A democracia é frágil, de fato. Trata-se de um sistema de consenso que administra os ódios com o objetivo de criar um ambiente de convivência pacífica entre adversários. Noutras palavras, aceitar derrotas é parte fundamental desse processo. Agora, o que faz o militante de esquerda ao ser derrotado nas urnas? Vejamos.
Zélia Duncan, artista militante, em sua conta no X, afirmou: “Boulos perder essa eleição na atmosfera fascista de SP, diz muito mais de SP do que de Boulos. Agora é resistir”. Declaração sintomática de uma dinâmica perigosa no debate público contemporâneo: a demonização do adversário. Tratar qualquer derrota como prova de um suposto “fascismo” que se apodera do outro lado do espectro político é o que coloca a democracia em risco.
Nesse contexto, lembrei-me de Jürgen Habermas. Um autor de esquerda que nos alerta que uma democracia autêntica exige mais que a vitória eleitoral. Para ele, e concordo nesse particular, a democracia demanda uma esfera pública ativa onde o diálogo e o entendimento sejam alcançados através de uma racionalidade mais substantiva. Para Habermas, a verdadeira força da democracia está na capacidade dos cidadãos de se engajarem em discussões racionais e abertas, livres de manipulações ou coerções, livres de ataques gratuitos. Ou seja, devem buscar um consenso que respeite a diversidade de opiniões.
Zélia Duncan deseja domesticar a democracia. Ela quer uma democracia onde todos concordem com seu sistema de valores. Por isso, quando seu lado perde, o outro é um fascista perigoso
Habermas define alguns critérios claros para o debate ser racionalmente legítimo. Destaco dois. Grosso modo, o primeiro critério é o de validade de verdade, em que as alegações feitas durante o debate precisam estar baseadas em fatos verificáveis, de modo que o discurso se ancore em realidades compartilhadas e não em suposições ou desinformações (chamar os adversários de fascistas, como faz Zélia Duncan, não passaria no teste). O segundo critério é a sinceridade, que exige de cada participante do debate que suas ideias sejam expressas de maneira autêntica, sem ocultar intenções ou manipular a informação (chamar o adversário de fascista também não passaria).
Para Habermas, essa postura exige que adversários políticos sejam vistos não como inimigos a serem vencidos, mas como interlocutores legítimos a serem compreendidos. Esse tipo de engajamento fortalece a coesão social e impede que a política se reduza a um jogo de poder em que o outro seja estigmatizado. Contrariando a lógica de demonização, que transforma o dissenso em ameaça, Habermas defende que a política democrática deve ser um espaço de reconciliação de interesses diversos, conduzida pela razão pública. A perda de uma eleição ou a divergência de opinião não devem ser encaradas como sinais de hostilidade intransponível, mas como oportunidades para fortalecer o debate e, portanto, convivência democrática.
O que Zélia Duncan deseja é domesticar a democracia. Só isso. Ela quer uma democracia onde todos concordem com seu sistema de valores. Por isso, quando seu lado perde, o outro é um fascista perigoso. George Orwell, também um autor de esquerda, em seu ensaio O que é fascismo?, publicado em 1944, já nos forneceu uma base importante para analisar esse fenômeno. Orwell argumenta que a palavra “fascismo” havia perdido qualquer significado concreto e passou a ser utilizada indiscriminadamente para descrever qualquer pessoa ou grupo com que não se concorda. A afirmação de Duncan é um exemplo preciso do que o perspicaz autor de 1984 denunciou. O termo “fascista” precisa ser tão vago e impreciso que se torna uma ferramenta retórica cujo objetivo é deslegitimar o adversário e alienar qualquer um que tenha uma perspectiva contrária.
Como eu escrevi no meu livro A Imaginação Totalitária, em 2016, a demonização do adversário é um dos elementos centrais da imaginação totalitária. Ela cria a figura do inimigo absoluto, um adversário que não pode ser apenas criticado ou derrotado, mas que deve ser eliminado a qualquer custo. A imaginação cria um ambiente de violência redentora – onde o ato de se opor ao outro lado não é apenas uma escolha política, mas um dever moral inescapável, já que o outro lado é pintado como a encarnação do mal absoluto. Essa construção do inimigo transforma o adversário em algo desumanizado, o que facilita a aceitação moral de sua destruição. Uma forma sofisticada de justificar qualquer tipo de resistência como uma espécie de purificação da sociedade.