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“Ascensão e triunfo do self moderno”, de Carl Trueman, examina como o identitarismo ganhou corpo no Ocidente moderno.
“Ascensão e triunfo do self moderno”, de Carl Trueman, examina como o identitarismo ganhou corpo no Ocidente moderno.| Foto: Gabriela Cesario/Editora Cultura Cristã/Divulgação

No mundo atual, todos nós temos uma noção natural de ser um self, uma identidade que nos diferencia dos outros. Essa percepção básica de individualidade nos permite reconhecer que somos únicos e diferentes de figuras como artistas, jogadores ou políticos conhecidos. Em seu livro Ascensão e triunfo do self moderno, Carl Trueman, Ph.D. pela Universidade de Aberdeen, professor no Departamento de Estudos Bíblicos e Religiosos do Grove City College e autor prolífico, vai além dessa ideia simples. Ele explora questões mais profundas ao utilizar o conceito de self, apresentando uma análise detalhada sobre como chegamos a uma época em que a identidade pessoal é central e declarações como “sou uma mulher presa no corpo de um homem” se tornaram compreensíveis e aceitas.

Importante em todo o livro é a tipologia que Trueman emprega para se referir ao tipo de cultura que as sociedades incorporam:

“Os primeiros e segundos mundos justificam sua moralidade apelando para algo transcendente. Os primeiros mundos são pagãos, mas isso não significa que carecem de códigos morais enraizados em algo maior do que eles próprios. Seus códigos morais são baseados em mitos [como nas sociedades gregas]. [...] Esse mundo [é caracterizado] como aquele em que o destino é a ideia controladora. Não é Deus como algum ser transcendente que está no comando, mas ainda é uma força anterior à ordem natural e está além do controle de meros homens e mulheres. Os segundos mundos são aqueles mundos caracterizados não tanto pelo destino quanto pela fé. O exemplo óbvio aqui é o cristianismo. A fé cristã moldou as culturas do Ocidente de uma forma incalculavelmente profunda. [...] Os primeiros e segundos mundos têm uma estabilidade moral e, por isso, cultural, porque seus alicerces estão em algo para além de si mesmos. Em outras palavras, eles não precisam se justificar com base em si mesmos. Os terceiros mundos, em contraste com os primeiros e os segundos mundos, não enraízam suas culturas, suas ordens sociais, seus imperativos morais em algo sagrado. Eles têm, com efeito, que se justificar, mas não podem fazê-lo com base em algo sagrado ou transcendente. Em vez disso, eles têm de fazer isso com base em si mesmos. [...] O abandono de uma ordem sagrada deixa as culturas sem qualquer fundamento. [...] A moralidade, então, tenderá para uma questão de simples pragmatismo consequencialista, com a noção de quais seriam os resultados desejáveis ou indesejáveis sendo moldada pelas distintas patologias culturais da época.”

Para Trueman, o Ocidente contemporâneo se tornou uma cultura de terceiro mundo. Como chegamos a este ponto?

Filósofos e escritores abrem o caminho

Trueman inicia sua investigação com o filósofo do século 18 Jean-Jacques Rousseau, que defendia a ideia de que o homem nasce livre, mas acaba sendo aprisionado pela sociedade. Rousseau argumentava que todas as sociedades impõem limitações aos indivíduos, sendo essas restrições a fonte de nossa opressão. Para Trueman, essa concepção rousseauniana representa o ponto inicial para compreender a ascensão do individualismo expressivo característico da era contemporânea.

Trueman explora a evolução do individualismo expressivo desde os tempos de Rousseau, passando pelos poetas românticos como Percy Shelley e William Blake. Esses poetas questionavam as normas sociais e a religião tradicional por limitarem a liberdade pessoal e a expressão individual. De acordo com Trueman, eles viam a verdadeira autenticidade como algo que só poderia ser alcançado ao rejeitar as expectativas e convenções sociais.

Para Nietzsche, a autenticidade genuína só poderia ser alcançada ao rejeitar normas sociais e criar uma ética pessoal com base nos próprios desejos e tendências

Shelley, em particular, é conhecido por sua crítica à religião tradicional e às normas sociais. Ele sustentava que a religião institucionalizada e as convenções sociais eram obstáculos para alcançar a verdadeira liberdade e expressão pessoal. Shelley defendia que a verdadeira liberdade surgia ao se libertar dessas restrições externas e seguir os próprios desejos e inclinações.

Karl Marx, cujo trabalho é explorado por Trueman, não aceitava a ideia de uma natureza humana fixa. Marx via a moralidade e a religião como construções sociais criadas para manter as estruturas de poder vigentes. Ele argumentava que a verdadeira liberdade só poderia ser alcançada por meio de uma revolução social, que eliminaria essas construções e permitiria que as pessoas vivessem de acordo com suas verdadeiras essências.

Por outro lado, Friedrich Nietzsche criticava os iluministas por não encararem completamente as consequências de sua rejeição a Deus. Nietzsche considerava que, sem um Deus para determinar a moralidade, os seres humanos tinham liberdade para estabelecer seus próprios valores. Para Nietzsche, isso implicava que a autenticidade genuína só poderia ser alcançada ao rejeitar normas sociais e criar uma ética pessoal com base nos próprios desejos e tendências.

Sigmund Freud é outro pensador central no estudo de Trueman. Ele afirmava que as civilizações são moldadas por comportamentos proibidos, especialmente os relacionados à sexualidade. Para Freud, a repressão sexual era uma das principais causas da infelicidade humana. Posteriormente, seguidores como Wilhelm Reich e Herbert Marcuse politizaram o tema do sexo, contribuindo para o surgimento da Nova Esquerda. Reich argumentava que a repressão sexual era a origem de muitos problemas sociais e psicológicos, enquanto Marcuse via a liberdade sexual como essencial para uma revolução social.

Esse movimento levou à mudança das normas sexuais tradicionais e à valorização de comportamentos antes considerados tabus. A libertação sexual passou a ser vista como um meio para alcançar liberdade genuína e autenticidade pessoal, o que tem implicações profundas na formação da identidade individual na sociedade contemporânea.

O impacto do pensamento moderno na identidade individual

Trueman usa as histórias de Rousseau e Agostinho de Hipona para destacar as diferenças essenciais entre suas perspectivas sobre a natureza humana e a moralidade. Em uma história, Rousseau fala sobre roubar aspargos, defendendo que a influência social, e não uma inclinação interna, resulta em comportamento imoral. Por outro lado, Agostinho de Hipona, ao confessar ter roubado peras, atribui a culpa à sua própria maldade inata. Trueman argumenta que, na visão contemporânea, a verdadeira liberdade e autenticidade derivam da libertação das pressões sociais e de ser governado unicamente por seus desejos internos.

Sigmund Freud, em suas obras O mal-estar na civilização e Totem e tabu, explora a ideia de que a supressão dos impulsos sexuais desempenha um papel crucial na formação da sociedade. No entanto, ele reconhece que essa supressão pode causar infelicidade às pessoas. Para Freud, a civilização representa um equilíbrio delicado entre as necessidades individuais e a manutenção da ordem social. Ele argumenta que uma liberação total dos impulsos individuais resultaria em caos, mas também aponta que uma repressão excessiva desses impulsos pode causar intenso sofrimento.

Herbert Marcuse, em seu trabalho Eros e civilização, amplia as teorias de Freud ao argumentar que a repressão sexual não é apenas uma imposição da civilização, mas também uma estratégia de controle social. Segundo Marcuse, a sociedade capitalista utiliza a repressão sexual como meio de manter as pessoas submissas e dóceis. Ele propõe que a libertação sexual possa ser um caminho para resistir à opressão social e econômica. Para ele, a verdadeira liberdade consiste em romper com as normas sexuais repressoras e estabelecer uma nova sociedade fundamentada na liberdade erótica, politizando a sexualidade.

A crescente aceitação de diversas formas de sexualidade e identidades de gênero reflete o abandono das normas tradicionais em busca da autenticidade individual

A extinção do conceito de natureza humana

Trueman conecta a linha de pensamento de Nietzsche a Marx e chega até Charles Darwin, argumentando que a visão contemporânea eliminou a ideia de uma natureza humana fixa ou de um significado especial dado pela criação divina. Com sua teoria da evolução, Darwin desafiou a crença tradicional de que os seres humanos foram feitos à imagem de Deus com uma natureza imutável, sugerindo em vez disso que somos produtos de processos naturais e contingentes, sem um propósito ou essência predefinida.

Trueman destaca a autoridade que a ciência moderna detém em nossa sociedade, comparando os cientistas atuais aos antigos sacerdotes cuja autoridade era aceita pela comunidade. Ele argumenta que a aceitação intuitiva da evolução, por exemplo, se baseia mais na autoridade científica do que na capacidade da maioria das pessoas de compreender a ciência por si mesmas. Essa aceitação quase reverencial da ciência moderna reflete uma mudança fundamental na maneira como percebemos a autoridade e a verdade.

A revolução sexual iniciada nos anos 1960 é um exemplo de como essas mudanças intelectuais e culturais se manifestam na sociedade atual. A crescente aceitação de diversas formas de sexualidade e identidades de gênero reflete o abandono das normas tradicionais em busca da autenticidade individual. Trueman afirma que essa transformação é diretamente influenciada pelos pensamentos de Rousseau, Marx, Nietzsche e Freud, que questionaram as normas sociais e defenderam a liberdade individual. Trueman conclui:

“A vitimização surgiu como uma virtude importante, talvez a virtude-chave da tradição marxista de pensamento da Nova Esquerda. Fundido à noção sexualizada de individualidade criada por Freud e reforçada pelo colapso do colonialismo europeu nas décadas após a Segunda Guerra Mundial, um senso comum de vitimização forneceu uma base óbvia para a construção de um movimento político entre gays e lésbicas e também um que ressoaria como a Sittlichkeit [ordem moral] de uma sociedade ocidental que se sentia culpada por sua história passada de escravidão, exploração e marginalização de minorias.”

Tratando da amnésia cultural que domina o Ocidente e da politização de todos os aspectos da existência, Trueman faz o seguinte alerta:

“Muitos conservadores gostariam de discordar dessa visão. Eles argumentariam que os ‘pequenos pelotões’ do mundo de Edmund Burke – aquelas instituições mediadoras para a organização social, como a igreja, o clube esportivo e até mesmo as reuniões no bar local – fornecem um contexto pré-político para interação fora do campo político. Mas, infelizmente, uma vez que um lado do debate político opta por politizar uma questão, todos os lados têm de jogar esse jogo. E tanto o individualismo radical da direita libertária quanto o comunitarismo marxista de esquerda tentem nessa direção, porque encurralamento do comportamento individual pode ser visto como um ataque político à soberania pessoal. A verdade é que agora vivemos em um mundo em que tudo é politizado, e não temos escolha, em praça pública, a não ser aceitar isso e nos engajar de acordo.”

Desafios e oportunidades para a igreja

Trueman argumenta que a igreja precisa reconhecer a crise cultural atual e o ambiente hostil que a fé cristã enfrente na sociedade contemporânea. Ele se baseia nas ideias de Philip Rieff, Charles Taylor e Alasdair MacIntyre para sugerir que a igreja deve se envolver de maneira significativa com a nova cultura, compreendendo a trajetória histórica que nos trouxe até aqui. Trueman defende que é essencial para a igreja encontrar formas de comunicar a mensagem cristã de uma maneira que faça sentido na era do individualismo expressivo.

Para Trueman, a igreja está diante de uma crise cultural sem precedentes, pois a visão contemporânea de que identidade e moralidade são construções sociais fluidas estão em violento contraste com o ensinamento cristão tradicional de uma natureza humana invariável e um propósito predefinido concedido por Deus:

“Nenhuma cultura ou sociedade que teve de se justificar por si própria se manteve por tanto tempo. Isso sempre envolve entropia cultural, uma degeneração da cultura, porque, é claro, não há realmente nada que valha a pena comunicar de uma geração para outra. E com sérios desafios à ideia de que a sociedade ocidental é a meta a ser alcançada pela história – da Rússia, da China, do Islã e da miríade de ideologias políticas que se enraizaram na internet – a natureza anticultural do Ocidente contemporâneo parece instável e pouco convincente. [...] O conflito entre a religião tradicional e as identidades sexuais modernas é um choque – talvez o choque quintessencial – entre a cultura do segundo mundo e a anticultura do terceiro mundo, tão completamente opostas que estão no nível mais fundamental. [...] Isso parece tornar o livre exercício da religião, em termos do direito do indivíduo de aplicar suas crenças à vida fora do culto dominical, algo que não pode ser mais assumido. [...] As perspectivas de liberdade religiosa nos termos mais amplos de livre exercício parecem sombrias.”

A visão contemporânea de que identidade e moralidade são construções sociais fluidas estão em violento contraste com o ensinamento cristão tradicional de uma natureza humana invariável e um propósito predefinido concedido por Deus

Segundo Trueman, é crucial para a igreja abordar essa crise não apenas condenando as mudanças culturais, mas também compreendendo-as profundamente e maneiras de responder a elas de forma eficaz. Assim, ele conclui sua obra com uma reflexão sobre como a igreja pode enfrentar os desafios da era contemporânea e transmitir uma mensagem de esperança e redenção. Ele defende que, apesar das transformações culturais profundas e dos desafios significativos, a igreja tem a oportunidade única de ser uma voz da verdade e uma comunidade de esperança em um mundo que busca desesperadamente por significado e propósito.

Para lidar com essa situação cultural desafiadora, a igreja cristã:

Precisa restabelecer a plausibilidade da fé cristã. Em uma sociedade onde a religião cristã é percebida como algo opressivo imposto pela sociedade, a igreja deve demonstrar que a fé cristã apresenta uma perspectiva convincente e atrativa da vida e da identidade humana. Isso implica não apenas defender as doutrinas tradicionais da fé e a lei natural, mas também mostrar como essas doutrinas podem ser vivenciadas de modo a conduzir à verdadeira liberdade e plenitude;

Precisa interagir ativamente com a cultura atual. Isso envolve compreender as ideias e valores que influenciam o mundo moderno e encontrar formas de dialogar construtivamente com eles. A igreja deve ser um espaço onde as pessoas possam obter respostas para suas questões mais profundas sobre identidade e propósito, além de visualizar como a fé cristã pode transformar suas vidas;

Precisa reconhecer a crise cultural que enfrentamos no Ocidente. Muitos clérigos subestimam o alcance das mudanças culturais e o quanto essas transformações questionam os pressupostos tradicionais cristãos sobre identidade humana e moralidade. A era contemporânea, marcada pela valorização da autonomia individual e pela construção social da identidade, representa um desafio significativo à visão cristã acerca de uma natureza humana fixa e um propósito divinamente ordenado;

A igreja precisa encontrar formas de transmitir a mensagem cristã de modo atraente que ressoe com a busca contemporânea por autenticidade e liberdade

Precisa investir em educação teológica e intelectual sólida que não apenas defenda as doutrinas tradicionais, mas também as contextualize e explique de uma forma que faça sentido na sociedade atual. Isso inclui um diálogo profundo com as ideias de pensadores como Rousseau, Marx, Nietzsche e Freud, além de uma compreensão crítica das implicações dessas ideias para a fé cristã e o mundo contemporâneo;

Precisa encontrar formas de transmitir a mensagem cristã de modo atraente que ressoe com a busca contemporânea por autenticidade e liberdade. A igreja precisa mostrar como a fé cristã oferece uma visão sobre identidade e propósito que vai além das construções sociais e da autonomia individual. A mensagem cristã de que fomos criados à imagem de Deus, com um propósito e destino divinos, pode apresentar uma resposta impactante às questões atuais sobre quem somos e por que estamos aqui.

Precisa se posicionar como uma comunidade marcada pela esperança e verdade em meio a uma cultura caracterizada pela incerteza e fragmentação. A igreja tem a possibilidade de ser um espaço onde as pessoas podem encontrar respostas para suas questões mais profundas e vivenciar uma comunidade fundamentada no amor e na verdade. Ao apresentar uma alternativa genuína à cultura de individualismo expressivo, a igreja pode atrair aqueles desencantados com as promessas vazias de total liberdade e autonomia.

A igreja tem a oportunidade única de ser uma voz da verdade e uma comunidade de esperança em um mundo que busca desesperadamente por significado e propósito

A história da igreja é marcada por reformas e renovações constantes, e, com discernimento e coragem, a igreja pode interagir com a cultura contemporânea mantendo-se fiel ao evangelho e relevante às demandas contemporâneas.

Conclusão: um caminho para a frente

Rod Dreher, autor do renomado livro A Opção Beneditina e recomendado por Trueman, menciona no prefácio: “O livro de Trueman [...] é uma pesquisa e análise sofisticada da história cultural por um professor brilhante que não é apenas um cristão ortodoxo, mas também um pastor que entende as reais necessidades do rebanho – e que, ao contrário de tantos intelectuais, pode escrever de forma ricamente imaginativa”. Ascensão e triunfo do self moderno é uma análise minuciosa e perspicaz sobre como chegamos ao atual estado de individualismo expressivo e liberdade sexual. Escrito com ponderação e analiticamente, é leitura obrigatória para clérigos, educadores e cristãos intelectualmente engajados de todas as denominações cristãs, interessados em compreender as profundas mudanças culturais dos últimos séculos.

Além disso, Ascensão e triunfo do self moderno apresenta uma visão clara e convincente do papel que a igreja pode desempenhar para responder eficazmente a esses desafios. Esta obra oferece uma compreensão profunda das forças que influenciaram a cultura contemporânea, fornecendo insights valiosos sobre como a igreja pode se envolver significativamente com essas forças. Carl Trueman nos recorda que, apesar de os desafios serem consideráveis, existem também oportunidades significativas para a igreja se tornar uma voz de esperança e verdade em um mundo que busca desesperadamente por identidade e propósito.

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