Tenho o privilégio de publicar hoje um artigo escrito por Augustus Nicodemus Lopes, pastor da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife (PE), doutor em Estudos Bíblicos pelo Westminster Theological Seminary e autor de dezenas de livros, entre eles Cristianismo na Universidade, O que fizeram com a Igreja, Polêmicas na Igreja e Ateísmo cristão. Para aqueles que quiserem ler mais sobre a Páscoa, recomendo meu texto Uma profecia sobre o Messias na Páscoa. Nesta sexta-feira eu e Augustus faremos, às 21 horas, uma live especial sobre a Páscoa.
Herói ou traidor? A saga dos cainitas
Desde cedo na história da cristandade apareceram diferentes versões do que realmente aconteceu na noite da última Páscoa com o Senhor Jesus. De acordo com os Evangelhos canônicos – Mateus, Marcos, Lucas e João –, Jesus se reuniu com os Doze num cenáculo mobiliado, que ele tomara emprestado de alguém em Jerusalém. Ali, Jesus teria lavado os pés de seus apóstolos e, enquanto comiam o cordeiro pascal de conformidade com o rito judaico, revelou que seria traído por um deles. Ali Jesus ensinou o sentido da Páscoa, instituindo a Ceia aos seus discípulos como memorial a ser celebrado até seu retorno em glória e triunfo a este mundo. Quando mais tarde se encontravam no Monte das Oliveiras, num jardim chamado Getsêmani, Judas retorna com uma escolta de soldados e entrega Jesus aos principais dos sacerdotes, traindo assim seu Mestre. A crucificação ocorre no dia seguinte.
O real papel de Judas no drama pascal tem sido motivo de especulação por parte de movimentos marginais do cristianismo desde tempos imemoriais. A mais conhecida é a tentativa de redimir Judas por parte de uma seita gnóstica conhecida como os cainitas, que elaborou o espúrio Evangelho de Judas. A descoberta deste “evangelho” em anos recentes trouxe grande polêmica inclusive na grande mídia – veja meu artigo sobre este evangelho em Judas redivivo e desagravado.
O real papel de Judas no drama pascal tem sido motivo de especulação por parte de movimentos marginais do cristianismo desde tempos imemoriais
A seita dos cainitas – autora do documento, de acordo com Irineu de Lyon em Contra as heresias – era especialista em reabilitar personagens bíblicas malignas, como Caim e os sodomitas. Judas, provavelmente a mais famigerada personagem bíblica de todos os tempos, tornou-se alvo de reabilitação por parte da seita mediante a elaboração de um evangelho atribuído ao próprio Judas. De acordo com esta obra, Judas Iscariotes era o único entre os apóstolos de Cristo que tinha o verdadeiro conhecimento, a gnose salvadora, e traiu o Messias físico com a boa intenção de destruir o império de Yahweh, o Deus mau dos judeus. A traição, na verdade, teria sido uma incumbência que o próprio Jesus teria dado a Judas, homem crente piedoso e seu discípulo predileto, de acordo com os cainitas.
Já no século 5.º o bispo Epifânio critica o Evangelho de Judas por tornar o traidor em um feitor de boas obras. A crítica de Epifânio está correta, e revela qual é o maior desafio que os cainitas enfrentavam, que era explicar as passagens dos Evangelhos que dizem exatamente o contrário. Menciono e comento algumas delas.
João 13,8-11 – Nesta conhecida passagem do “lava-pés”, Jesus diz a Pedro que “vós estais limpos, mas não todos” (13,10). E João comenta, “pois ele sabia quem era o traidor. Foi por isso que disse: Nem todos estais limpos” (13,11). “Estar limpo” no contexto significa ter parte com Cristo, ter sido lavado dos seus pecados. Todos os apóstolos, menos Judas, estavam limpos. Portanto, somente Judas não tinha parte com Cristo. E isto significa que foi o único que não foi salvo.
João 6,64 – Jesus declarou abertamente que Judas era descrente: “Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus sabia, desde o princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair”. Fica difícil admitir que Judas era salvo ou crente diante desta declaração. Aqui Judas é colocado em contraposição aos 11 apóstolos que criam e Jesus o chama de “descrente”. Se a fé é a condição para a salvação, segue-se que Judas perdeu-se.
Mateus 26,14-15 – Mateus registrou que a intenção de Judas ao trair Jesus era simplesmente o dinheiro: “Então, um dos doze, chamado Judas Iscariotes, indo ter com os principais sacerdotes, propôs: Que me quereis dar, e eu vo-lo entregarei? E pagaram-lhe trinta moedas de prata”. Se Judas tinha outra intenção, que fosse nobre, correta e justa, não é isto que consta nos evangelhos. Ao contrário, o amor ao dinheiro foi sua motivação. Os evangelhos relatam que desde o início Judas mostrou ganância e avareza: “Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, o que estava para traí-lo, disse: Por que não se vendeu este perfume por trezentos denários e não se deu aos pobres? Isto disse ele não porque tivesse cuidado dos pobres; mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava” (Jo 12,4-6). Portanto, a real intenção da traição não foi um propósito teológico nobre, como a seita dos cainitas asseverou em seu Evangelho de Judas, mas o motivo mais antigo de todos, a cobiça.
Mateus 27,3-5 – Esta passagem registra a atitude de Judas após constatar as consequências da traição, ou seja, que Jesus foi condenado e morto. Mateus diz que Judas, “tocado de remorso, devolveu as trinta moedas de prata aos principais sacerdotes e aos anciãos, dizendo: Pequei, traindo sangue inocente” (27,3-4). O verbo usado por Mateus para descrever o sentimento de Judas é um verbo neutro em si, que indica apenas o sentimento interior. Ele precisa ser complementado com outras descrições de mudança de atitude e de obediência para poder significar real arrependimento. Mas a atitude de Judas, após se sentir tocado de remorso e admitir que havia pecado, foi de tirar sua própria vida. Ao contrário de Pedro, que também havia negado a Jesus, mas que não viu o suicídio como o caminho certo, Judas resolve tirar a própria vida, sem buscar Aquele que teria poder para perdoá-lo, pois não tinha fé.
Lucas 22,3 – Lucas registra que antes da traição “Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes, que era um dos doze” (ver João 13,2). João diz que este momento acontece durante a Ceia, após Judas ter comido o pão dado por Jesus: “após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás” (João 13,27). Satanás jamais poderia ter “entrado” em Judas se este fosse realmente de Cristo, salvo, e seu discípulo predileto. O máximo que Satanás poderia ter feito com um verdadeiro crente e discípulo de Jesus era tentar, oprimir e assediar, como ele fez com Pedro, a ponto de Jesus repreendê-lo: “arreda, Satanás!” O fato de que Judas agiu voluntariamente, debaixo de ação satânica, e que era um servo de Satanás para a realização de seus propósitos malignos não deixa dúvida de que realmente ele tinha parte com o inferno e não com o Salvador.
João 6,70-71 – “Replicou-lhes Jesus: Não vos escolhi eu em número de doze? Contudo, um de vós é diabo. Referia-se ele a Judas, filho de Simão Iscariotes; porque era quem estava para traí-lo, sendo um dos doze.” É verdade que Jesus escolheu Judas depois de uma noite de oração para fazer parte dos Doze. Isto significaria que Judas era salvo e um filho de Deus? Somente se pudéssemos provar que todos aqueles que Deus levantou na história para realizar seus propósitos foram realmente salvos. Mas, quando lemos a história de Faraó, rei pagão do Egito que foi levantado e usado por Deus, verificamos que esta tese não se sustenta. Vejamos o que Deus diz de Faraó: “Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra” (Romanos 9,17). No contexto, Faraó faz parte dos não eleitos, dos vasos de ira preparados para a perdição. Todavia, Deus o levantou e usou para a glória de Seu Nome. Desde o início Jesus sabia que Judas era diabo e que haveria de traí-lo. A escolha de Judas foi feita dentro do plano soberano de Deus com o fim de realizar seus propósitos, sem que isto em momento algum tirasse a responsabilidade de Judas.
Isto fica claro em outra passagem, quando Jesus diz que Judas não pertence aos seus escolhidos, e que foi contado somente para que a Escritura que fala da sua traição se consumasse: “Não falo a respeito de todos vós, pois eu conheço aqueles que escolhi; é, antes, para que se cumpra a Escritura: Aquele que come do meu pão levantou contra mim seu calcanhar” (João 13,18).
João 17,12 – Nesta passagem Jesus faz a distinção entre os onze apóstolos e Judas. Enquanto Ele guardou os primeiros, o último é chamado de “filho da perdição”: “Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura”. A referência é claramente a Judas, conforme o contexto declara indubitavelmente. Judas foi o único que se perdeu entre os Doze, pois era o filho da perdição, levantado para cumprir as Escrituras que prediziam a morte do Messias. “Filho da perdição” significa simplesmente alguém que está condenado à perdição. No original grego há um jogo de palavras entre “nenhum se perdeu” e o “filho da perdição” indicando o óbvio contraste entre os apóstolos e Judas.
A escolha de Judas foi feita dentro do plano soberano de Deus com o fim de realizar seus propósitos, sem que isto em momento algum tirasse a responsabilidade de Judas
Atos 1,16-26 – O livro de Atos registra o preenchimento da vaga de Judas entre os Doze por Matias. No processo de escolha, Pedro faz diversas referências a Judas. Este tinha sido “contado entre nós e teve parte neste ministério” (1,17). A traição dele e sua saída do grupo apostólico já estavam previstas nas Escrituras, pois “está escrito no Livro dos Salmos: Fique deserta a sua morada; e não haja quem nela habite; e: Tome outro o seu encargo” (1,20). A sua substituição era necessária, pois “Judas se transviou, indo para o seu próprio lugar” (1,25). Transparece com clareza das declarações de Pedro que os demais apóstolos em momento algum entenderam que Judas era um deles, alguém que tinha errado bastante, mas que ao fim era salvo. Ao contrário, ele teria ido para “seu próprio lugar”, que era o lugar dos apóstatas, dos incrédulos e dos condenados ao inferno.
Estas passagens acima, tiradas dos evangelhos canônicos, mostram claramente que não é possível compatibilizar o Judas herói, crente e nobre dos cainitas com o Judas traidor, filho da perdição, descrente e mesquinho retratado por Mateus, Marcos, Lucas e João. O que nos coloca diante de uma escolha, ou seja, se vamos aceitar a autoridade apostólica ou dos cainitas.
Não resta dúvida de que somos tão pecadores quanto Judas. Mas existe uma diferença entre o pecado do crente e do descrente. Quando o crente peca, ele o faz contra a sua natureza regenerada, contra a sua consciência santificada, contra as advertências do Espírito que nele opera, e à revelia da Palavra de Deus que ele ama e deseja seguir. Portanto, quando ele se arrepende, retorna a Deus em quebrantamento real e disposição de reparar seus erros. O verdadeiro arrependimento inclui a fé em Deus e no seu Filho Jesus Cristo. Mas, quando o descrente peca, ele o faz de acordo com sua natureza não regenerada. Quando em alguns casos sua consciência amortecida o comove, ele reage com remorso e mesmo arrependimento e tristeza. Todavia, porque não crê e não tem esperança de perdão, tenta sufocar a consciência que o aflige e o desespero por meios humanos, entre eles o mais extremado de todos, o suicídio. Não estou dizendo que todo suicida vai para o inferno ou algo assim. Estou dizendo que o suicídio é pecado, e que, se cometido por alguém que se dizia crente, temos de deixar o assunto nas mãos Daquele que conhece os corações e julga todas as coisas.
A história triste de Judas nos ensina a viver uma vida de arrependimento verdadeiro e a não deixar o dinheiro, o poder ou outra coisa qualquer se tornar um ídolo em nosso coração e destronar o Senhor da Glória.
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