Um amigo me perguntou se existe “vocação para filosofia”. Trabalho com filosofia há pelo menos uns 16 anos e posso garantir com alguma segurança: não só existe no sentido de uma vocação pessoal como no sentido mais genuíno de a filosofia ser vocação da própria natureza humana. Explico. Na verdade, Aristóteles explica: o homem, por natureza, deseja o saber. Concordo tanto com ele. O sujeito da vocação filosófica não é o indivíduo com “dons” especiais. A capacidade de filosofar está ligada ao homem no sentido mais forte, porque a curiosidade vem de uma característica demasiadamente humana, uma exigência do ser racional e livre.
Por sua vez, não acredito que todas as pessoas desejam se aventurar na filosofia ou estejam dispostos a encarar desafios filosóficos. Pode ser maçante e os resultados não são imediatos. Filosofia não é ofício para os precitados. Por isso, faz mais sentido pensar numa predisposição humana em conhecer o sentido do mundo, saber como viver uma vida digna de ser vivida, buscar a verdade, o bem, a beleza e a justiça — embora alguns indivíduos não consigam disfarçar o desejo de se manter no conforto de suas convicções pessoais e o desprezo a certas exigências do intelecto.
Todos amam a verdade, mas nem todos estão dispostos a ir até às últimas consequências para investigá-la e questionar seus fundamentos. De qualquer forma, cada um sabe de seus problemas e ninguém precisa ser fiscal de interesses alheios. Entretanto, uma “psicologia” do ato de filosofar poderia ajudar a descrever o nosso apego por certas convicções. Nem só de pão e poder vive o homem. E, de fato, cada um vive sua busca pessoal como achar mais conveniente. Mas vale registrar que a vocação filosófica tem caráter universal e pode ser praticada por qualquer ser humano que tem coragem e paciência de se aventurar nessas águas tranquilas.
Do que trata o compromisso com a filosofia? Penso que se trata de um compromisso autoconsciente com a liberdade e com a realidade, cujo “propósito último”, para usar as palavras de Rémi Brague, filósofo francês que recomendo sempre, “é uma pretensão à universalidade, a pretensão de atingir verdades que valem para todos”. Esse vínculo entre busca pessoal e pretensão a verdades universais abre a alma para uma tensão própria dos seres humanos. Nosso ilimitado desejo de saber tem como ponto de partida o reconhecimento de uma incontornável condição de seres finitos e limitados.
Para dizer a verdade, na condição de mortal, o ser humano evoca a imortalidade; na condição de um mero fragmento da realidade, busca representar em sua consciência e esperança a imagem do todo. A melhor descrição dessa experiência humana foi feita pelo poeta William Blake:
Ver
um mundo em um grão de areia
e um céu numa flor selvagem
é ter o infinito na palma da mão
e a eternidade em uma hora.
O que distingue um mero diletante de quem dedica a vida ao saber do filósofo? Se a filosofia tem a ver com liberdade, o diletante é aquele que vive da aparência da liberdade. Estou pensando no diletante como alguém que tem curiosidade, mas não a coragem de se arriscar. No fundo, um entusiasta submisso à “beleza da coisa”, só que acomodado com a segurança de seu próprio mundinho.
A filosofia exige certos riscos. Penso a postura filosófica como a de alguém dedicado à realidade na sua forma mais crua, de uma busca constante e sem trégua à estrutura do mundo. Porém, essa busca depende de uma investigação acerca da estrutura do conhecimento e da linguagem. A filosofia faz críticas constantes à sua própria pretensão. Se em um primeiro momento há o desejo de olhar para a realidade tal como ela se apresenta para nós, sem filtros mentais, ideológicos e teóricos, não se pode deixar de considerar a investigação da própria linguagem e conhecimento.
O diletante inverte a ordem das coisas, e se torna prisioneiro de sua ideia de mundo e jamais submete a própria linguagem ao escrutínio da crítica filosófica. Em consequência, o diletante não passa de um colecionador e reprodutor de frases de efeito.
Particularmente, gosto de uma pergunta formulado por William James, filósofo que dediquei alguns anos estudando: “Qual é a missão que os filósofos se dedicaram a realizar e por que eles filosofam a respeito de tudo? Todos praticamente responderão de imediato: eles desejam alcançar uma concepção a respeito de um quadro de coisas que, em geral, deve ser mais racional do que a visão um tanto caótica que cada um, por natureza, carrega consigo debaixo do chapéu. Mas suponha que essa concepção racional seja alcançada, como o filósofo vai reconhecê-la e não a deixará escapar por ignorância?”.
Acho que o diletante sempre se esquiva de perguntar isso e deixa escapar seu vão interesse em pretensões vazias. Numa palavra: torna-se o ignorante prisioneiro da própria sabedoria.
Símbolo da autonomia do BC, Campos Neto se despede com expectativa de aceleração nos juros
Após críticas, Randolfe retira projeto para barrar avanço da direita no Senado em 2026
Novo decreto de armas de Lula terá poucas mudanças e frustra setor
Câmara vai votar “pacote” de projetos na área da segurança pública; saiba quais são