Diante da necessidade de se contrastar as revoluções seculares, como a Revolução Francesa, com a revolução impulsionada pela fé do Israel antigo, a editora Vida Nova lançou neste fim de 2022 a obra A Carta Magna da humanidade: a fé revolucionária do Sinai e o futuro da liberdade. O autor do livro, Os Guinness, nasceu na China e foi criado na Inglaterra. Foi o principal redator do Williamsburg Charter e do Global Charter of Conscience. Tendo recebido seu doutorado em Ciências Sociais pelo Oriel College, da Universidade de Oxford, é fundador do Trinity Forum, professor visitante do Brookings Institution e senior fellow do East West Institute. É autor de mais de 30 livros, entre eles O chamado, Gente impossível, Conversa de tolos, Sete pecados capitais, Renascimento, Encontrando Deus em meio à dúvida e A grande busca pelo sentido da vida. Esta apresentação da obra foi escrita com a ajuda de Willy Robert Henriques, que é graduado em Teologia pelo Seminário Martin Bucer, mestrando em Divindade pelo Seminário Martin Bucer e pastor da Igreja Batista Redenção, em Juiz de Fora (MG).
Um problema na França
De acordo com Edmund Burke: “A Revolução Francesa é a mais espantosa que aconteceu até agora no mundo. As coisas mais surpreendentes foram produzidas em mais de um caso, pelos meios mais absurdos e ridículos; nos modos mais ridículos, e, aparentemente, pelos mais vis instrumentos. Tudo parece fora do natural neste estranho caos de leviandade e ferocidade, onde todas as espécies de crimes misturam-se com todas as espécies de loucuras. Em vista dessa monstruosa cena tragicômica, necessariamente as paixões mais opostas se sucedem e às vezes se misturam, fazendo-nos passar do desprezo à indignação, do riso às lágrimas, do desprezo ao horror”. Essas são palavras críticas sobre uma revolução tão celebrada pela esquerda, que é tratada como sendo o modelo e o nascedouro do ideal de liberdade, igualdade e fraternidade.
No entanto, de acordo com as palavras de Burke, parece que esta revolução não foi tão libertária como se pensa, nem tampouco igualitária – entre junho de 1793 e julho de 1794, 16.594 pessoas foram executadas durante o Período do Terror na França, sendo 2.639 mortes só em Paris; outras 10 mil morreram na prisão, sem julgamento. Se a Revolução Francesa, que se propõe ser libertadora, na verdade não o foi, teremos no passado algum tipo de ideal de revolução que vindicou a luta pelos mais fracos e oprimidos e na qual podemos nos espelhar? Para Guinness, houve, sim – e, segundo ele, o modelo perfeito de revolução está consagrado nos ideais bíblicos do Êxodo do povo de Israel do Egito, sob a liderança de Moisés, ocorrida em algum momento entre os séculos 15 e 13 a.C., como registrado no Antigo Testamento.
Se a Revolução Francesa, que se propõe ser libertadora, na verdade não o foi, teremos no passado algum tipo de ideal de revolução que vindicou a luta pelos mais fracos e oprimidos e na qual podemos nos espelhar?
Lealdades trocadas
Em seu livro, Guinness argumenta sobre como os Estados Unidos, na atualidade, assim como todo o Ocidente, cada vez mais se movimentam em uma direção oposta ao seu ideal fundacional de liberdade, rumando em direção a um movimento turbinado por violência, saques, incêndios criminosos e anarquia – tudo isso em nome dos oprimidos e desvalidos da sociedade. Com isso, segundo o autor, esta nação caminha tendo como base os ideais da Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que deixa de lado os ideais que pautaram a sua fundação, em 1776 – e que haviam sido, em certa medida, baseados no livro bíblico do Êxodo.
A argumentação de Guinness é fundamentada em três temas. Primeiro, ele mostra que a crise americana é uma crise de liberdade. Em segundo, ele mostra que, nos últimos 50 anos, os principais segmentos da sociedade americana trocaram suas lealdades e agora apoiam ideias mais próximas da Revolução Francesa e de seus herdeiros que da Revolução Americana. Como ele afirma,“as duas revoluções compartilham o mesmo nome, revolução, e ocorreram no mesmo século, o 18, mas são decisivamente diferentes em quase todos os aspectos: fontes, pressupostos, políticas, narrativas e resultados”. Em terceiro, Guinness entende que chegou a hora de entrar em cena um novo impulso a favor da liberdade e da justiça para a humanidade, e historicamente, foi a Revolução do Êxodo, e não a Revolução Francesa, que inspirou o espírito de liberdade ordenada dos Estados Unidos. Assim, a redescoberta dos princípios fundacionais da Revolução do Êxodo seria o segredo antigo e futuro da verdadeira fé revolucionária e um caminho seguro em direção à liberdade, à justiça, à igualdade e à paz.
Deus no Sinai
Guinness inicia mostrando que a Revolução do Sinai começa com Deus e sua revelação, e isso é de extrema importância, pois “onde você se encontra e onde você começa implica como você vê o que vê e também definirá a probabilidade de sucesso ou de fracasso em sua empreitada”. Se por um lado a Revolução do Sinai começa com Deus, por outro lado mencionar Deus hoje é motivo de inúmeras controvérsias, e é também abrir espaço para as mais violentas objeções. A ideia tola de que o Iluminismo suplantou toda crença racional em Deus, de uma vez por todas, influenciou e segue influenciando hoje a maneira como a sociedade enxerga suas próprias estruturas. Com isso, a esquerda militante segue destilando o seu ateísmo, anticlericalismo e animosidade explícita contra a Igreja e contra Deus. Esse quadro histórico reforçou a indignação e os ressentimentos sociais e econômicos mais generalizados, resultando na aguda separação entre a Igreja e o Estado, e que é hoje o traço característico da fé revolucionária dos movimentos políticos de esquerda.
O autor parte, então, para um aspecto histórico da Revolução Francesa, mostrando que, dez anos após a Revolução, a facção jacobina e seus partidários devastaram regiões inteiras da França, como a cidade de Lyon e o departamento de Vendée. Tal devastação teve seu ódio concentrado de forma brutal contra o clero e contra a casa real, nobres e outros desafortunados no que ficou conhecido como o Período do Terror. Guinness argumenta que esses revolucionários apelavam para ideais positivos, como a razão, a liberdade e a natureza, mas sempre com o objetivo de servir à sua luta até a morte contra a Igreja e contra Deus. Isso resultou em igrejas saqueadas e padres assassinados, além da remoção de todas as cruzes e estátuas dos cemitérios da França. Na tentativa de reprimir qualquer esperança da ressurreição, nos portões dos cemitérios foi gravada apenas uma inscrição, “a morte é um sono eterno”. O autor segue: “O clímax do ateísmo revolucionário foi o célebre Culto da Razão (Culte de la Raison) em novembro de 1793. Foi a primeira religião ateísta criada com o patrocínio do Estado na Europa e a primeira tentativa da história humana de eliminar totalmente a religião e a prática religiosa”. Isso levou as igrejas a serem desapropriadas e transformadas em templos da Razão.
Nesse ponto da argumentação o autor faz uma pergunta interessante: ele questiona se esse ateísmo militante foi acidental ou fundamental para a Revolução Francesa. E sua resposta se serve das palavras de Alexander Solzhenitsyn: “Nunca antes o mundo conhecera um ateísmo tão organizado, militarizado e obstinadamente malévolo como o praticado pelo marxismo. No sistema filosófico de Marx e de Lênin, e no âmago de sua psicologia, o ódio a Deus é a principal força motriz, mais fundamental do que todas as suas pretensões políticas e econômicas. O ateísmo militante não é meramente incidental ou marginal à política comunista; não é um efeito colateral, e sim seu eixo central”.
Essa verdade atestada por Solzhenitsyn é claramente percebida em nossos dias, e o autor a conecta muito bem com o modus operandi dos movimentos marxistas radicais como os Antifas que queimaram bíblias em Portland, em 2020, e os manifestantes do Black Lives Matter que seguiram em passeata pelas ruas de Charlotte, na Carolina do Norte, cantando “F***** seu Jesus”. Diante dessa realidade, fica claro que qualquer referência a Deus, ao Sinai ou à importância da fé para a liberdade seria escarnecida, se não repudiada, desde o início. Isso, no entanto, exige que tais conceitos sejam não apenas mencionados, como veementemente defendidos. Como ele escreve: “No seu tempo, foram os revolucionários franceses; hoje são seus herdeiros socialistas e marxistas os que lideram o aumento da hostilidade contra os religiosos no mundo de hoje. O histórico perturbador da revolução é uma advertência solene sobre o colapso atual das palavras empregadas no discurso público. A menos que a espiral declinante seja interrompida, a retórica inflamada de hoje será a precursora da violência explícita de amanhã e, depois, da busca de um bode expiatório, e até mesmo de assassinatos”.
A ideia tola de que o Iluminismo suplantou toda crença racional em Deus, de uma vez por todas, influenciou e segue influenciando hoje a maneira como a sociedade enxerga suas próprias estruturas
Ainda no contexto da análise e aplicação da história, o autor segue afirmando que a animosidade anticristã e antirreligiosa da Revolução Francesa serve de advertência sobre como não resolver problemas hoje. Segundo ele, a história atesta que diferentes visões de mundo nunca são realmente resolvidas ou conciliadas com porretes, baionetas, balas, bombas e derramamento de sangue, mas sim com o diálogo e o debate. Com isso ele aponta, mais uma vez, para o aumento das hostilidades contra os religiosos como sendo consequência da violência perpetrada pelos revolucionários franceses.
Real igualdade
Na parte que se segue, o autor passa a olhar para as catástrofes que acometeram o século 20, deixando um saldo de 230 milhões de homens, mulheres e crianças mortas, tudo isso por causa das inúmeras guerras e conflitos. Nesse ponto, Guinness passa a discutir sobre onde se fundamenta a dignidade humana. E, segundo ele, tal indagação não recebe resposta concreta procedente do Oriente ou dos secularistas, pois suas perspectivas acerca da humanidade oferecem poucas perspectivas para a dignidade humana. É aí que entra a resposta simples e ousada das Escrituras: “O ser humano foi criado à imagem e à semelhança de Deus”. Com isso, pode-se declarar de forma inequívoca que Deus é o próprio fundamento e a própria garantia da dignidade da pessoa humana. E esse ponto, dentro da argumentação maior do autor, é de extrema importância, pois nenhum conceito materialista do homem consegue defender de forma plena a sua devida dignidade e, assim, preservar sua real liberdade. Logo, para se combater as desigualdades, racismos, preconceitos e outros males do tipo, somente uma visão bíblica é a que realmente mostra quem de fato é o homem e por que sua liberdade é valiosa.
Enquanto, por um lado, o autor aponta a importância da liberdade tendo como base a Declaração de Gênesis – de que o ser humano foi criado à imagem e à semelhança de Deus –, por outro ele argumenta que a liberdade e igualdade devem andar juntas, no entanto, de forma equilibrada, que ele chama de “igualdade em dignidade”. Esse ponto começa com uma crítica à igualdade exagerada: “A insistência na igualdade enfrenta inúmeros problemas. Em primeiro lugar há o fato óbvio e intransponível de que, segundo a maior parte dos parâmetros – força, velocidade, inteligência, talento e riqueza, por exemplo –, os seres humanos não são iguais uns aos outros e jamais serão. Desde o primeiro contato com a escola e os testes para os níveis mais elevados dos esportes olímpicos até os negócios de todos os tipos e a história dos homens nas guerras, a glória das disputas e das competições constitui um lembrete constante de nossas desigualdades humanas, as quais nenhum governante, nenhuma lei e nenhum zelo jamais serão capazes de erradicar”. Após afirmar essa obviedade, que é constantemente distorcida, quando não até mesmo negada pelos socialistas marxistas, Guinness mostra que a esquerda radical e progressista, baseada na Revolução Francesa bem como nas revoluções russa e chinesa, insiste na ideia de que os seres humanos só podem se tornar plena e formalmente iguais por meio de medidas draconianas que resultam em silenciar os dissidentes, desprezar a diversidade e achatar as distinções. Ou seja, a igualdade se dá por sacrificar os diferentes.
Outro ponto observado pelo autor é que a busca desordenada de igualdade e de não discriminação tem um efeito amplo de nivelamento, porque confunde igualdade de pessoalidade com igualdade de comportamento e, com isso, abre a porta para a amoralidade. Por um lado, elimina-se a diversidade ao reduzir os indivíduos a membros de grupos rotulados de acordo com o sexo, a raça, a classe e a idade. Por outro, descartam-se os critérios morais e sociais bem como toda e qualquer consideração que não seja a igualdade e, assim, encoraja-se a igualdade de direitos de todos os comportamentos, a despeito dos critérios morais ou das consequências sociais. Portanto, em uma sociedade liberal que preza a igualdade radical, os comportamentos antes considerados errados agora se tornam uma prática a mais no mosaico das diversas práticas que demandam direitos iguais aos das demais. Daí o autor conclui: “Se, por exemplo, a igualdade for o único padrão, em que bases alguém poderia negar direitos iguais aos defensores do poliamor, do casamento infantil, da circuncisão genital feminina, da pedofilia, do incesto e do sexo com animais? Pelos padrões da esquerda progressista, os que defendem esses comportamentos são minorias e, portanto, membros de grupos oprimidos e candidatos à libertação. Se a igualdade for o único critério, como alguém que se opõe a essas práticas poderá escapar da acusação de preconceito, intolerância e ódio?” Com isso, o autor defende que a igualdade por si só é um critério extremamente perigoso para uma sociedade. Ela deve, então, ser equilibrada pela dignidade do indivíduo, pela moralidade e pelas consequências sociais do comportamento.
Sobre a liberdade
O autor ainda trabalha questões como a necessidade de uma liberdade realista; a liberdade sem algemas, que seria a falsa ideia de que para ser livre não se deve depender de ninguém, não receber coisa alguma de ninguém e assim não dever nada a ninguém; a insistência no ataque à família; a falsa liberdade proposta pela pornografia que, na verdade, é uma flagrante objetificação do outro. Guinness também traz uma explanação da libertação dos israelitas do jugo egípcio no Êxodo, e fala sobre os três princípios básicos da liberdade compartilhada: 1. liberdade não é permissão para fazer o que se quer, e sim o poder para fazer o que se deve fazer; 2. a liberdade de cada um é livre somente à medida que cada um respeite também a igual liberdade de todos os demais; 3. a liberdade comunitária significa a liberdade para cada um e a liberdade para todos a serviço do bem de todos.
Endireitando o que está errado
Após apontar os diversos erros da esquerda radical, baseados na Revolução Francesa, Guinness passa a apresentar o jeito certo de se buscar a liberdade. E ele já parte apontando a necessidade de perdão. No entanto, ele enfatiza que, para isso acontecer de forma harmônica, urge a necessidade da confissão dos próprios erros e não somente a prática impessoal de pedir perdão pelos erros do passado. E isso, segundo ele, está diretamente ligado ao modus operandi radical do ressentimento das militâncias, que afirmam lutar contra as desigualdades. Alienadas de qualquer ideia de perdão e reconciliação, os grupos radicais buscam a liberdade alimentados pelo ressentimento, que acaba se tornando um escape perfeito para a ira invejosa. Tal ira sacode os punhos, põe fogo em prédios, derruba monumentos e saqueia lojas. Ele segue: “Mas o que realmente importa não é a face bárbara da extrema esquerda, que de fato é extrema. O que destrói a república é a ideologia revolucionária por trás dela, uma ideologia que é muito mais sofisticada e bem mais difícil de combater do que o incêndio e os saques nas ruas. O vandalismo pode ser contido pela lei e pela ordem, mas o contágio de ideias perigosas que se espalham é mais difícil de conter do que uma pandemia. No fim das contas, essas ideias é que subverterão a lei e tumultuarão a ordem bem mais do que os desordeiros”.
A esquerda radical e progressista insiste na ideia de que os seres humanos só podem se tornar plena e formalmente iguais por meio de medidas draconianas que resultam em silenciar os dissidentes, desprezar a diversidade e achatar as distinções. Ou seja, a igualdade se dá por sacrificar os diferentes
O autor conclui sua obra apresentando a maneira dos profetas do Antigo Testamento para lidar com os erros, para, dessa forma, advogar um ideal de liberdade e justiça baseado nas Escrituras. Ele afirma que a Escritura insiste no realismo e na responsabilidade, ou na falibilidade individual. Segundo ele, todos nós temos a tendência a nos desviar e fazer o que é errado. Todos os seres humanos cometem erros, e todos pecam. Dessa forma, tanto a vida social quanto a vida política precisam pressupor que as coisas darão errado, providenciando mecanismos para que as pessoas prestem contas quando errarem e proporcionando um modo de lidar com isso enquanto fizerem. No entanto, ele enfatiza, é importante que, em uma sociedade livre, o caráter e a prestação de contas pessoal não competem ao governo, embora sejam essenciais como precondição para a prestação de contas pública. O ponto do autor é mostrar que, como Criador do universo e soberano da história, Deus é a única autoridade mais elevada do que o ser humano diante de quem nós, humanos, temos de prestar contas. Ele afirma: “Sem Deus, a força prevalecerá sobre a justiça, e os erros serão sempre julgados e tratados de acordo com a vontade do poderoso”. Outro elemento usado pelo autor para lidar com a questão é a justiça humana pessoal e individual, centrada em Deus.
O livro de Guinness é excelente, amplo e extremamente necessário para corrigir e reformar os conceitos errados prevalecentes na atualidade relacionados à igualdade, liberdade, justiça e revolução, de acordo com os ideais bíblicos que fundaram a sociedade ocidental. Qualquer revolução que tente levar o homem à liberdade sem levar em conta a Palavra de Deus não passará de anarquia baseada em preferências humanas ou arbitrariedades autoritárias, onde “liberdade” não passa de um jargão vazio e sem sentido.
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