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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Comportamento

Sobre a origem da violência e da civilização

Cena de "Robocop", filme de 1987. (Foto: MGM Studios/Divulgação)

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Lembro-me muito bem de nunca ter dado um tiro em alguém. Vontade? Às vezes, por ímpeto, o pensamento voa como uma bala e acerta um inimigo imaginário. Não lido bem com armas e balas reais. Com relação aos inimigos reais, opto pela diplomacia e desprezo – não necessariamente nessa ordem. Afinal, o que nos diferencia dos animais é ser capaz de projetar a violência e, ao mesmo tempo, canalizá-la em coisas como a Nona Sinfonia. Nem sempre dá certo.

Lembro-me muito bem de que, até os meus 12 anos, pelo menos, eu brincava com armas de brinquedo. Criança que nunca teve ou sonhou em ter um revólver de espoleta do Rambo não foi criança nos anos 80. Convenhamos que os anos 80 não devem servir de parâmetro para o desenvolvimento socioemocional de uma criança. O que minha geração aprendeu foi na marra e na rua.

Acreditar que armas de brinquedo desenvolvem violência no imaginário das crianças é como esperar que um garfo desenvolva o apetite

Voltando à minha memória, também não me lembro de ter algum instinto assassino ou inclinação para violência. Filosoficamente falando, não me considero um homem naturalmente bom e corrompido pela sociedade. Penso o contrário. Na verdade, acredito na maldade intrínseca da natureza humana corrompida pela ousadia e soberba do pecado. Insisto que, pela graça de Nosso Senhor, não desenvolvi instinto assassino. A fonte do mal moral é humana, demasiadamente humana. E o meu niilismo foi contido pela perturbadora imagem de que há um lugar chamado inferno me esperando.

Acreditar que armas de brinquedo desenvolvem violência no imaginário das crianças é como esperar que um garfo desenvolva o apetite. Sou da época do filme Robocop, de Paul Verhoeven. Todo moleque achava aquele robô, meio homem meio máquina, todo desengonçado de Detroit simplesmente fascinante. Assistir à violência de Robocop dos 80 não me deixou mais violento. Lembro-me de ir ao delírio depois que ele atirava nos bandidos, girava a pistola e a guardava num dispositivo na coxa.

Por exemplo, Robocop é um dos primeiros filmes a que assisti em que havia aqueles momentos de violência explícita. Mas o que ficou não foram as cenas de violência. O filme levanta questões éticas que criaram raízes no meu imaginário. A moralidade de utilizar a tecnologia para modificar ou “melhorar” seres humanos, a distópica ideia de privatização de todos os serviços públicos e o impacto da vigilância constante sobre as nossas vidas foram as coisas que me marcaram. Não as armas. O que ficou de Alex Murphy, policial e pai dedicado, brutalmente assassinado por desprezíveis bandidos, não foi a violência, mas a pergunta a respeito daquilo que nos faz humanos.

Não lembro de um único amigo ter virado bandido e desenvolvido qualquer ímpeto para o mundo do crime depois de assistir a filmes com armas, brincar com pistolas de brinquedo e jogar Robocop no videogame. O culto do banditismo não está no uso das armas, mas, com o perdão da redundância, no culto do banditismo. No culto de que rico explorou o pobre para ser rico. No culto de que a nossa má conduta não tem origem nas nossas escolhas, mas na sociedade.

Lembro-me bem de uma das únicas vezes que minha mãe desceu a chinelada em mim. Foi quando tirei minha arma de verdade para fazer xixi na rua – não escreverei “urinar” porque não sou pai de pet; e não escreverei “mijar” porque ainda resta alguma civilização em mim. Eu tinha 6 anos. E criança faz xixi na rua na maior das inocências. Não que o ser humano seja bom por natureza. Fazer xixi na rua é feio e não somos animais. Então, além das boas chineladas, fiquei algumas horas de castigo atrás da geladeira.

Não me transformei num psicopata por levar umas palmadas da minha mãe por fazer xixi na rua. Não desenvolvi a psicopatia por ficar de castigo. Aprendi uma lição de vida: não desobedecer à autoridade da minha mãe. O cultivo da decência e do pudor vem do berço e de algumas palmadas. Mamãe sempre podou desde cedo meus instintos. E, talvez por isso, nunca deve ter passado pela minha cabeça que não é uma arma de brinquedo ou um filme violento os responsáveis por um filho desbandar para o mundo da bandidagem.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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