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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Franklin Ferreira é pastor da Igreja da Trindade e diretor-geral e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos-SP, professor-adjunto no Puritan Reformed Theological Seminary, em Grand Rapids-MI, nos Estados Unidos, secretário geral do Conselho Deliberativo do IBDR, presidente da Coalizão pelo Evangelho e consultor acadêmico de Edições Vida Nova.

A trégua de Natal de 1914

Monumento à Trégua de Natal de 1914 em Liverpool, Inglaterra.
Monumento à Trégua de Natal de 1914 em Liverpool, Inglaterra. (Foto: Phil Nash/Wikimedia Commons)

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Enquanto a Primeira Guerra Mundial, iniciada em 28 de julho de 1914, espalhava morte e desgraça por toda a Europa e mais além, o clérigo reformado Karl Barth, pregando para sua congregação em Safenwil, na neutra Suíça, em 29 de novembro de 1914, afirmou:

“Agora já entramos no tempo do Advento e em breve celebraremos o Natal. Mas este ano será um Natal estranho. Nossos pensamentos se voltarão para os milhões de pessoas que, também nesta véspera de Natal, estarão nas trincheiras, enfrentando o inimigo, equipadas para a batalha. E aos milhares, sim, dezenas de milhares de famílias que vão festejar o Natal sem o pai, principalmente as que sabem que ele nunca mais vai voltar. Desta vez, nossa alegria não pode ser uma alegria inocente e imperturbável. Muito sofrimento está nos pressionando. E surge em nós a pergunta: Faz sentido nestas circunstâncias escutar a mensagem de Natal: ‘Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens a quem ele ama!’ A imagem do mundo como o vemos agora não é uma zombaria em face dessas palavras? [...] Posso imaginar que alguém diga: este ano, realmente, não queremos festejar o Natal, e talvez também o pulemos no ano que vem. Pois, em nossa situação atual, parece hipocrisia [...] [No entanto,] a vontade de Deus não está em contraste com as coisas que ocupam o mundo em todos os seus cantos? Se tivéssemos sido obedientes a Ele, não teria havido guerra. Devemos entrar com uma ação contra nós mesmos e não contra Ele.”

De fato, o 25 de dezembro de 1914 foi um “Natal estranho”, mas não da forma como o pregador imaginou. Nessa data ocorreu a famosa “Trégua de Natal” (Christmas Truce, em inglês; Weihnachtsfrieden, em alemão), o termo usado para descrever uma trégua informal ocorrida em vários setores da frente ocidental no Natal de 1914. Embora não houvesse uma trégua oficial, milhares de soldados britânicos, franceses e alemães estiveram envolvidos num cessar-fogo não oficial ao longo de toda a frente, na França e Bélgica, no quinto mês do primeiro ano do conflito.

Celebrando o nascimento de Jesus Cristo na “terra de ninguém”

Uma trégua não oficial foi observada pelos britânicos e alemães na Bélgica, em 24 de dezembro de 1914. Durante a semana que antecedeu o Natal, soldados alemães e britânicos no setor trocaram saudações festivas e canções entre suas trincheiras. Na véspera e no dia de Natal, muitos soldados de ambos os lados se aventuraram na “terra de ninguém”, onde se encontraram, trocaram alimentos e presentes, e entoaram cânticos natalinos.

A trégua foi vista como um momento simbólico de paz e de humanidade em meio a um dos eventos mais violentos da história moderna, mas não foi universal: em algumas frentes a luta continuou durante todo o dia, enquanto em outras só se resgataram os corpos dos mortos. Embora existam muitas histórias acerca de como a celebração de Natal não oficial foi iniciada em vários setores, parece que esta celebração foi iniciada pelas tropas alemãs estacionadas defronte às forças britânicas, em que uma distância relativamente curta separava as trincheiras de ambos os lados entre a “terra de ninguém”.

Os alemães começam a celebração

Muitos soldados alemães começaram, em 24 de dezembro, a montar árvores de Natal, adornadas com velas acesas, ao longo das trincheiras da frente ocidental. Como Max Hastings relata, em 24 de dezembro, o soldado Carl Mühlegg, do 17.º Regimento da Reserva da Bavária, conseguiu um pequeno pinheiro e o levou para sua unidade. Então, convidou seu capitão a “acender as três velas e desejar paz aos camaradas, ao povo alemão e ao mundo”. Depois da meia-noite, soldados alemães e ingleses se reuniram na “terra de ninguém” desse setor para celebrar o Natal. Um oficial do Royal Irish Rifles relatou ao quartel-general: “Os alemães iluminaram suas trincheiras, estão cantando canções e nos desejando um Feliz Natal. Cumprimentos estão sendo trocados, mesmo assim estou tomando todas as precauções militares”. Diante dos franceses, em outro setor da frente, soldados da 2.ª Divisão de Guardas da Reserva alemã cantaram Noite feliz, e fincaram uma árvore de Natal em seu parapeito.

Inicialmente surpresos e desconfiados, os soldados britânicos reportaram a existência das árvores de Natal para os oficiais superiores em seu setor. A ordem recebida foi de que eles não deveriam atirar, mas, em vez disso, observar cuidadosamente as ações dos alemães. Em seguida, foram ouvidos hinos de Natal, cantados em alemão. Os britânicos responderam, em alguns lugares, com hinos natalinos. Aqueles soldados alemães que falavam inglês, então, gritaram votos de “Feliz Natal” para os britânicos; saudações similares foram retribuídas da mesma maneira para os alemães. Como escreveu o cabo Herbert Graham Williams, do 5.º City of London: “Começamos a cantar O Come, All Ye Faithful [Ó vinde, adoremos] e imediatamente os alemães se uniram cantando o mesmo hino em suas palavras latinas, Adeste Fideles. Que coisa extraordinária – duas nações inimigas entoando o mesmo cântico no meio da guerra”.

“Os alemães iluminaram suas trincheiras, estão cantando canções e nos desejando um Feliz Natal. Cumprimentos estão sendo trocados, mesmo assim estou tomando todas as precauções militares”

Oficial do Royal Irish Rifles, sobre a trégua de Natal de 1914.

Em algumas áreas, soldados alemães convidaram os britânicos para avançar pela “terra de ninguém” e visitar seus oponentes que eles estavam prontos a matar poucas horas antes. O capitão Josef Sewald, do 17.º Regimento da Reserva da Bavária, escreveu: “Gritei para os nossos inimigos que não queríamos atirar e que faríamos uma trégua de Natal. Disse que eu viria do meu lado e que poderíamos conversar entre nós. A princípio, houve silêncio, voltei a gritar e um inglês gritou, ‘Parem os tiros!’ Aí um deles saiu das trincheiras e eu fiz o mesmo, e nos aproximamos e trocamos um aperto de mãos – um tanto cautelosos!”

O capitão Sir Edward Hulse, do 2.º Scots Guards, escreveu no diário de guerra do seu batalhão: “Nós iniciamos conversações com os alemães, que estavam ansiosos para conseguir um armistício durante o Natal. Um batedor chamado F. Murker foi ao encontro de uma patrulha alemã e recebeu uma garrafa de uísque e alguns cigarros e uma mensagem foi enviada por ele, dizendo que, se nós não atirássemos neles, eles não atirariam em nós”. Depois de cinco dias de luta selvagem no setor, os combates cessaram nessa noite. De acordo com Martin Gilbert, “na manhã seguinte, soldados alemães deslocaram-se até a linha de arame farpado britânico e soldados ingleses foram ao encontro dos inimigos”. Ainda segundo o relato de Hulse, os alemães “pareceram ser muito amigáveis e trocamos lembranças, estrelas para os bonés, insígnias etc.” Os britânicos ofereceram aos alemães pudins de ameixa, “de que eles gostaram muito”.

O soldado Frederick James Davies, do 2.º Royal Welsh Fusiliers, escreveu: “Tivemos uma boa conversa com os alemães no dia de Natal, eles estavam a apenas 50 metros de nós nas trincheiras. Eles saíram e fomos ao seu encontro. Apertamos as mãos deles. Demos a eles geleia, cigarros e carne. Eles também nos deram charutos, mas não tinham muita comida. Eu acho que eles estão passando necessidade com a guerra”. E ele concluiu: “Tivemos um culto no domingo com o capelão. Cantamos todos os hinos de Natal”.

“Gritei para os nossos inimigos que não queríamos atirar e que faríamos uma trégua de Natal. Disse que eu viria do meu lado e que poderíamos conversar entre nós.”

Josef Sewald, capitão do 17.º Regimento da Reserva da Bavária

O tenente Dougan Chater, do 2.º Gordon Highlanders, escreveu sobre a confraternização: “Creio que vi hoje uma das mais extraordinárias cenas que alguém pode ver”. E continuou: “Hoje, pela manhã, quando eram cerca de 10 horas, eu estava espreitando pelo parapeito da trincheira e vi um alemão agitando os braços. Dois alemães saíram da trincheira e vieram ao nosso encontro. Estávamos quase disparando contra eles quando vimos que não tinham rifles, por isso um homem foi ao encontro deles. Dois minutos depois, o espaço entre nossas duas linhas estava cheio de homens e de oficiais de ambos os lados, dando apertos de mão e desejando mutuamente um Feliz Natal”. Essa confraternização durou mais uma hora até serem dadas ordens aos homens para que regressassem às trincheiras. Mas, depois, tudo recomeçou: “Durante o resto do dia, ninguém disparou um tiro, e os homens passeavam à vontade no cimo do parapeito e saíam para buscar palha e madeira para fazerem fogueiras em campo aberto. Também sepultamos conjuntamente alguns mortos, alemães e nossos, que jaziam entre as duas linhas”. O tenente R. D. Gillespie, do 2.º Gordon Highlanders, foi, de acordo com Martin Gilbert, “conduzido às linhas alemãs e foi-lhe mostrado um quadro que tinha sido elaborado em honra de um oficial britânico que, num anterior ataque, conseguira chegar àquela trincheira antes de ser morto”.

Foi relatado ao quartel-general da 5.ª Divisão britânica que, “na tarde do dia de Natal, um grande número de alemães e nossos homens se encontram a meio caminho entre as trincheiras para confraternização”. Assim, na manhã de Natal, num dos setores da frente, um culto bilíngue foi realizado por um ministro escocês e um seminarista alemão, “um espetáculo extraordinário”, deslumbrou-se o tenente Arthur Pelham Burn, do 6.º Gordon Highlanders. Enquanto os Salmos eram cantados, “os alemães [estavam] alinhados de um lado, os britânicos de outro, os oficiais à frente, todos de cabeça descoberta”. A artilharia nesta região permaneceu em silêncio naquela noite e dia.

No setor francês, a Legião Estrangeira Francesa, de acordo com Martin Gilbert, “também estava numa parte da linha onde a luta foi interrompida, corpos foram sepultados e tabaco e chocolates foram trocados”. Entre os legionários estava Victor Chapman, um americano que servia no 3.e Régiment de Marche du 1.er Étranger. Ele escreveu em 26 de dezembro: “Durante todo o dia, não houve troca de tiros, e a tranquilidade foi absoluta na noite passada, mesmo assim fomos instados a permanecer alertas”.

Partidas de futebol no Natal

Histórias começaram a se espalhar sobre visitas trocadas entre as forças britânicas e alemãs. Tais visitas não estavam restritas aos soldados somente: em algumas ocasiões, o contato inicial foi feito entre os oficiais, que definiram em conjunto os termos da trégua, acrescentando somente o quanto seus homens poderiam avançar em direção às linhas inimigas.

Estes termos permitiam o enterro das tropas de cada lado que jaziam ao longo da “terra de ninguém”, alguns mortos havia apenas uns dias, enquanto outros haviam esperado meses pela dignidade de um funeral – todos, porém, haviam sido deixados onde haviam tombado, pois metralhadoras cobriam o local onde eles jaziam na desolação da “terra de ninguém”. Naturalmente, homens das equipes encarregadas dos funerais entraram em contato com os membros das equipes similares do inimigo quando conversas foram entabuladas e cigarros, trocados.

O mais notável de tudo foi, talvez, a história da partida de futebol entre os britânicos do 2.º Argyll and Sutherland Highlanders e as tropas alemãs do 133.º Regimento de Infantaria da Saxônia – vencida por 3 a 2 pelos alemães, que cantaram Deus salve o rei, em homenagem ao rei Jorge V, do Reino Unido. O tenente Johannes Niemann, um saxônico, lembrou que na manhã de Natal “a névoa demorou a dissipar-se e de repente meu ordenança se jogou em meu abrigo para dizer que tanto os soldados alemães quanto os escoceses haviam saído de suas trincheiras e estavam confraternizando na frente. Peguei meu binóculo e, olhando cautelosamente por cima do parapeito, vi a incrível visão de nossos soldados trocando cigarros, aguardente e chocolate com o inimigo. Mais tarde, um soldado escocês apareceu com uma bola de futebol que parecia ter surgido do nada e, alguns minutos depois, uma verdadeira partida de futebol começou. Os escoceses marcaram as traves do gol com seus estranhos gorros e nós fizemos o mesmo com os nossos. Não foi nada fácil jogar no terreno congelado, mas continuamos, cumprindo rigorosamente as regras, apesar de durar apenas uma hora e de não termos árbitro. Muitos dos passes foram longos, mas todos os jogadores de futebol amadores, embora devessem estar muito cansados, jogaram com grande entusiasmo”. O tenente Ian Stewart ganhou como souvenir uma foto do time de futebol do 133.º de antes da guerra, e lembrava que os saxônicos eram “muito orgulhosos” da qualidade de seu time.

“Um soldado escocês apareceu com uma bola de futebol que parecia ter surgido do nada e, alguns minutos depois, uma verdadeira partida de futebol começou. Não foi nada fácil jogar no terreno congelado, mas continuamos, cumprindo rigorosamente as regras, apesar de durar apenas uma hora e de não termos árbitro.”

Johannes Niemann, tenente do exército alemão

Em outra partida, os britânicos da mesma unidade venceram por 4 a 1 os alemães de uma formação não identificada. Outro jogo, entre o 2.º Royal Welsh Fusiliers contra o 134.º Regimento de Infantaria da Saxônia, terminou com vitória alemã por 2 a 1. O tenente Kurt Zehmisch, desta unidade, escreveu sobre a partida: “Os ingleses trouxeram uma bola de futebol de suas trincheiras e logo começou um jogo animado. Como isso foi maravilhosamente espantoso, mas como foi estranho. Os oficiais ingleses sentiram o mesmo sobre isso”.

Soldados da Artilharia de Campanha Real jogaram contra “prussianos e hanoverianos” na Bélgica. E soldados do 2.º Lancashire Fusiliers jogaram contra “saxônicos” perto de Le Touquet, na França, perdendo por 3 a 2. No setor do 3.º Rifles Brigade também ocorreu uma partida de futebol contra o 139.º Regimento de Infantaria da Saxônia, e houve jogos contra os alemães nos setores do 2.º King’s Own Scottish Borderers e 2.º Royal Dublin Fusiliers. Em alguns casos, os britânicos jogaram entre si, como nos setores da 8.ª Brigada, da 14.ª Brigada, do 1.º Royal Fusiliers, 2.º King’s Own Yorkshire Light Infantry, do Queen’s Westminster Rifles e do 1/6.º Cheshire.

Em muitos setores, a trégua durou até a meia-noite de Natal, enquanto em outras áreas durou até o primeiro dia de 1915. “Foi o Natal mais peculiar que já tive e que talvez jamais tenha”, escreveu o sapador James Davey, da Engenharia Real, em seu diário. “Era quase impossível acreditar no que estava acontecendo.”

“Os ingleses trouxeram uma bola de futebol de suas trincheiras e logo começou um jogo animado. Como isso foi maravilhosamente espantoso, mas como foi estranho. Os oficiais ingleses sentiram o mesmo sobre isso.”

Kurt Zehmisch, tenente do 134.º Regimento de Infantaria da Saxônia

O tenente Malcolm Howard Grigg, que servia no 5.º City of London, tirou várias fotos da confraternização com os saxônicos dos 104.º e 106.º Regimentos de Infantaria da Reserva, que agora estão preservadas na coleção do Imperial War Museum. Em seu relato, no dia de Natal “pequenos grupos de ambos os lados se aventuraram na frente de suas trincheiras, todos desarmados, e ouvimos que um oficial alemão veio e prometeu que não atirariam se não o fizéssemos”.

Nos primeiros meses de guerra de trincheiras, unidades de infantaria em estreita proximidade com outras evitavam um comportamento abertamente agressivo, e muitas vezes se engajavam em discretas confraternizações, promovendo conversas ou troca de cigarros. Em alguns setores, houve cessar-fogo ocasional, para que os soldados pudessem ir entre as linhas de combate para resgatar os companheiros feridos ou mortos, enquanto em outros vigorava um acordo tácito para não atirar enquanto os homens descansavam, se exercitavam, ou trabalhavam diante do inimigo. Mas as tréguas de Natal foram particularmente notáveis devido ao número de homens envolvidos e ao nível de participação – milhares de homens se reuniram abertamente à luz do dia para celebrar o nascimento do único Salvador e Messias, o Senhor Jesus.

As notícias se espalham

Nas cartas para casa, os soldados na linha de frente foram praticamente unânimes em expressar seu espanto com os eventos do Natal de 1914. Um alemão escreveu: “Aquele foi um dia de paz na guerra; é uma pena que não tenha sido a paz definitiva”.

O cabo John Ferguson, do 2.º Seaforth Highlanders, contou como a trégua foi conduzida no seu setor: “Nós apertamos as mãos, desejando Feliz Natal, e logo estávamos conversando como se nos conhecêssemos há vários anos. Nós estávamos em frente às suas cercas de arame e rodeados de alemães – Fritz e eu no centro, conversando, e ele, ocasionalmente traduzindo para seus amigos o que eu estava dizendo. Nós permanecemos dentro do círculo como oradores de rua. Logo, a maioria da nossa companhia (Companhia ‘A’), ouvindo que eu e alguns outros havíamos ido, nos seguiu. [...] Que visão – pequenos grupos de alemães e ingleses se estendendo por quase toda a extensão de nossa frente! Tarde da noite nós podíamos ouvir risadas e ver fósforos acesos, um alemão acendendo um cigarro para um escocês e vice-versa, trocando cigarros e souvenires. Quando eles não podiam falar a língua, eles tentavam se fazer entender através de gestos e todos pareciam se entender muito bem. Nós estávamos rindo e conversando com homens que só umas poucas horas antes estávamos tentando matar!”

“Naquele dia, não houve um átimo de ódio pelo lado deles; pelo nosso lado, nem por um momento houve um sentimento de guerra ou o desejo de derrotá-los. [...] Eu não perderia aquele único e estranho dia de Natal por nada deste mundo.”

Bruce Bairnsfather, tenente da seção de metralhadoras do 1.º Royal Warwickshire

O tenente Bruce Bairnsfather, da seção de metralhadoras do 1.º Royal Warwickshire, foi à terra de ninguém nesse dia de Natal para juntar-se “aos muitos que estavam a cerca de meio caminho das trincheiras alemãs”. Ele resumiu os sentimentos de muitas das tropas britânicas quando escreveu: “Todos estavam curiosos: ali estavam aqueles malditos comedores-de-salsicha, que tinham começado aquela infernal guerra europeia e, ao fazer isso, nos enfiaram no mesmo lamaçal junto com eles. [...] Naquele dia, não houve um átimo de ódio pelo lado deles; pelo nosso lado, nem por um momento houve um sentimento de guerra ou o desejo de derrotá-los. [...] Eu não perderia aquele único e estranho dia de Natal por nada deste mundo. [...] Encontrei um oficial alemão, um tenente penso eu, e sendo um colecionador, disse a ele que havia gostado de alguns de seus botões. Eu trouxe meu cortador de arame, retirei um par de botões e coloquei-os no bolso. Então eu lhe dei dois dos meus em troca. [...] Depois reparei num dos meus metralhadores, que era aprendiz de barbeiro na vida civil, cortando o cabelo bastante longo de um Fritz dócil, que estava pacientemente ajoelhado no chão, enquanto a máquina automática deslizava em volta de seu pescoço”. Assim, o soldado William Tapp, do 1.º Royal Warwickshire, escreveu: “Não parece certo matar uns aos outros na época do Natal”.

As reações à trégua de Natal

A Igreja Católica, por meio do papa Bento XV, tinha solicitado uma interrupção temporária das hostilidades para a celebração do Natal, pedindo “que as armas possam ficar em silêncio, ao menos na noite em que os anjos cantam”, requerendo uma trégua “em homenagem à fé e à devoção ao Cristo Redentor, que é o Príncipe da Paz, e por sentimento de humanidade e piedade, especialmente para com as famílias dos combatentes”. Embora o governo alemão tenha indicado sua concordância, os Aliados rapidamente discordaram: a guerra tinha de continuar, até durante o Natal.

Os governos e o alto-comando militar dos Aliados reagiram com indignação à trégua de Natal. O comandante da Força Expedicionária Britânica, general Sir John French, emitiu uma ordem alertando suas forças para um provável aumento da atividade alemã durante o Natal. Ele, portanto, instruiu seus homens para redobrar o estado de alerta durante esta época, possivelmente intuindo uma suspensão das hostilidades no Natal. Após a trégua ele escreveu: “Eu emiti ordens imediatas para prevenir qualquer recorrência deste tipo de conduta e convoquei os comandantes locais para prestarem contas, o que resultou em punições severas”. O general Sir Horace Smith-Dorrien, comandante do II Corpo britânico, revoltou-se ao saber o que estava acontecendo e emitiu ordens estritas proibindo a comunicação amigável com as tropas adversárias alemãs: “O Comandante do Corpo, portanto, ordena aos Comandantes de Divisão para incutirem em todos os seus comandantes subordinados a absoluta necessidade de encorajarem o espírito ofensivo das tropas, enquanto estiverem na defensiva, por todos os meios à sua disposição. Relações amistosas com o inimigo, armistícios não oficiais (i.e, ‘nós não atiramos se vocês não atirarem’ etc.) e a troca de tabaco e outros confortos, não importa os quão tentadores e ocasionalmente agradáveis possam ser, estão absolutamente proibidos”.

O cabo Adolf Hitler, do 16.º Regimento de Infantaria da Reserva da Bavária, estava entre os que repudiaram a trégua, desabafando: “Essas coisas não deviam acontecer em tempo de guerra. Os alemães perderam todo o senso de honra?” Sua unidade, durante a trégua, cantou Noite feliz para os britânicos da 15.ª Brigada. De acordo com Max Hastings, “soldados do 99.º Regimento de Infantaria francês [...] ofenderam-se quando a trégua foi rompida por pesado fogo alemão [de artilharia] no Ano-Novo. Na manhã seguinte, um tenente bávaro veio explicar, desculpando-se, que seus superiores tinham ficado com medo do impacto negativo da confraternização sobre o sério negócio de ganhar a guerra”.

“Que as armas possam ficar em silêncio, ao menos na noite em que os anjos cantam.”

Papa Bento XV, pedindo uma trégua no Natal de 1914.

O tenente C.E.M. Richards, do 1.º East Lancashire, ficou muito perturbado com relatos de confraternização entre os homens de seu batalhão e o inimigo, e realmente agradeceu pelo “retorno do bom e velho tiroteio” no fim do dia de Natal, “apenas para ter certeza de que a guerra ainda estava acontecendo”. Mas, naquela noite, ele “recebeu um comunicado do Quartel-General do Batalhão dizendo-lhe para fazer um campo de futebol na ‘terra de ninguém’, enchendo os buracos feitos pela artilharia etc., e para desafiar o inimigo para uma partida de futebol no dia 1.º de janeiro”. Ele lembrou: “fiquei furioso e não tomei nenhuma atitude”, mas com o tempo sua visão foi mudando. “Eu gostaria de ter preservado aquele comunicado”, escreveu ele, anos depois. “Eu o destruí estupidamente – estava com tanta raiva. Hoje seria um bom souvenir”.

Investigações foram realizadas para determinar se a trégua não oficial foi de alguma maneira organizada de antemão; o resultado da apuração foi negativo. A trégua foi um evento genuinamente espontâneo, que ocorreu em alguns setores da frente ocidental, mas não em outros. Embora a história dos conflitos inclua outros numerosos exemplos de gestos generosos entre inimigos, a trégua de Natal de 1914 foi talvez o mais espetacular e, certamente, o mais famoso. “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens a quem ele ama” (Lucas 2,14) – por, pelo menos, um breve período.

“Existe uma maneira de sair deste mundo escuro. Há vitória sobre o pecado, a culpa e a morte. Há um mundo de verdade e paz que um dia triunfará sobre o mundo atual.”

Karl Barth, em sermão pregado em 29 de novembro de 1914.

No entanto, precauções especiais foram tomadas pelos alto-comandos dos exércitos envolvidos durante os anos seguintes, aumentando os tiros de artilharia durante o Natal para que não mais ocorressem tréguas. E as tropas ao longo de vários setores da frente foram também trocadas para impedir que se tornassem excessivamente familiares ao inimigo. Os combates continuaram até 1.º de novembro de 1918. Entre 15 milhões e 22 milhões de pessoas morreram como resultado da Primeira Guerra Mundial.

Mas o pecado, a morte, a dor e mesmo uma paz transitória não são a última palavra da existência para aquele que crê no Senhor Jesus, o único Messias. Barth, em um sermão pregado em 18 de outubro de 1914, lembrou: “Jesus é agora a luz da certeza no meio de um mundo escuro. Nós confiamos nele. Nós olhamos para ele. Dele poderes, que são mais fortes do que os poderes do mal, fluem em nossa direção”. E, no sermão de 29 de novembro, ele concluiu: “Há conforto para aqueles que agora choram nesta noite escura. A salvação virá para a humanidade que agora perdeu todo o sentido nesta tempestade sem paralelo de tolice e consternação. Porque rejeitaríamos esta luz, que de uma forma rara se contrapõe ao estado atual do mundo, mas que justamente por essa razão, e neste momento, tem a promessa: algo mais está por vir! Existe uma maneira de sair deste mundo escuro. Há vitória sobre o pecado, a culpa e a morte. Há um mundo de verdade e paz que um dia triunfará sobre o mundo atual”.

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Desejo a todos os leitores dessa coluna um Feliz Natal e excelente Ano Novo!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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