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Em sua carta encíclica Deus Caritas Est, Bento XVI apresenta uma das mais importantes reflexões teológicas a respeito do significado do amor cristão: “Nós cremos no amor de Deus – deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Para o cristão, caridade jamais pode ser definida como uma mera prática de assistência social. São realidades sociais completamente distantes. O modelo de vida social cristã é Cristo, e não se deve esperar nada além do que isto de um cristão: imitar Cristo. Caridade tem sentido salvífico, é virtude movida pela graça a partir da qual amamos o próximo como a nós mesmos exatamente porque Deus nos amou. O amor ao próximo é inseparável do amor a Deus. Diz o próprio Cristo: “Todas as vezes que fizestes a um destes meus irmãos menores, a mim o fizestes”.
Porém, ainda é preciso distinguir o amor do sentimento: o amor cristão não pode ser reduzido a um mero sentimento psicológico. Aliás, em época de psicologismos, é bem comum confundirmos amor com gostar; algo como uma satisfação de bem-estar, um afago psíquico indefinível não só em termos de experiência como de prática. O mero gostar enquanto sentimento não “ordena” uma vida ética. No gostar, tudo pode ser permitido. Afinal, pergunte para um psicopata se não há, bem ali no fundo de sua indiferença pela vida alheia, um prazerzinho pela perversidade.
Para o cristão, caridade jamais pode ser definida como uma mera prática de assistência social. São realidades sociais completamente distantes
Na encíclica, Bento XVI explica a diferença entre o amor como ágape e o amor como eros – tema básico para o ensino tradicional cristão. No primeiro, encontra-se o núcleo de toda a vida cristã; já o segundo pode se tornar o cativeiro psicológico dos canalhas; a ilha paradisíaca onde habita o delírio de grandeza de todo egoísta.
“Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo – ágape – exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o.”
Curiosamente, quando eu era ateu, confesso que fiquei bem chocado com um padre católico tentando me explicar o sentido dessa exigência do amor cristão expresso no ato de perdoar. Para mim, o perdão cristão, que está essencialmente relacionado à experiência de amor como ágape, era verdadeira aberração moral e lógica. Não fazia o menor sentido.
O padre, todo paciente, me explicou assim: se o assassino de tua mãe, se o estuprador de tua filha ou se o pior dos criminosos pedirem perdão, com profunda sinceridade e arrependimento, eles devem ser perdoados, talvez não por você, que é fraco, mas por Deus, que em Sua Glória não os abandonará na solidão destruidora do pecado.
Era muito difícil para o meu senso de justiça e humanidade aceitar essa barbaridade lógica. O amor misericordioso de Deus é um aparente paradoxo quando julgado pela régua de um miserável ser humano como eu. Quando me converti, meu primeiro ato significativo foi a experiência de arrependimento e perdão – continuei miserável, não obstante consciente de minha condição. Ou seja, reconhecer em mim os meus próprios erros e pecados, sendo que o maior deles é justamente a presunçosa esperança de que não eu dependia de Deus para me salvar. A soberba é autodestrutiva.
Diabolicamente, inverteu-se a lógica da caridade cristã em sua estrutura fundamental: quanto mais marmita, mais o viciado permanecerá na cracolândia. Quando mais caridade, mais crime. A droga, o viciado e o traficante são meros detalhes
Já o perdão é uma profunda experiência de fé; e, nesse caso, não se trata de uma categoria legal ou penal. Por isso me causa tremendo estranhamento a deputada Janaína Paschoal querer julgar a missão do padre Júlio Lancellotti lá na cracolândia a partir de sua visão burocrática e secular de caridade como uma mera prática de assistência social.
Lamentavelmente, a deputada estadual chegou a dizer, referindo-se à ação do padre na cracolândia, que “as pessoas que moram e trabalham naquela região já não aguentam mais. O Padre e os voluntários ajudariam se convencessem seus assistidos a se tratarem e irem para os abrigos. A distribuição de alimentos na Cracolândia só ajuda o crime”.
E eu achando que o problema da cracolândia é o crack, os traficantes que se aproveitam da decadência do vício... Diabolicamente, inverteu-se a lógica da caridade cristã em sua estrutura fundamental: quanto mais marmita, mais o viciado permanecerá na cracolândia. Quando mais caridade, mais crime. A droga, o viciado e o traficante são meros detalhes. Nesse mundo invertido, Violentia Caritas Est.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos