológica, visando atingir, influenciar ou coagir o Estado e/ou a sociedade, com emprego de violência. Entende-se, especialmente, por atos terroristas aqueles definidos nos instrumentos internacionais sobre a matéria, ratificados pelo Estado brasileiro”.
Pincelei essas definições para colocar o problema numa perspectiva mais objetiva e de que o terrorismo não é um mero ato de violência, mas um ato premeditado e calculado. A violência terrorista não pode ser confundida com violência pura e simples, principalmente psicológica. E não é só porque eram, concidentemente, policiais.
Os elementos que estruturam e constituem o ato terrorista precisam ser pensados a partir destes tópicos: agente perpetrador; clandestinidade; violência sistêmica; alvo primário; publicidade; público-alvo; meta psicológica. Sem eles, não faz sentido chamar dois eventos simplesmente por serem semelhantes e com proximidade de tempo de “terrorismo”.
Para uma cabeça fértil, os dois casos recentes envolvendo policiais só podem representar a escalada dos extremistas de direita
O agente perpetrador de um ato terrorista milita por uma causa (inclusive pode ser agências governamentais ou associados) e faz uso ilegítimo da força coercitiva. Por isso, uma parte considerável da ação terrorista é a clandestinidade, ou seja, a consciência da ilegalidade da mobilização não convencional. Essa ilegalidade deve ser pensada no contexto de uma guerra irregular, cujo uso da violência sistêmica e subversiva atenta contra um alvo primário, que não necessariamente coincide com o público-alvo da campanha terrorista.
Com dirá Von der Heydte, “o terror pretende induzir pessoas e grupos de pessoas a adotar um certo tipo de comportamento. Pretende, além disso, demonstrar influência num certo grau de intensidade. O terrorismo é uma demonstração de poder, o poder de uma minoria ativa e resoluta determinada a fazer qualquer coisa para atingir seus objetivos”.
O uso caótico da violência e o certo grau de publicidade não apontam para o fato de que os policiais surtados façam parte de uma mobilização clandestina, estrategicamente pensada, com ideias bem definidos a serviço de um agente perpetrador, seja do Estado ou algum grupo reivindicando poder. Infelizmente, são homens perturbados por seus próprios fantasmas, e não instrumentos de um delírio subversivo de destruição calculada.