Uma das descobertas mais importantes de uma vida dedicada ao conhecimento é tomar consciência de que nós, seres humanos, somos limitados e que, justamente em decorrência dessa condição, precisamos produzir conhecimento junto com os outros. É, pois, do reconhecimento dos nossos limites que nasce a busca por um saber genuíno construído em comunidade de diálogo. Talvez o mais importante princípio ético da filosofia seja o exigente e difícil ato de humildade.
Quando eu era criança, inquietava-me ao imaginar se um dia eu teria a possibilidade de conhecer tudo. Na época não tinha Google. Conhecer dava muito trabalho, literalmente falando. Lembro-me do peso e do fascínio de uma coleção da editora Abril Cultural chamada Tudo – dicionário enciclopédico ilustrado. A lição mais importante tirada desse generoso livro de milhares de páginas fora a de que todos os seres humanos estão fadados ao fracasso em um dia conhecer tudo.
Nossa condição humana impõe-nos uma barreira intransponível diante de tudo. O que é bastante frustrante, visto que ansiamos pela totalidade mesmo sabendo que jamais poderemos alcançá-la. Os gregos davam um nome interessante para este impulso: thaumazein. Que significa “espanto” ou “maravilhar-se” e era compreendido, segundo Aristóteles, como o ponto de partida de toda a experiência filosófica.
Nós, seres humanos, somos limitados e que, justamente em decorrência dessa condição, precisamos produzir conhecimento junto com os outros
A mais encantadora imagem que eu tenho dos poderes da minha consciência humana é esta: poder pensar em todas as coisas, questionar tudo e saber que não conhecerei quase nada. Nicolau de Cusa, o grande filósofo católico alemão do século 15, chamou a isso de douta ignorância. Isto é: saber dos limites do nosso próprio saber. Diz ele que a douta ignorância significa “a condição para uma reflexão antropológica radicada na finitude e aberta à infinitude que saiba fazer do outro não um objeto de posse ou um sujeito que nos é possível dominar pelo poder do discurso, mas o que transforme em autêntico interlocutor de uma relação que é disposição para o ‘tu’ sob a forma de encontro e de recíproca vinculação ao mundo que é de todos”.
Notem a beleza das palavras: como sabemos dos nossos limites, então devemos tratar os outros como autênticos interlocutores de uma relação do tipo eu-tu. Pois o conhecimento se constrói em comunidade de diálogos e não em relações de poder. Meu fascínio com as enciclopédias, que hoje consigo traduzir em palavras, partia desse dado social do conhecimento. Nunca era um exercício de autossuficiência.
Todo conhecimento do mundo está aí, disponível para a curiosidade de todos nós. Mas há uma dinâmica assombrosa: nos aproximando e, ao mesmo tempo, nos mantemos infinitamente distante de tudo. Ainda assim, por essa razão, sinto-me privilegiado por ser professor. Na verdade, pelo fato de poder estar em contato com um universo específico do conhecimento e, ao mesmo tempo, reconhecer que tudo o que eu sei não é nada.
A douta ignorância não deve ser compreendida como a negação da possibilidade do conhecimento. Social e historicamente, o conhecimento é um fato. Em vez de negá-lo, a douta ignorância abre as inúmeras possibilidades para o saber. Nesse sentido, trata-se de um constante ponto de partida de uma viagem sabidamente reconhecida como interminável. Aproximamo-nos de resultados que jamais poderão ser chamados de destinos definitivos.
A definição de ser humano de Nicolau de Cusa sempre me inspirou. Ele diz mais ou menos o seguinte: a noção de incompletude da nossa natureza articulada com o desejo intelectual, como caminho e tarefa, dado como abertura ao dom que nele se perfaz. Noutros termos, essa visão de ser humano traz a marca de que nossa natureza porta um dinamismo fundamental. O ser humano nunca pode ser definido em definitivo por isso e isso, mas por estar em permanente devir.
Enfim, é importante registrar o caráter antidogmático e contrário a toda forma de relativismo dessa concepção. A douta ignorância não implica o não saber ou a impossibilidade de o ser humano saber. Ou seja, não se refere a uma defesa da falta de saber ou da burrice, mas da ignorância como resultado de um conhecimento fundamental: o conhecimento das nossas limitações como passo decisivo para continuarmos buscando.
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