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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Uma mentira quase perdoável

(Foto: Pixabay)

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Por algum princípio cósmico cuja preguiça me impede de buscar maiores explicações filosóficas, muita gente fecha o seu ciclo de leitura por ano. Eu também projeto e traço metas para minhas listinhas de livros anualmente. Sei que vestibulares o fazem por razões pedagógicas até que óbvias. No meu caso, não sei se é o melhor critério, confesso que já pensei noutras formas de calcular minha dieta das letras. Se adoto, é por pura comodidade de quem hoje lê por profissão, prazer e um quê de vaidade.

Digo por experiência própria de quem já foi compulsivo, sei muito bem que em um ano dá pra ler muita coisa e não aprofundar bulhufas — o contrário também pode ser verdadeiro. Mas tudo depende do tipo de leitura e do tipo de livros que a gente se aventura a enfiar o focinho, convenhamos. Hoje estou mais pra comprador compulsivo e sigo firme como rato de sebo. Por nada nesse mundo troco downloads de livros em PDF, verdadeiros entulhos digitais que quebram um galho em alguma pesquisa, por minhas estantes improvisadas e empoeiradas — para o desespero da minha esposa.

De vez em quando ainda sou surpreendido por alguém que, ao entrar na minha biblioteca, perguntar se já li “tudo isso”. Minha resposta se tornou bordão na família: um colecionador de selo não usa os selos que coleciona. Embora a analogia tenha lá seus limites, funciona pra explicar o seguinte: o prazer de ter uma biblioteca é o mesmo de um colecionador  de qualquer coisa, com a vantagem de que livros a gente de fato pode usar à vontade e não emprestar nunca. Vai por mim, os dois que emprestei não voltaram até hoje. E isso tem mais de 10 anos — dívida que levarei comigo para o além-túmulo. Livro a gente primeiro compra pra ter; ler mesmo é um prazer que se faz com o sabor do tempo e da idade.

Mas voltando ao assunto das listas, se alguém ostensivamente contar vantagens de que leu uns cem livros num único ano — olha que já vi gente por aí dizendo que consultou dois mil em dois anos —, eu só acredito na alta performance da leitura se e somente se pelo menos a metade desses livros for de coisinhas leves, envolvendo poesia, contos, teatros, novelas e receitas. No caso, o tipo de leitura que exige mais do livre fluxo da imaginação e uma boa dose de sentimentos do que de toda atenção cognitiva e intelectual que um único cérebro médio não daria conta.

Noutras palavras, livros que a gente lê de pernas pra cima na poltrona do papai ou no soninho gostoso do balanço da rede. Claro que quando eu me refiro a “coisinhas leves” não estou menosprezando a qualidade. Há coisas leves que são muito boas, assim como há coisas leves ou pesadas que são verdadeiras porcarias. Como eu disse, ainda é preciso computar a qualidade da leitura, não só a dos livros. Não adianta dar Grande Sertão: Veredas para uma toupeira, porque, de repente, vai que ela resolve fazer uma “releitura” com milícias na era Bolsonaro e Diadorim “não binário”.

O que me intriga de verdade é como um ser humano absolutamente normal, mesmo um que se recusa a ter perfil no Twitter, Instagram e assistir dancinha no Tik Tok, consegue ler essas listonas parrudas de “melhores livros lidos no ano” contendo assim entre nós aqui dezenas de tratados de filosofia e teologia, ensaios sociológicos, livros de história e ainda ter um tempinho pra, na hora da soneca, uns romances russos.

Isso porque, geralmente — e peço que você pare só um instante pra refletir no constrangedor exibicionismo que vem a seguir —, essas listonas exibem apenas “as melhores leituras”. Ou seja, além de toda aquela montanha que colocaria no chinelo ementas inteiras de cursos de pós-graduação em filosofia, a pessoa inexplicavelmente conseguiu arrumar um tempinho livre pra consumir porcarias. É muita ostentação — ou, uma alternativa razoavelmente plausível, é muita cara de pau pra ser mentiroso assim no quinto dos infernos.

Eu sei que parece bonito sair por aí se vangloriando de ter lido uma porrada de livros lindos, eruditos e maravilhosos. E vejamos pelo lado bom: tem gente que no ápice do supérfluo, ostenta carro, Bitcoin, coleção de sapatos, quantos pedaços consegue comer no rodízio de pizza e até a quantidade de pessoas que beijou numa única noitada de carnaval. Ostentar listonas de tratados filosóficos, teológicos, sociológicos e literatura russa lidos num único ano é moralmente até que perdoável, pelo menos pela estética e ar de erudição vazia que passa. Ser leitor tem lá seu charme; e mentir nessas horas quase não faz mal a ninguém.

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