Dois momentos históricos marcam mudanças decisivas no posicionamento da esquerda com relação à sua metodologia revolucionária: Maio de 1968 e a Queda do Muro de Berlim, em 1989. Embora o vocabulário do atual debate público continue viciado — como se a Guerra Fria estivesse, com o perdão do trocadilho, bem quente entre nós —, o fato é que estamos já cansados de saber que a teoria marxista clássica, baseada na luta de classes como motor da história, é incapaz de explicar os atuais conflitos que tecem nossa vida em sociedade. O proletariado — a razão de ser da antiga ideia de revolução — nem sequer existe mais como o sujeito da emancipação. Vale uma provocação leninista: O que fazer?
Para a esquerda, um espectro ronda não só a Europa: o espectro do conservadorismo. Como explicar sua ascensão? Se trata de uma “patologia” no seio da democracia? Por que muitos intelectuais têm se preocupado tanto com a estabilidade da democracia? Há, de fato, uma nova tentação totalitária? Por que tantas fobias: xenofobia, homofobia, transfobia, islamofobia, eurofobia...? Enfim, que tipo de esperança ainda nos resta — se é que cabe à política oferecer esperanças? Por favor, não pense o leitor que eu responderei essas perguntas aqui. Na verdade, gostaria de relembrar um importante momento da longa novela chamada modernidade, com seus ardentes defensores e críticos: as esperanças utópicas.
Em vez de pensar suas bases políticas à luz da economia, a esquerda passou a obedecer à gramática das políticas identitárias
Se contra os socialistas utópicos Marx havia se esforçado para dar arcabouçado científico ao comunismo, os marxismos passaram quase que o século 20 inteiro se alimentando de desastrosas esperanças utópicas. O futuro não trouxe a terra prometida. Não, não deturparam Marx. Foi apenas uma questão de tempo para que a história demonstrasse que o marxismo não tinha fôlego para explicar a própria história. Os intelectuais marxistas afirmavam compreender o sentido da história. Garantiam também, sem receios de errar, um reino de paz perpétua entre homens. Ficou na promessa. O final feliz não veio. Não se erradica o mal pela raiz sem erradicar o homem. Foi uma aposta ousada.
A inevitabilidade escatológica do comunismo, uma etapa que seria superada depois de alguns anos de ditadura do proletariado, foi revelada com montanhas de cadáveres por onde passou. O final feliz da história segue sendo um absoluto mistério — e que assim seja!
Hoje, em vez de pensar suas bases políticas à luz da economia, a esquerda passou a obedecer à gramática das políticas identitárias e do multiculturalismo, que consiste no catecismo de uma nova religião política. Pelo menos essa é a tese do livro do Mathieu Bock-Côté, O multiculturalismo como religião política, recém-publicado pela editora É-Realizações.
Uma rápida nota biográfica: Mathieu Bock-Côté é um sociólogo canadense, nascido em 1980 e ligado ao movimento conservador naquele país. Ele é formado em filosofia pela faculdade de Montreal e mestre e doutor em sociologia pela Universidade de Quebec. Foi uma grata surpresa saber que um de seus livros fora publicado aqui no Brasil.
Bock-Côté tem duas qualidades impressionantes: texto erudito e claro. Fora que não cai em polêmicas vazias. Sobretudo porque se trata de um autor muito consistente em suas análises — aceite ou não suas premissas, não se pode negar seu poder de síntese. Ele oferece ao leitor um excelente retrato das transformações ideológicas nas últimas décadas — tanto da esquerda quanto da direita. Matieu Bock-Côtê traz uma série de autores importantes para o debate público, tais como Tocqueville, Raymond Aron, Jacques Ellul, Leszek Kołalowski, François Furet, Marcel Gauchet, Alain Finkielkraut, Christopher Lasch e outros.
Referindo-se à atual esquerda, ele busca as raízes históricas para explicar a mudança desse novo comportamento revolucionário: “não é apenas o valor do exemplo soviético que é questionado, mas também o valor teórico do marxismo tal como predominara na intelligentsia ocidental. Desde a década de 1950, ele já não é considerado muito convincente”. Seu objetivo consiste em mostrar como a crise do marxismo ortodoxo cedeu espaço para a renovação multiculturalista e identitária, já que “o marxismo clássico entra em pane teórica e se torna cada vez menos apto a explicar as mutações do âmbito social”. Ele também explica como a direita tem regido a isso.
Para Matieu Bock-Côtê o utopismo foi reabilitado na agenda progressista a partir da década de 1960, mas em uma esquerda que será “profundamente transformada”. Como “o marxismo funcionava nos moldes de uma autêntica verdade revelada” e “a revolução marxista impele à revolução”, a utopia continuou uma tentação sempre presente na modernidade. Contudo, como experiência utópica, a “singularidade do marxismo foi pretender acoplar-se à racionalidade científica”. Não conseguiu. Foi substituído pelo igualitarismo identitário. Quem realmente coloca a democracia em risco?
Segundo ele, ao descrever o fascínio de Marx para classe intelectual, “o marxismo tinha tudo para agradar os meios intelectuais, aos quais garantia, pelo domínio de algumas equações teóricas e silogismos falsamente complexos, o controle do software necessário ao deciframento do movimento histórico”, mas, conclui, “ao conjugar o cientificismo e o profetismo”, o marxismo “permitia assim que a intelligentsia se arvorasse em classe anunciadora do futuro radioso, em classe mediadora da história em seu devir”. Mas alguma coisa mudou. O que não mudou foi o fato de que os progressistas não conseguem esconder o seu delírio de grandeza. Querem implodir a velha sociedade para criar o novo homem.
Deixe sua opinião