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Do ponto de vista das relações do poder, há dois tipos básicos de coerção não legítima: a opressora e a consentida. Uma atitude autoritária só se determina em virtude do uso da força. Se o poder é um tipo de relação coercitiva, o poder autoritário significa que alguém manda enquanto alguém só obedece por não ser capaz de se colocar no lugar de quem manda. Já a coerção consentida é servidão voluntária ou servilismo. Submeter-se a uma forma de coerção não legítima por puro amor à causa, uma paixão quase mítica. Costumo dizer que a coerção opressora dá forma aos regimes autoritários, enquanto que a coerção consentida está na base mental dos regimes totalitários.

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Um dos maiores problemas do poder político é o de saber o quanto há de legitimidade nas relações de poder. Se a obediência muitas vezes constrange uma vontade individual, que esse constrangimento seja pelo menos legítimo. Por legitimidade deve-se entender o elemento mediador que regula juridicamente o poder. Eis a pergunta: Como demarcar os limites legais do exercício de poder? Noutras palavras, afinal, o que confere justiça ao poder e poder à justiça? Com o perdão da analogia: sem justiça o poder é cego, mas sem poder a justiça é impotente. Para a vida política, não há nada pior do que um Estado poderoso, mas injusto; e um Estado justo, sem poder.

Nesse sentido, fica claro que nem todo exercício de poder deve ser considerado autoritário ou totalitário. O poder legítimo deve ser revestido com a autoridade da justiça a fim de evitar injustiças. Um bom exemplo: o cumprimento de uma ordem judicial dentro dos limites legais do exercício de poder é exercício da justiça. Cumpre-se, num primeiro momento, mesmo contra a vontade de um indivíduo ou grupo, porque, como diz o velho Sócrates — que se entregou sorrindo para os braços da justiça democrática ateniense e que sempre se conduziu com lealdade em face de sua cidade e de suas leis —, é melhor sofrer uma injustiça do que praticá-la.

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Autoritários e totalitários são modos distintos de subverter a justiça. Fazem da justiça o privilégio dos amigos. Porém, a lealdade dos autoritários é uma lealdade aos próprios interesses. Os autoritários dispõem de instrumentos bélicos adequados, embora não legítimos, para o exercício desse compromisso. Aparelham o Estado e agem de cima para baixo. Para os autoritários, como descreve Trasímaco, o personagem d’A República de Platão, “o justo não é nada mais que o interesse do mais forte”. O justo é a lei instituída pelo mais forte, uma lei sem qualquer fundamento além da força em virtude de interesses particulares — que pode ser o interesse particular de uma única pessoa ou de várias, de um único líder ou do “povo”. Sim, a democracia também contém o embrião da tirania.

Por sua vez, os totalitários, cuja forma de coerção consentida e servil fornece as bases da submissão, dispõem de um outro tipo de instrumento para exercício de poder: a devoção. Totalitários dependem de um sistema de crenças extremamente complexo onde já não há mais distinção entre o líder e os seus subordinados. Todos são um e um são todos. No seriado The Walking Dead, isso é muito bem explorado na relação de poder que o personagem Negan, interpretado pelo ator Jeffrey Dean Morgan, mantém com seus subordinados no microestado totalitário conhecido como “Os Salvadores”. Para “os Salvadores”, Negan não é um homem, mas uma ideia. Portanto, todos são Negan.

O perfil psicológico desse tipo de líder totalitário pode ser resumido nos seguintes pontos: autopercepção da própria importância, esperando dos seus súditos o reconhecimento incondicional como superioridade; fantasia de sucesso, grandeza e ilimitado poder, isto é, o líder se acha um construtor de sonhos e condutor da nação ao futuro utópico; ele exerce fascínio e admiração como se fosse líder religioso; tem absoluta sensação de estar acima da lei e, quando se vê condenado pela Justiça, perguntará: “que crime cometi?”; acredita ser alguém com dons especiais e estar sempre acima dos outros pelas suas supostas conquistas; e, por fim, acha que a causa dos seus problemas é sempre culpa de um inimigo que precisa ser combatido, custe o que custar. No entanto, como é o líder e tem o poder, ele tira o máximo de vantagens pessoais enquanto os súditos não gozam dos mesmos benefícios.

Em linhas gerais, para enfatizar a diferença entre autoritários e totalitários, pode-se constatar o seguinte: enquanto o autoritarismo pode ser compreendido como um sistema político com grau razoável de pluralismo de crenças e sem qualquer exigência de culto ao líder — embora o líder exerça o poder por todos os meios necessários —, a submissão totalitária, como dizem os historiadores Juan Linz e Alfred Stepan em A transição e consolidação da democracia, resume-se nas seguintes palavras: “se um regime eliminou praticamente todo pluralismo político, econômico e social existente; possui uma ideologia unificada, articulada, norteadora e utópica; usa mobilização intensiva e extensiva; e possui uma liderança que governe, muitas vezes de forma carismática, sem limites definidos e acarretando grande imprevisibilidade e vulnerabilidade, tanto para as elites quanto para as não elites, parece-nos que ainda faz sentido histórico e conceitual denominá-lo de regime com fortes tendências totalitárias”.

Os líderes totalitários retiram seu profundo senso de missão e comprometimento da ideia de salvação. São salvadores e todos se acham salvadores. Nesse sentido, exigem de seus membros o comprometimento extremamente sério com uma concepção holística de seus feitos: passado, presente e futuro. Pois um totalitário, que é líder de religião política, acredita piamente que realizou, realiza e realizará grandes benefícios para o “povo”, mesmo preso ou morto. Enfim, não se trata de um mero oportunista que chega ao poder para o benefício próprio. Muito mais do que isso, trata-se de um crente verdadeiramente apaixonado por suas maluquices e que os súditos idolatram como redentor.

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