Mattia Preti, Diogenes and Plato.| Foto: Wikimedia Commons

Um amigo me perguntou se existe “vocação para filosofia”. Trabalho com filosofia há pelo menos uns 16 anos e posso garantir com alguma segurança: não só existe no sentido de uma vocação pessoal como no sentido mais genuíno de a filosofia ser vocação da própria natureza humana. Explico. Na verdade, Aristóteles explica: o homem, por natureza, deseja o saber. Concordo tanto com ele. O sujeito da vocação filosófica não é o indivíduo com “dons” especiais. A capacidade de filosofar está ligada ao homem no sentido mais forte, porque a curiosidade vem de uma característica demasiadamente humana, uma exigência do ser racional e livre.

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Por sua vez, não acredito que todas as pessoas desejam se aventurar na filosofia ou estejam dispostos a encarar desafios filosóficos. Pode ser maçante e os resultados não são imediatos. Filosofia não é ofício para os precitados. Por isso, faz mais sentido pensar numa predisposição humana em conhecer o sentido do mundo, saber como viver uma vida digna de ser vivida, buscar a verdade, o bem, a beleza e a justiça — embora alguns indivíduos não consigam disfarçar o desejo de se manter no conforto de suas convicções pessoais e o desprezo a certas exigências do intelecto.

Todos amam a verdade, mas nem todos estão dispostos a ir até às últimas consequências para investigá-la e questionar seus fundamentos. De qualquer forma, cada um sabe de seus problemas e ninguém precisa ser fiscal de interesses alheios. Entretanto, uma “psicologia” do ato de filosofar poderia ajudar a descrever o nosso apego por certas convicções. Nem só de pão e poder vive o homem. E, de fato, cada um vive sua busca pessoal como achar mais conveniente. Mas vale registrar que a vocação filosófica tem caráter universal e pode ser praticada por qualquer ser humano que tem coragem e paciência de se aventurar nessas águas tranquilas.

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Do que trata o compromisso com a filosofia? Penso que se trata de um compromisso autoconsciente com a liberdade e com a realidade, cujo “propósito último”, para usar as palavras de Rémi Brague, filósofo francês que recomendo sempre, “é uma pretensão à universalidade, a pretensão de atingir verdades que valem para todos”. Esse vínculo entre busca pessoal e pretensão a verdades universais abre a alma para uma tensão própria dos seres humanos. Nosso ilimitado desejo de saber tem como ponto de partida o reconhecimento de uma incontornável condição de seres finitos e limitados.

Para dizer a verdade, na condição de mortal, o ser humano evoca a imortalidade; na condição de um mero fragmento da realidade, busca representar em sua consciência e esperança a imagem do todo. A melhor descrição dessa experiência humana foi feita pelo poeta William Blake:

Ver um mundo em um grão de areia
e um céu numa flor selvagem
é ter o infinito na palma da mão
e a eternidade em uma hora.

O que distingue um mero diletante de quem dedica a vida ao saber do filósofo? Se a filosofia tem a ver com liberdade, o diletante é aquele que vive da aparência da liberdade. Estou pensando no diletante como alguém que tem curiosidade, mas não a coragem de se arriscar. No fundo, um entusiasta submisso à “beleza da coisa”, só que acomodado com a segurança de seu próprio mundinho.

A filosofia exige certos riscos. Penso a postura filosófica como a de alguém dedicado à realidade na sua forma mais crua, de uma busca constante e sem trégua à estrutura do mundo. Porém, essa busca depende de uma investigação acerca da estrutura do conhecimento e da linguagem. A filosofia faz críticas constantes à sua própria pretensão. Se em um primeiro momento há o desejo de olhar para a realidade tal como ela se apresenta para nós, sem filtros mentais, ideológicos e teóricos, não se pode deixar de considerar a investigação da própria linguagem e conhecimento.

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O diletante inverte a ordem das coisas, e se torna prisioneiro de sua ideia de mundo e jamais submete a própria linguagem ao escrutínio da crítica filosófica. Em consequência, o diletante não passa de um colecionador e reprodutor de frases de efeito.

Particularmente, gosto de uma pergunta formulado por William James, filósofo que dediquei alguns anos estudando: “Qual é a missão que os filósofos se dedicaram a realizar e por que eles filosofam a respeito de tudo? Todos praticamente responderão de imediato: eles desejam alcançar uma concepção a respeito de um quadro de coisas que, em geral, deve ser mais racional do que a visão um tanto caótica que cada um, por natureza, carrega consigo debaixo do chapéu. Mas suponha que essa concepção racional seja alcançada, como o filósofo vai reconhecê-la e não a deixará escapar por ignorância?”.

Acho que o diletante sempre se esquiva de perguntar isso e deixa escapar seu vão interesse em pretensões vazias. Numa palavra: torna-se o ignorante prisioneiro da própria sabedoria.