O apóstolo João escreveu o livro do Apocalipse por volta do ano 95 d.C., durante o reinado do imperador romano Tito Flávio Domiciano. Este havia exigido que o adorassem como “senhor e deus”, e a recusa dos cristãos em obedecer a seu édito resultou em perseguição em algumas regiões do império. De acordo com a tradição, foi Domiciano quem enviou João para a ilha de Patmos, uma colônia penal de Roma na costa da Ásia Menor. O livro do Apocalipse foi enviado de lá como uma carta circular às igrejas existentes em sete cidades da Ásia Menor, e deveria ser lido em voz alta nos cultos. Era uma mensagem dirigida às necessidades reais dos cristãos do primeiro século, oferecendo uma mensagem de estímulo a eles, que estavam sob grande pressão, assegurando-lhes que os inimigos da fé seriam destruídos e que no fim Deus triunfaria. Esta revelação desafia os cristãos a combater as sutis forças do mal, mesmo que estas se encontrem dentro de si mesmos. Satanás deve ser vencido e a Jesus deve ser dado o lugar que por direito lhe pertence, aqui e agora, na vida espiritual e moral dos cristãos.
Em Apocalipse 1,9-20 João descreve a revelação de Jesus Cristo (Ap 1,1), e oferece um relato da primeira visão recebida, que começa com uma aparição de Jesus exaltado e glorificado, condição e pano de fundo de todo o quadro das coisas que em breve devem acontecer.
“Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus, estava na ilha de Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor, eu me encontrei em espírito e ouvi atrás de mim uma voz forte, como de trombeta, que dizia: Escreve em um livro o que vês e envia-o às sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia. Virei-me para ver quem falava comigo. Ao me voltar, vi sete candelabros de ouro e, no meio dos candelabros, havia alguém semelhante a um ser humano, vestindo uma túnica longa e uma faixa de ouro na altura do peito. Sua cabeça e seus cabelos eram brancos como a lã, tão brancos como a neve, e seus olhos eram como uma chama de fogo. Seus pés eram parecidos com metal brilhante, refinado em uma fornalha, e sua voz era como a voz de muitas águas. Na mão direita ele segurava sete estrelas, e da sua boca saía uma espada afiada de dois gumes. Seu rosto brilhava como o sol no seu fulgor. Quando o vi, caí a seus pés como se estivesse morto. Então, ele pôs a mão direita sobre mim e disse: Não temas, eu sou o primeiro e o último. ‘Eu sou o que vive; fui morto, mas agora estou aqui, vivo para todo sempre e tenho as chaves da morte e do inferno.’ Portanto, escreve as coisas que tens visto, tanto as do presente como as que acontecerão depois destas. Este é o mistério das sete estrelas, que viste na minha mão direita, e dos sete candelabros de ouro: as estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas.”
Dois grandes poderes estão em conflito: o reino de Deus e o poder de Satanás. A igreja está no meio dos dois, sendo o objeto do ódio satânico, destinada a sofrer perseguição
Em Apocalipse 1–3, Jesus é apresentado como o Rei e Sacerdote exaltado, ministrando às igrejas; em Apocalipse 4–5, é apresentado no céu como o Cordeiro glorificado de Deus, reinando no trono; em Apocalipse 6–18, é o Juiz de toda a terra; em Apocalipse 19 ele volta como o Rei dos reis vitorioso, derrotando e esmagando todos os seus inimigos. O livro encerra com o Noivo celestial conduzindo a noiva, a Igreja, à cidade celestial gloriosa, a Cidade Santa, a nova Jerusalém (Ap 21,2). Todo o Apocalipse, inclusive esta passagem, contém muitas referências a Êxodo, Daniel, Ezequiel e Zacarias, e ocorre a citação recorrente do número sete, que significa “completude” ou “plenitude”, citação derivada dos dias da Criação.
A situação de João e a ordem para escrever a visão
O apóstolo se apresentou como vosso irmão, como alguém que conhecia bem os cristãos da Ásia Menor, e era companheiro na tribulação, no reino e na perseverança em Jesus daqueles cristãos. Não deve passar despercebido que o fato de reino ser inserido entre tribulação e perseverança, evidenciando a certeza da esperança cristã e a insistência de que “é necessário que passemos por muitas tribulações para entrarmos no Reino de Deus” (At 14,22). João estava preso na ilha de Patmos, uma pequena ilha no Mar Egeu, próxima do porto de Mileto, que era conectado a Éfeso. João foi banido para Patmos, acusado de “subversão política”, na época de Domiciano, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Eusébio de Cesareia (HE 3.20.9) afirmou, com base no “relato dado por homens antigos entre nós”, que João foi finalmente liberto do exílio, após a morte de Domiciano, pelo imperador Nerva, em 96 d.C., e fixou residência em Éfeso, onde faleceu.
Nesse trecho podemos perceber que dois grandes poderes estão em conflito: o reino de Deus e o poder de Satanás. A igreja está no meio dos dois, sendo o objeto do ódio satânico, destinada a sofrer perseguição. Assim, o testemunho ou martírio deve ser feito sem concessões e de forma fiel. A tribulação significa exílio, encarceramento, ostracismo, calúnias, pobreza, exploração econômica, violência e a constante ameaça das ações judiciais que os cristãos sofrerem nas mãos dos poderes demoníacos. A grande tribulação do fim será a intensificação do que a Igreja tem sofrido durante os séculos. E, por causa destes males, precisamos de perseverança, persistência e fidelidade a Deus em meio ao sofrimento e à perseguição nas mãos dos incrédulos. Pois os cristãos experimentam todas estas dificuldades em Jesus, na união espiritual do crente com seu Senhor, participando de sua vida e glória.
Depois João afirmou que me encontrei em espírito, isto é, foi tomado de um êxtase profético, uma experiência similar àquela que Ezequiel experimentou no século 6.ª a.C. (Ez 3,22 etc.). Tal experiência ocorreu no dia do Senhor, como foi chamado o primeiro dia da semana, que passou a marcar o dia do triunfo de Jesus, o dia da sua ressurreição. A expressão também é semelhante ao “Dia do Senhor” do Antigo Testamento, o dia da vindicação da causa de Iahweh e da sua vitória sobre todas as forças que se lhe opõem. O dia da ressurreição de Jesus pode ser apropriadamente chamado de dia do Senhor, o “Dia D”, o dia da ação decisiva, que garante o futuro “Dia V”, a celebração da vitória final. Nesse dia, o apóstolo ouviu uma voz forte, como de trombeta. No Antigo Testamento o povo de Israel se reunia ao som de uma trombeta, a fim de sinalizar as guerras, o anúncio da chegada do rei e cultos de adoração durante procissões festivas ou holocaustos. João ouve que ele deve escrever em um livro o que ele veria. E um comando se segue: envia-o às sete igrejas. A ordem em que aparecem as sete cidades é uma trajetória circular que um mensageiro seguiria para visitá-las uma a uma, começando em Éfeso, indo ao norte via Esmirna para Pérgamo, voltando-se na direção sudeste para visitar Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia. Estas cidades foram escolhidas porque eram centros organizacionais a partir de onde as mensagens recebidas seriam divulgadas para outras igrejas da província – mas também eram locais de culto ao imperador. O significado do número sete indica que essas igrejas representam todas as igrejas daquela época e do presente.
A visão de Jesus exaltado
Voltando-se para ver de onde vinha a voz, João teve sua primeira visão, o Jesus exaltado, retratado como um sacerdote celestial que cuida dos sete candelabros de ouro, quesimbolizam as sete igrejas mencionadas. Há uma relação intencional aqui com a figura mais conhecida do candelabro de sete braços do santuário de Israel, a menorá sagrada, para destacar que as igrejas, em continuidade com Israel, são retratadas como luzes de Deus que brilham no meio de um mundo hostil. Assim, é destacado que a função da igreja, tal qual Israel, é oferecer luz ao mundo. A igreja é muito preciosa para o Senhor Jesus, e ele demanda pureza e santidade da igreja. Assim também, a unidade da igreja não está na sua organização, mas no seu relacionamento com Jesus, que estava no meio dos candelabros. O aspecto de os candelabros estarem separados é destacado pelo fato de que se pode ver o Senhor caminhando entre eles.
E Jesus se revela a João como semelhante a um ser humano, imagem baseada em Daniel 7,13, e que significa “semelhante a um filho de homem”, em contraste com os animais vistos pelo profeta Daniel, anteriormente, em sua visão. O uso que Jesus faz do título “filho do homem” também remonta à mesma passagem do profeta Daniel. Aqui, o que é semelhante a um ser humano é identificado com o Jesus ressurreto e glorificado, que usava uma túnica longa, o manto do sumo sacerdote de comprimento completo, junto com um uma faixa de ouro, como é adequado a um sumo sacerdote de Israel. Jesus, assim, é retratado na visão de João em seu ofício de rei e sacerdote exaltado – como o Soberano dos reis da terra e como o que veste o manto do sumo sacerdote. Portanto, Jesus é revelado em Patmos não mais como o servo humilde e sofredor, mas sim como o Senhor glorioso, que recebeu do Pai um reino e domínio eterno. E Jesus se move no meio da igreja, e está presente em sua igreja, por menor, desprezada ou perseguida que a igreja seja. Ele está sempre atento às necessidades de seu povo.
O testemunho ou martírio deve ser feito sem concessões e de forma fiel. A tribulação significa exílio, encarceramento, ostracismo, calúnias, pobreza, exploração econômica, violência e a constante ameaça das ações judiciais sofridas pelos cristãos
E sua cabeça e seus cabelos eram brancos como a lã, tão brancos como a neve, imagem quelembra Daniel 7,9, mas ali é o “ancião de dias” que é assim descrito, enquanto aqui é o Jesus ressurreto. O que é revelado é que o Filho tem a mesma aparência que Deus Pai, cujo traje é branco como neve e cujo cabelo é como lã pura. Essa transferência global dos atributos de Deus a Jesus é característica do Apocalipse, atestando a divindade de Jesus. E seus olhos eram como uma chama de fogo, ou seja, como o visitante celestial de Daniel 10,6, cujos olhos eram “como tochas acesas”. Portanto, de acordo com a visão, Jesus é Deus junto com o Pai, e não fica velho nem perde o seu poder. Seus olhos revelam tanto sua onisciência que sonda os corações como sua ira santa contra tudo que não é santo.
E seus pés eram parecidos com metal brilhante, refinado em uma fornalha, ou seja, destaca a pureza moral de Jesus. E sua voz era como a voz de muitas águas, como o som de uma torrente impetuosa após uma chuva pesada, um som assustador. Assim, a visão transmite a ideia de que a voz de Jesus se faz ouvir acima de todas as outras, em palavras de salvação e conforto, em palavras de advertência e julgamento. E a visão também revela Jesus como aquele que governa por meio de providência irresistível, executa todos os seus propósitos, pisa todos os seus inimigos e realiza todos os seus juízos. Na mão direita ele segurava sete estrelas, ou seja, Jesus tem domínio e soberania sobre as regiões celestes. E da sua boca saía uma espada afiada de dois gumes, uma referência à profecia de Isaías 11,4, em que o Messias “com suas palavras, como se fossem um cajado, ferirá a terra; com o sopro de sua boca matará os ímpios”. Esta é a espada do juízo, que proclama julgamento sobre os impenitentes e desobedientes. Por fim, o rosto de Jesus brilhava como o sol no seu fulgor, pois ele é o exaltado, que tem poder e grande glória, é o rei vitorioso. E tem autoridade e poder para ensinar e julgar, e é impossível escapar dele. É o santo, elevado demais para ser contemplado pelos olhos humanos pecadores.
A interpretação da revelação que vem de Jesus
De acordo com João, ao ver Jesus, caí aos seus pés como morto, tal qual o profeta Ezequiel. Ele cai sobre o seu rosto diante da glória, e como Ezequiel é posto de pé novamente. Assim, Jesus pôs sobre mim sua mão direita, o que destaca que o homem que caiu prostrado diante de Deus e foi colocado sobre seus pés por Deus pode, a partir daí, encarar o mundo inteiro como o destemido porta-voz de Deus. E Jesus afirma ser o primeiro e o último. Os títulos do Deus de Israel agora são portados por Jesus: “Eu sou o primeiro e eu sou o último; além de mim não há Deus”, diz Iahweh em Isaías 44,6. Estes títulos de divindade se referem a Jesus como o Criador de todas as coisas e soberano sobre a história. Assim, por divina revelação aprendemos que somente Deus e Jesus são eternos e tornam possível ao ser humano viver a felicidade eterna. Jesus é aquele que vive, mas também o que esteve morto, mas eis que estou vivo para todo o sempre. Jesus é o único que venceu a morte no próprio domínio da morte, ele é aquele que vive, que não só ressurgiu dos mortos, mas venceu a própria morte, e tem as chaves da morte e do inferno, com sua autoridade se estendendo por todo o domínio da morte. Assim, Jesus por nós percorreu o caminho da morte. E como aquele que tem as chaves da morte e do inferno, ele tem poder infinito sobre o pecado, sobre a morte e sobre o túmulo, controlando quando morremos e como morremos. E seu povo, que foi ameaçado com a morte por sua lealdade a ele, não precisa temer que a morte vá separá-lo dele. Aquele que morreu e voltou a viver é o Senhor dos mortos e dos vivos.
A partir da revelação de sua glória, Jesus enfatiza a ordem, escreve as coisas que tens visto, tanto as do presente como as que acontecerão depois destas, e o que João viu abarcou tanto as coisas que já aconteciam quanto as que ainda ocorreriam no futuro. Como afirmam G. K. Beale e David H. Campbell: “Essa série de visões focaliza as coisas que são, e as que hão de acontecer depois destas. A última frase faz alusão à revelação [...] sobre o fim dos tempos, que [...] está agora começando a ser cumprido em Cristo. Consequentemente, como João se encontra no início do fim dos tempos, ele deve registrar tanto o que já está acontecendo ao seu redor quanto as coisas que continuarão a se desdobrar à medida que o fim dos tempos avança. Portanto, o escopo do Apocalipse lida com todos os acontecimentos da história mundial, começando com a morte e a ressurreição de Cristo e concluindo com sua volta final. Os acontecimentos nele registrados se repetirão ao longo da história humana e assim permanecerão relevantes para leitores de todos os tempos, embora também apontem para um clímax no tempo da volta do Senhor”. Agora, Jesus revela o mistério a João: as estrelas são os anjos das sete igrejas, e aqui os anjos devem ser entendidos à luz da angelologia de Apocalipse – não como mensageiros humanos ou ministros das igrejas, mas como seres angelicais, cada um representando sua igreja, responsável por sua condição e comportamento. Estes anjos podem ser comparados com os anjos que cuidam das nações (Dn 10,13.20; 12,1) e velam por indivíduos (Mt 18,10; At 12,15). E os sete candelabros são as sete igrejas, que significam que Jesus está em união firme com as igrejas na terra, por mais perseguidas que sejam.
Esta primeira revelação de Jesus a João destaca que só Jesus Cristo, o primogênito dos mortos e o Príncipe dos reis da terra (Ap 1,5), é o divino Filho de Deus que assumiu a natureza humana, morreu em nosso lugar, por nossos pecados, e ressuscitou dentre os mortos. Para os que creem, seus pecados foram perdoados, a morte já não exerce domínio sobre eles e os terrores do inferno já estão subjugados. Jesus Cristo, [...] que é a fiel testemunha (Ap 1,5), é exaltado, dignificado, sábio, tem grande discernimento para julgar, é glorificado e onipotente, é santo, poderoso e tem autoridade e o controle total, é o juiz de todos. Jesus é um com Deus, e é o Messias (= Cristo), o cumprimento de todas as esperanças e profecias do Antigo Testamento. Também os cristãos são confortados com o fato de que no meio da situação precária vivenciada pelas igrejas em um mundo mau e hostil, que as despreza e persegue, Jesus está com elas, protegendo-as e vindicando-as. Mas resta uma questão importante aos da fé, diante de uma revelação tão refulgente: nós, cristãos, realmente sabemos o que é estarmos perdidos “em admiração, amor e louvor” diante de Jesus? Que tenhamos em nossos dias, em nossa vida e em nossa adoração, uma visão mais gloriosa e grandiosa de Jesus, mais entusiasmo e alegria em sua presença e mais temor admirado, tremente e piedoso diante dele.
Volta seus olhos para Jesus,
Fite bem seu rosto maravilhoso;
E tudo na terra perderá sua luz
Ante a graça daquele que é glorioso.
(Helen H. Lemmel, 1918)
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