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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Franklin Ferreira é pastor da Igreja da Trindade e diretor-geral e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos-SP, professor-adjunto no Puritan Reformed Theological Seminary, em Grand Rapids-MI, nos Estados Unidos, secretário geral do Conselho Deliberativo do IBDR, presidente da Coalizão pelo Evangelho e consultor acadêmico de Edições Vida Nova.

Defesa da vida

Aborto, emoções manipuladas e o dever cristão

Imagem de ultrassom morfológico do segundo trimestre gestacional. Imagem ilustrativa. (Foto: Reprodução)

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Causou comoção o caso da menina catarinense que engravidou e, depois, contra as sugestões da juíza e da promotora, fez o aborto. Como em outros casos de ampla visibilidade, todo o debate foi travado em meio a tensão, emoção e polarização. E esta situação ocorreu quase simultaneamente à histórica decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, que derrubou a decisão Roe v. Wade, de 1973, que tornou o aborto um direito constitucional e o legalizou em todo o país, impedindo os estados de restringir ou impedir o aborto, ao menos até determinado ponto da gestação. Os atuais juízes sustentaram que a decisão foi tomada erroneamente porque a Constituição dos Estados Unidos não faz menção específica ao direito ao aborto. Inclusive, um grupo de 19 juristas e professores brasileiros – sete deles membros do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) – atuou no processo.

Para relembrar: no início de maio deste ano, a mãe da menina a conduziu ao Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, após constatar que a menina estava grávida. Na ocasião, a garota tinha 10 anos. O hospital, uma referência em casos de aborto erroneamente dito “legal” em Santa Catarina, constatou que o feto já tinha 22 semanas e se recusou a fazer o procedimento, pois uma norma administrativa estabelece que as equipes do hospital não realizem abortos após 20 semanas – o que equivale a cinco meses de gestação. A mãe da menina recorreu ao Judiciário a fim de obter autorização para interromper a gravidez, mas não obteve o aval judicial e a menina acabou sendo encaminhada para um abrigo.

Desde a Antiguidade, o cristianismo considera que o embrião é uma vida, e que a vida se inicia quando ocorre a fecundação. Tanto a Didachê quanto a Epístola de Barnabé, ambos do século 2.º d.C., rejeitaram qualquer tipo de aborto como sendo assassinato. Os concílios de Elvira, em 306, e Ancira, em 314, condenaram o aborto como prática pagã. O Terceiro Concílio de Constantinopla, de 692, decidiu pela excomunhão do cristão que praticasse o aborto. E, resumindo a perspectiva cristã sobre o aborto em casos de estupro, Hans Ulrich Reifler coloca a situação nesses termos:

“As questões envolvidas aqui são de origem jurídica: a mãe gestante deve ser forçada a dar à luz uma criança concebida por estupro, ou gerar uma criança contra sua vontade? A mãe gestante tem o direito de recusar que seu corpo seja mero objeto de intrusão sexual? O problema do chamado ‘aborto de honra’ é que muitas pessoas alegam estupro para justificar um aborto constitucional. Desde a Antiguidade os cristãos têm rejeitado o aborto jurídico, mesmo no caso de violência sexual, porque creem que ‘todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito’ (Rm 8,28). Está a nosso alcance a citação de uma carta escrita por um homem a um amigo depois do estupro de sua esposa, quando o exército russo invadiu a Alemanha nazista: ‘Nossa família cresceu com o nascimento de um pequeno nenê russo, um moço tão vivo e amável que ninguém lhe deseja mal algum’.”

Mais uma vez, houve um movimento orquestrado de meios de comunicação, políticos esquerdistas e setores do Ministério Público a favor do aborto

Num seminário realizado em março de 1988, na Universidade Federal de Zurique, médicos, cientistas e juristas solicitaram das autoridades suíças uma melhor definição quanto à honra da pessoa embrionária. Argumentaram que o embrião é uma vida e que, com a fecundação, é dada toda a disposição genética do ser humano. Samuel Stutz, autor da obra Embriohandel (“Comércio de embriões”), enfatizou que “hoje o embrião humano se tornou mero objeto, arrancado do útero feminino, isolado do cordão umbilical psicológico de seus pais, vítima de nosso tempo destrutivo”. Nesse artigo, eu gostaria de pontuar algumas questões que julgo serem importantes para o debate sobre o aborto a partir de uma perspectiva cristã. E que podem ajudar a discernir que há uma agenda pró-morte por trás da veiculação de casos similares e nos posicionar apropriada e efetivamente.

Um movimento orquestrado

Em primeiro lugar, deve-se notar que, mais uma vez, houve um movimento orquestrado de meios de comunicação, políticos esquerdistas e setores do Ministério Público a favor do aborto. Pelo que se teve acesso, a juíza Joana Ribeiro Zimmer, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), fez em audiência gravada uma série de perguntas à criança, hoje com 11 anos. A juíza questionou se a menina poderia “suportar mais um pouquinho” a gravidez para, assim, permitir que o bebê pudesse ser retirado com vida. Mas estes detalhes da audiência foram tornados públicos pelo site The Intercept e pelo portal Catarinas, que divulgaram trechos editados do vídeo da audiência com o objetivo de influenciar e instigar a militância favorável ao aborto. Um ponto importante a se enfatizar é que estas informações veiculadas pelos meios de comunicação violaram preceitos infraconstitucionais e constitucionais, visto que o processo era protegido pelo segredo de Justiça.

Assim, o que se percebe é que casos como o da menina de Santa Catarina têm sido usados num movimento orquestrado dos meios de comunicação, de partidos de extrema-esquerda e de setores do Ministério Público em prol das pautas em favor do aborto, inclusive atropelando orientações do Judiciário e normas técnicas sobre aborto do Ministério da Saúde, que são anteriores ao atual governo. No caso citado, com rapidez, meios de comunicação publicaram reportagens a partir de uma narrativa construída com distorções e dados fragmentados e editados, com críticas duras à juíza do caso, à promotora Mirela Dutra Alberton (do Ministério Público catarinense) e ao hospital, que passaram a sofrer ataques pessoais e perseguição. A juíza deixou o caso e passou a atuar na comarca de Brusque. O IBDR publicou nota de apoio à magistrada, afirmando que ela “procedeu de forma correta, cumprindo estritamente o que determina a Constituição, as normas internacionais e a legislação doméstica infraconstitucional, de modo que protegeu, até aquele momento, as vidas envolvidas, isto é, da criança que estava gestando e do nascituro”.

Julgando sem todas as informações

Em segundo lugar, se a mídia, políticos e setores do Ministério Público exploraram a comoção, no caso, em favor do aborto, também esconderam informações importantes do grande público. Estas foram distribuídas a conta-gotas, friamente selecionadas justamente para causar alvoroço, e para favorecer uma agenda pró-morte – ou seja, em prol do aborto. Em vídeo editado pelo The Intercept, no qual são mostradas imagens da audiência, a revista refere-se em legenda ao autor do ato sexual como um homem estuprador: “A criança também é questionada se o homem que a estuprou concordaria em entregar o bebê à adoção”. O vídeo foi assistido por quase meio milhão de pessoas no YouTube.

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Precisamos perceber e prestar atenção a estes detalhes da guerra cultural em que nos encontramos no Ocidente: informações sensíveis estão sendo ocultadas do grande público, matérias são veiculadas de forma parcial e fragmentada para fomentar respostas imediatas e emocionais em casos de grande alcance, como a promoção da causa do assassinato de infantes. Como demonstrou matéria da Gazeta do Povo, a veiculação das notícias omitiu um importante elemento da narrativa, que foi informado pelo delegado Alison da Costa Rocha, da Polícia Civil de Santa Catarina (PC-SC), responsável pela investigação do caso: a criança teria ficado grávida após ter relações com um adolescente de 13 anos – não com um homem, como é afirmado no vídeo do The Intercept. Na verdade, se descobriu que o adolescente é filho do padrasto da menina e reside na mesma casa em que ela morava. De acordo com o delegado: “O que saltou aos olhos foi que, no geral, houve uma relação de afeto entre os dois, houve uma premeditação para o lado da atividade sexual, em comum acordo, havia consentimento. Em regra, os dois praticaram as condutas com um ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável do artigo 217-A do Código Penal”.

No fim, o Ministério Público Federal (MPF) publicou nota recomendando que fosse procedida a retirada do feto – independentemente do período gestacional. No caso, o bebê foi morto tendo completado 30 semanas, ou seja, sete meses de gestação. Uma vez o aborto tendo sido realizado, foi noticiado pela extrema-imprensa com a finalidade de declarar uma grande vitória e conquista do “humanismo” esquerdista contra o “obscurantismo” cristão e conservador.

Acuados na defesa

Em terceiro lugar, devemos perceber que nós, cristãos, estamos sendo obrigados, nessa guerra cultural, a assumirmos uma postura reativa. Cria-se um fato ou se dá uma publicidade a um caso como esse – emocional, tenso –, e que não foi o primeiro a ocorrer. Um caso parecido, ocorrido em 2020, no Espírito Santo, também causou bastante comoção no país, gerado, sobretudo por setores da imprensa e políticos. O roteiro é, basicamente, o mesmo: os mortos per se não têm valor algum para as esquerdas. Os mortos são importantes apenas se são úteis para a causa socialista. Assim, cria-se uma comoção em torno da tragédia, e os cristãos se veem obrigados a reagir às pautas postas, sempre noticiadas com um viés ideológico claramente definido – pró-morte. Ao mesmo tempo, os cristãos são retratados como insensíveis, grosseiros, egoístas e outros adjetivos impublicáveis. O curioso é que estes ataques vêm de adoradores da morte, que gritam em passeatas “nós amamos matar bebês” – os novos seguidores de antigas abominações tais como Baal, Astarote e Moloque. O que lembra a simples pergunta de Madre Teresa de Calcutá: “Quando uma mãe pode matar seu próprio bebê, o que resta da civilização para ser salvo?” Parece-me que nós, cristãos, precisamos sair de uma posição reativa e começar a assumir uma posição ativa diante do debate quanto ao aborto. Também se deve ressaltar que a aprovação do aborto é o primeiro passo para a legalização do infanticídio e da eutanásia.

Mídia, políticos e setores do Ministério Público também esconderam informações importantes do grande público. Estas foram distribuídas a conta-gotas, friamente selecionadas justamente para causar alvoroço e para favorecer uma agenda pró-morte

A necessidade de alianças estratégicas e ação planejada

E agora chegamos à minha quarta observação. À luz dos últimos acontecimentos, nós, cristãos, temos de criar mais organizações pró-vida no Brasil. Já há bons exemplos, como o Instituto Mont’serrat, o Cervi e a Casa Pró-vida Mãe Imaculada. E, como estamos em um debate público, então, a partir do conceito de cobeligerância – que tem por fundamento o consenso ético que tem por base a Escritura –, parece-me que católicos e protestantes podem se irmanar na criação de mais organizações pró-vida. E, por meio destas organizações, seria possível veicular informações sobre os riscos do sexo fora do casamento, métodos contraceptivos, organizar protestos pacíficos a favor da vida e contra o aborto, entre outros. Com instrumentos específicos, a opinião pública poderia ser informada claramente por meio de tais organizações, além de exercer influência sobre deputados e senadores cristãos – que, no geral, evitam oferecer sua posição ou contribuição no meio desse debate, mesmo que periodicamente busquem votos nas comunidades cristãs. Seria possível, também, organizar campanhas de adoção de crianças e apoiar e organizar novos orfanatos, lembrando que os procedimentos de adoção obedecem a um regramento legal e são supervisionados pelo Conselho Nacional de Justiça.

Reflitamos no que Reifler afirma:

“O cristão não mata uma vida inocente e indefesa; antes, protege-a como bem individual, bem social e, sobretudo, bem criado por Deus. O lema cristão nas questões do aborto é sempre preservar a vida, ajudar a resolver os problemas dentro dos princípios da Palavra de Deus. Por isso, o cristão apoia o planejamento familiar consciente, assume a paternidade, ampara a ordem familiar, mesmo quando numerosa, favorece os orfanatos e as iniciativas privadas para educar crianças abandonadas, prega o perdão mesmo no caso de estupro, encoraja a adoção de crianças não desejadas, enfim, faz tudo para honrar, proteger e preservar a vida dos inocentes. Em outras palavras, o evangélico não pratica o aborto, não se submete ao aborto, não aprova o aborto, não apoia entidades que oferecem e facilitam o aborto, não negligencia ou põe em risco a vida humana intrauterina. Antes, considera mesmo a gravidez não desejada como dádiva de Deus, mesmo um feto deformado ou imperfeito como criação humana amada por Deus, e dá apoio emocional, material e espiritual à criança indesejada.”

O preparo para a guerra cultural

Por fim, devemos, como cristãos, nos preparar melhor para a guerra cultural, para expor a nossa fé com graça e sabedoria na esfera pública. Temos que testemunhar que é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, o Senhor de Moisés e Davi, e o Pai do Senhor Jesus que cria a vida. E, se o Deus de Israel é quem inicia a vida, é este mesmo Senhor todo-poderoso que determina o seu fim. Uma leitora escreveu em minha página no Instagram:

“Eu tive a oportunidade de trabalhar no Juizado da Infância e Juventude e, sempre que a grávida compreende essa verdade e desiste do abortamento, ela não se arrepende de gerar a vida. O contrário não é verdade. Muitas mães carregam um fardo pesado e, depois de todo o estardalhaço, as pessoas se vão e ela fica com a tristeza, assombrada por uma decisão que, por diversas vezes, é tomada num estado emocional de perturbação. (...) essa grávida tem o direito de escolher ter o filho e ser amparada. Nem sempre as grávidas são respeitadas. Muitas querem, sim, ter e criar seus filhos, mesmo que a gravidez tenha decorrido de um abuso. Essas grávidas precisam de amparo e, nesse ponto, vi padres com apoio de membros da Igreja Católica ajudando moças em condição de vulnerabilidade.”

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Quando políticos e formadores de opinião se intrometem nessa área sagrada, que é a vida, e promovem o aborto, estão quebrando o mandamento que proíbe terminantemente o assassinato, e pecando gravemente contra o Supremo Juiz da criação.

Portanto, guardemos em nossas mentes e corações que, se somos chamados a nos engajar na guerra cultural que devasta o Ocidente, não estamos desamparados nessa luta. Se estamos a favor da vida, temos ao nosso lado o Criador dela e de tudo o mais que existe nesse mundo. Também temos ao nosso lado o eterno Filho de Deus e os santos do passado. Não podemos ceder ao espírito do anticristo e pró-morte que quer tomar de assalto o nosso país. Como tão belamente Peter Kreeft escreveu:

“O custo pode ser alto, o tempo pode ser longo, mas o resultado não pode ser posto em dúvida. [...] Nós venceremos a guerra [cultural] porque não importa quantas vezes caímos, não importa quantas vezes iremos falhar em sermos santos, não importa quantas vezes falharmos no amor, nós nunca, nunca, nunca desistiremos. Nós venceremos porque somos o corpo de Cristo, e Cristo é Deus, e Deus é amor, e o amor nunca, nunca, nunca desiste.”

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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