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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Tiranicídio

Tiranicídio
(Foto: BigStock)

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Hoje trago um bate-papo que tive com Bruno Lincoln, mestre em Filosofia do Direito pela USP, sobre um dos mais controversos temas da filosofia política: o tiranicídio. Recentemente, esse debate foi desencadeado por aqueles que torcem pela morte do presidente. Na semana passada, procurei demonstrar que o problema não pode ser reduzido à discussão ética, mas dependia de uma via política para sua fundamentação. Não que eu radicalize a distinção entre ética e política, minhas reflexões consideravam a “felicidade” dos utilitaristas como critério inadequado para a legitimação da morte de um tirano. De fato, os utilitaristas têm uma concepção de felicidade que pode ser transcrita no âmbito político, porém, a própria noção felicidade é problemática. Convidei Bruno para conversar a respeito da tradição do pensamento católico sobre o direito de resistir ao tirano.

Gostaria de discutir uma definição sumária, se é possível, a respeito do tiranicídio. O que é e por que devemos tratá-lo como um problema exclusivamente político?

Literalmente, trata-se do assassinato de um tirano — isto é, um governante que usurpa o poder (tyrannus in titulo) ou que o exerça de modo injusto (tyrannus en regime) — em vista do bem comum. Como questão política, engloba o chamado “direito de resistência” de maneira ampla, e foi pensado na antiguidade clássica por nomes como Plutarco (Vidas Paraleslas) e Cícero (Sobre o Ofício). É a versão “aprovada” do crime de regicídio, por assim dizer, tendo entre seus defensores inúmeros representantes da cristandade medieval e Europa moderna. Eu diria até que, historicamente, foram raros os momentos em que os cristãos aceitaram uma obediência civil passiva e irrefletida.

É possível registrar a origem desse debate sobre o tiranicídio no pensamento político ocidental? Quais filósofos você destacaria?

Segundo o historiador do Direito Harold Berman, autor de Direito e Revolução, João de Salisbúria é o verdadeiro fundador da ciência política ocidental. No influente tratado Policraticus, Salisbúria já havia feito uma espécie de anatomia da governança. Ao abstrair o termo “príncipe” em um conceito geral próximo ao de Estado, Salisbúria pode desenvolver uma complexa teoria de governo que demarcava dois tipos gerais de príncipes: os bons, que governavam consoante a lei e a justiça, e os tiranos, que perseguem seus próprios fins, desrespeitam as leis e reduzem os súditos à escravidão.

Para Salisbúria, a comunidade política só é saudável se todos os seus membros e órgãos estiverem sãos, de modo que um bom rei cumpre a função perfeita de direcionar o seu reino conforme os ditames da justiça e do bem comum. Os tiranos, por outro lado, só pensam em si mesmos e esquecem que receberam o gládio material de Deus para punir os maus e recompensar os bons. Desrespeitam, portanto, as leis superiores.

Vale lembrar que ainda que os poderes espiritual e temporal sejam independentes nas suas próprias esferas, o espiritual goza de uma autoridade e dignidade mais elevadas, o que exige das leis expedidas pelos príncipes uma conformidade em relação às leis divinas e naturais. Se assim não procederem, o soberano perde o direito de governar. Em última instância, isso significa dar ao súdito o direito de não só desobedecer a ordens transgressoras da lei divina como também o de assassinar o rei em exercício: eis aí, pela primeira vez no Ocidente, uma teoria fundamentada do regicídio. Teoria que é senão a derivação de um problema anterior, o da relação entre os poderes espiritual e temporal.

Porém, segundo Salisbúria, uma medida tão drástica deve se submeter a certas regras que impõe gradação e prudência, pois “se os príncipes afastaram-se gradualmente da verdade, mesmo assim não é adequado depô-los de imediato, mas responder à injustiça com reprovação paciente, até que se torne finalmente óbvio que são maus e cruéis”. Constatada em definitivo o processo de tirania no qual todo o reinado foi submetido, é lícito ao cidadão exercer seu direito ao tiranicídio, uma vez que ninguém comete crime maior do que aquele que deveria ser o encarregado da Justiça: “Matar um tirano não é meramente legal, mas correto e justo. Pois todo aquele que brande a espada merece padecer sob ela. E entende-se que se deve tomar a espada de quem a usurpa por sua própria temeridade e de quem não deriva o poder de usá-la de Deus.”

E Tomás de Aquino, ele também não deve ser destacado como um dos grandes filósofos a refletir sobre esse problema? Que lugar Tomás ocupa nessa discussão?

Mais refinado, Tomás de Aquino, em Do Reino, pensa o problema em termos da virtude da prudência, um componente da reta razão (a chamada recta ratio) que adequa a vontade a um bem, e do parâmetro da lei divina e natural, uma vez que não cabe aos homens a obediência cega às leis que atentem contra os mandamentos. Vendo com bons olhos não só a monarquia hereditária, mas também a eletiva, Tomás de Aquino não nega ao povo o direito de depor os tiranos: como a lei visa a ordenação do bem comum, pertence à multidão, ou ao representante dessa multidão, a legitimidade para a constituição de leis positivas, faculdade esta delegada aos governantes.

Se o poder é de origem divina e deve passar pelo povo, logo é lícito que este mesmo povo possa retirar o consentimento outrora dado a seu governante. Não há e não pode haver um direito divino de governar sem acidentes — esta é uma distorção tardia do Absolutismo moderno, ratificada por teólogos como Martinho Lutero e João Calvino. Mas guardemos este tema para outro momento.

O fato é que, para Tomás, caso se suceda a tirania em um reino, é dever do cristão, segundo a orientação de São Pedro(1Pd 2, 18), suportá-la, pois é virtuoso se sujeitar aos bons e aos maus senhores. No entanto, caso a tirania torne-se insuportável, é justo que a população se rebele, desde que cumpra três condições: que a revolta seja justa quanto ao fim; que tenha condições efetivas de vitória; e, por fim, que não faça da situação posterior mais opressiva que a anterior. Nesse sentido, não é difícil imaginar que o santo censurasse praticamente todas as rebeliões modernas, pois que invariavelmente levaram a regimes ainda mais tirânicos.

Além de Tomás de Aquino, pensadores católicos como Francisco Suárez e Juan de Mariana tiveram um papel fundamental no debate, sobretudo no contexto da ascensão anglicana do direito divino dos reis.

De fato. Por exemplo, em Suárez, o problema tem tudo a ver com o seu enfretamento aos abusos do rei Jaime I, monarca que exigia não só obediência civil, mas espiritual dos católicos ingleses. Seu Defesa da fé Católica advoga a consciência católica perante as investidas do rei anglicano, reafirmando a tradição política tomista em relação ao consentimento dos governados, opondo-se ao direito divino dos reis.

É preciso entender que o cisma anglicano teve por consequência colateral a sustentação de que uma só pessoa fosse a detentora dos poderes eclesiástico e civil. Jaime, na esteira de Henrique VIII, Eduardo e Elizabete, considera a autoridade espiritual anexa ao cetro do monarca. Com o intuito de condenar as usurpações dos direitos temporais cometidas pelos pontífices, os reis anglicanos minaram o primado de Pedro, o que, segundo Suárez, significava a incapacidade de reconhecer as diferenças entre o temporal e o espiritual. De fato, diz o teólogo e jurista, não cabe a nenhum monarca temporal a tutela sobre a religião, pois a origem próxima (causa eficiente) de sua jurisdição é a multitude do povo.

Se o poder emana do povo, se o direito divino não pode ser comprovado nem mediante as Escrituras e a doutrina, nem mediante a razão, então não há argumentos sólidos para confiar qualquer tipo de poder divino a reis e príncipes. É por este motivo que nosso teólogo, como seus antecessores, mantém o direito ao regicídio: este é tão-somente a consequência natural do processo de desdivinização da autoridade secular.

Em princípio, o assassinato é universalmente condenado pela Igreja e por isso o regicídio é situação excepcional e advogado com restrições. Por isso, tanto Suárez como seu mestre Francisco de Vitória, reforçam que a tirania deve ser manifesta e uma pessoa privada não pode se levantar contra o rei. O ato deve, de alguma forma, ser executado pela comunidade como um todo. É necessário, ainda, que o tirano viole gravemente os direitos naturais dos súditos, que infrinja guerra contra a própria república, não havendo espaço para tamanha revolta quando a república estiver, ainda que imersa em males, em tempos de paz.

Dos pensadores católicos, qual o lugar de Juan de Mariana no debate sobre o tiranicídio?

Padre Juan de Mariana (1536–1624), o mais “extremista” dos monarcômacos pós-escolásticos, foi além. Em De Rege et Regis Institutione, seu mais célebre trabalho, Mariana abole inúmeras restrições na defesa do tiranicídio. Primeiro, a definição de tirania foi largamente expandida: qualquer governante que violasse as leis da religião, que tributasse sem o consentimento do povo ou que impedisse uma reunião de um parlamento democrático poderia ser desde então considerado um déspota. Constatada a tirania, qualquer cidadão pode com justiça assassinar o soberano e fazê-lo por qualquer meio necessário, não havendo restrições quanto à necessidade de o ato ser coletivo. Nesse sentido, a única condição é que a tirania seja pública e notória. Desta feita, é lícito que qualquer um evoque o direito de resistência com base na legítima defesa de si, de sua família e de seu país

Tal como em João de Salisbúria, o cerne da filosofia política de Mariana é a distinção entre o bom governante legítimo e o mau governante tirano. Antes de mais nada, De Rege é um livro sobre a formação de um príncipe e, na esteira do huguenote Inocêncio Gentillet, um tratado anti-Maquiavel. O verdadeiro príncipe reconhece servir ao Estado e ao bem comum e não por ele ser servido. Busca a paz interna e protege cada província contra a ameaça externa. Preocupado com os mais pobres, não sobretaxa os súditos, mas implementa uma política que busque realizar a justiça distributiva.

Ao contrário do realismo político grande filósofo florentino, não pode o príncipe realizar ações iníquas, ainda que elas se mostrem bem empregadas e úteis, pois a prudência exige não só o cálculo político, mas a capacidade de escolher meios aptos para fins corretos, não podendo a moralidade dos efeitos ser dissociada da moralidade dos atos. Citando exemplos históricos de reinados sábios no Antigo Testamento e na Europa, Mariana coloca a prudência como a base do governo de um príncipe, de maneira que as más ações degeneram todo o corpo social a longo prazo.

Em termos mais práticos, um bom rei é consciente da sua condição de servo da nação, da origem popular de seu poder e por isso respeita as instituições e os costumes do reino e se cerca de bons conselheiros. O tirano, em oposição, é um inimigo público da nação, uma bestia indomita que utiliza o poder para satisfazer seus próprios caprichos, procurando honras, riquezas e exercendo sua função violentamente contra a ordem pública. Em suma, a consequência inevitável de toda tirania é a calamidade pública razão pela qual o direito de resistência deve ser garantido como remédio.

Nas palavras de Mariana, quando convier ao bem da república e estiver em jogo os direitos naturais dos cidadãos, os tiranos podem ser depostos com a mesma violência que infligiram ao povo: “(...) tanto os filósofos quanto os teólogos estão de acordo que se um príncipe se apoderou da república à força de armas, sem razão, sem direito algum, sem o consentimento do povo, pode ser despojado por qualquer um da coroa, do governo, da vida”.

É verdade que, ao definir as circunstâncias específicas nas quais um particular pode assassinar seu rei, Mariana acaba por se desviar da doutrina católica tradicional. Com efeito, a tese de que em determinadas condições pode um cidadão privadamente cometer tiranicídio — sem a permissão das cortes, conselhos e demais autoridades públicas, fazendo de uma só pessoa tanto o juiz quanto o carrasco — é estranha à ortodoxia do Concílio de Constança, que definiu tal proposição como herética. De qualquer forma, para evitar temeridades, Mariana não deixa de reconhecer a necessidade de que os tiranos sejam reconhecidos publicamente enquanto tais, o que deve ser ratificado pelos juízos de homens respeitados pela sabedoria.

Você acha que a resposta do utilitarismo-liberal adequada para o problema político do direito de resistência?

O paradigma liberal-individualista reduz toda a complexidade da questão ao império da técnica e da utilidade. Se em Tomás de Aquino a rebelião não é papel de um indivíduo isoladamente, mas da autoridade pública em sentido amplo — ou seja, a multidão deve se organizar a fim de que a insurreição não seja cooptada por alguém que tome a iniciativa para si — em pensadores modernos como Francis Hutchenson, William Godwin, John Start Mill e Jeremy Bentham, a ética das virtudes é substituída pela “ética” consequencialista e a prudência e suas virtudes anexas (eubulia, sínese e gnome) substituídas por critérios cínicos como “felicidade”, “prazer” e “bem estar”. De uma genuína reflexão acerca da moralidade e prudência de nossos atos, incluindo aí a rebelião contra déspotas, decaímos para noções como as de “saldo líquido do bem-estar” e “princípio da otimização” ou categorias outrora irrelevantes como “altruísmo” e “egoísmo”.

De fato, enquanto na teoria tradicional o direito de resistência é como que uma extensão do direito natural à legítima defesa de si ou de terceiros, na perspectiva utilitarista entra em jogo o fatídico cálculo de custo-benefício, cujo desenlace só pode ser o sacrifício de alguns em prol de um “bem maior” para a coletividade. Parafraseando Dostoievski, se a moral não existe, tudo é permitido.

Mesmo quando o tema é pensado em termos do “direito natural”, é a vertente racionalista pós-Locke, que é senão a caricatura distorcida do direito natural clássico, que dá a tônica da discussão. Daí o indivíduo como centro do interesse social e jurídico: “meu direito”, “minhas prerrogativas”, “meu...corpo”. O resultado é o atomismo social e a perda do sentido moral comunitário.

Este abandono do legado greco-romano e escolástico, o qual constituía o direito como um produto da relação entre vários sujeitos e da busca social pela própria coisa justa e a política como o meio de se buscar o bem comum, só pode produzir um artigo tolo e mixuruca quanto o do Hélio Schwartsman, “Por que torço para que Bolsonaro morra”. Mais do que a redução de um rico problema a um texto de vinte linhas — o que deixa invariavelmente o gosto de peça publicitária — o que o debate a respeito do texto do Hélio faz é provar que o cidadão pós-Bentham, dito tão corajoso e “livre” dos freios morais, é alguém de patética tibieza. Pegar em armas? Enfrentar a suposta tirania? Jamais. O que resta ao “tiranicida” do século 21 é mesmo “torcer” atrás de seu computador.

Enfim, cada época tem a resistência que merece.

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