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O autor da coluna desta semana é o Juan de Paula Siqueira, pastor da Igreja Batista do Redentor, no Rio de Janeiro. Ele foi coautor de um texto que publiquei recentemente, “Os valores que não querem que você perceba em ‘Top Gun: Maverick’”.
Como os lobos tomaram conta do país, e o que podemos fazer para ajudar os cães pastores
No dia 20 de junho, a empresa e produtora Brasil Paralelo lançou o seu mais recente e, segundo a sua própria direção, o mais desafiador documentário desde Pátria Educadora: Entre Lobos, dirigido por Silvio Medeiros. Este documentário tem como temática um dos maiores problemas do Brasil, se não for o maior: a questão da segurança pública. Foram diversos entrevistados, desde policiais, que estão na ponta de lança, até promotores, magistrados e estudiosos do tema, que contribuíram de forma multidisciplinar e multifatorial para a análise oferecida.
O tema da segurança pública e policial tem permeado a cena do cinema brasileiro, promovendo uma glamourização do crime e seus atores, durante décadas. A cena começa a mudar com a série Força Tarefa, que tinha como “mocinhos” os corregedores e a inteligência da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Sucessos como Tropa de Elite e Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro (este, um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro, com indicação a disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro) pavimentaram o caminho para que outros filmes e séries de temática policial viessem na esteira, tais como Operações Especiais, A Divisão, Arcanjo Renegado, Alemão 1 e 2, Amado e A suspeita, além da websérie Segunda Pele. Algumas dessas produções enaltecem a instituição ou o altruísmo dos policiais, outras criticam a corrupção na instituição e algumas até tentam humanizar ou justificar atividades criminosas em seu roteiro.
Entre Lobos conta entre seus entrevistados diversos especialistas reconhecidos publicamente: Rodrigo Pimentel, ex-oficial do Bope, autor de Elite da Tropa e roteirista do filme Tropa de Elite; Guilherme Derrite, deputado federal (PL-SP) e policial licenciado da PMESP; os promotores Leonardo Giardin (RS) e Diego Pessi (RS); o procurador Marcelo Monteiro (RJ); o ex-coordenador de segurança pública do estado do Rio de Janeiro Roberto Motta; a juíza de direito Ludmila Lins, dentre outros servidores da área de segurança pública, tais como delegados, oficiais e praças de polícias militares de diversos estados do Brasil.
Criminosos ocupam locais onde existe a ausência estatal, criando uma ditadura local, oprimindo os moradores daquela localidade
O documentário é dividido em três episódios, com duração média de 1h25 cada um, e enfocam desde a motivação do criminoso até o desenvolvimento e estrutura da economia do crime no Brasil, além de questões internacionais, envolvendo o problema nas fronteiras. Cada episódio aborda a questão em um argumento que serve como um fio condutor, passando pelas diversas etapas desde o ato criminal, que se revela a ponta de um iceberg de um problema mais complexo e estrutural.
O primeiro episódio, intitulado “Uma vida curta, sórdida e brutal”, oferece um diagnóstico preciso, realista e com relatos de crueldade, tornando-o assustador. Mas este não é um mero relato sensacionalista. É baseado em fatos, com dados técnicos e estatísticos mostrando a realidade da criminalidade no Brasil. E, como estudo de caso, o episódio oferece dois retratos: o da ocupação territorial de narcoguerrilheiros nas favelas do Rio de Janeiro, uma cidade marcada pelo contraste da beleza natural e do caos; e a “cracolândia” no bairro de Campos Elísios, em São Paulo, obviamente ocupada por dependentes e usuários de crack – uma imagem de um local devastado por uma guerra.
Segundo Rodrigo Pimentel, criminosos ocupam locais onde existe a ausência estatal, criando uma ditadura local, oprimindo os moradores daquela localidade. Um exemplo é dado pelo coronel da PMERJ Fábio Cajueiro, diretor do instituto Heróis do Rio de Janeiro, voltado para tratar da vitimização policial (quando, por exemplo, um policial é ferido por um disparo e fica paraplégico ou cego).
Em outro programa do Brasil Paralelo, Insight BP, o assinante tem um breve histórico sobre como as favelas do Rio de Janeiro se tornaram violentas e centros de ocupação de facções criminosas. A resposta está no fim do século 19, quando o Exército brasileiro recrutou combatentes para a Guerra de Canudos, na Bahia, com a promessa de oferecer moradia aos recrutas. Com a promessa não cumprida, os ex-combatentes ocuparam um morro ao lado da sede administrativa do Exército, no Rio de Janeiro – outrora um cortiço que foi demolido –, e que acharam semelhante a um morro baiano, em que tiveram contato com a planta favela (faveleiro, Cnidoscolus quercifolius). Assim, batizaram o local com o mesmo nome, ocupando-o com casas de madeira, papelão e pouco saneamento básico. Esse fenômeno se alastrou por alguns bairros da capital, se tornando um reduto de criminosos de baixa periculosidade, chamado de “favela”.
Nas décadas seguintes, a partir do regime militar iniciado em 1964, presos políticos foram detidos no Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ). Ali, foram colocados na mesma ala dos presos detidos por crimes tidos como comuns. Os presos políticos instruíram os presos comuns em ideologias revolucionárias de esquerda, e estes, quando libertos, ocuparam os morros cariocas, formando a primeira facção carioca, a Falange Vermelha, posteriormente rebatizada de Comando Vermelho, especializando-se em venda de drogas e assalto a bancos.
No fim do período do governo militar, o político gaúcho Leonel Brizola foi eleito governador do estado do Rio de Janeiro e proibiu a PMERJ de fazer incursões nas favelas cariocas, ocasionando um crescimento das facções criminosas, além da entrada de farto armamento. No documentário, o procurador Marcelo Monteiro mostra por meio de dados estatísticos que as facções criminosas hoje têm mais “atores não estatais armados” do que exércitos em países do continente europeu – parafraseando o coronel do Exército brasileiro Alessandro Visacro, em seus livros Guerra Irregular e Guerra na era da informação, em que disserta sobre o conceito de guerra assimétrica.
O capítulo termina expondo o resultado da ADPF 635 e o veto do uso de helicópteros, por parte das forças do Estado, em operações nas favelas cariocas, proporcionando maior possibilidade de ferimento de um agente policial. Aliás, é chocante a fala do coronel Cajueiro sobre os dados de policiais militares do Rio vitimados em conflitos urbanos, com números maiores do que a Segunda Guerra Mundial e guerras entre Estados nos últimos anos. As favelas cariocas se tornaram Black Spots, locais comuns no Oriente Médio de não ocupação estatal. Um especialista militar de Israel orientou a PMERJ a utilizar carros de combate em vez de blindados de transporte, pois estes são insuficientes para as operações no Rio de Janeiro. Em 2017, um jornal carioca cunhou a modalidade de “jornalismo de guerra”, ao falar dos conflitos urbanos no estado.
Um aspecto interessante do documentário que vale a pena salientar é que Entre Lobos não se limita aos dados e resultados, mas procura o fundamento filosófico e antropológico da criminalidade. Professores refutam a máxima do filósofo Jean-Jacques Rousseau de que “o homem é bom e a sociedade o corrompe”, optando por outra postura, similar à de Thomas Hobbes, para quem “o homem é o lobo do próprio homem”, desfazendo assim o mito da bondade inerente do ser humano e afirmando a tese de Stanton E. Samenow, que serviu em presídios norte-americanos e escreveu, em seu livro A mente criminosa, que o crime é uma decisão racional, de escolha, e que o ser humano não é meramente um produto do meio, o que tira a responsabilidade moral individual.
Entre Lobos não se limita aos dados e resultados, mas procura o fundamento filosófico e antropológico da criminalidade
Essa ênfase na escravidão da vontade ao pecado é parte integrante da estrutura doutrinal cristã, presente nas obras do grande bispo cristão Santo Agostinho, influenciando todas as tradições cristãs ocidentais, tanto católica como protestante, e recebendo status confessional nessas tradições. Sem a ajuda da graça o ser humano está em rebelião contra Deus e incapaz de transcender sua natureza caída em iniquidade.
Aqui, o documentário não aborda o crime somente na perspectiva territorial do município do Rio de Janeiro, mas também a distribuição das facções como um tipo de franquia e o fenômeno do “novo cangaço”, a violenta abordagem criminosa que ocorre em cidades interioranas, em que um grupo fortemente armado toma de assalto uma cidade para a realização de furtos.
O segundo episódio chama-se “Segurando o lobo pelas orelhas” e aborda o altruísmo dos policiais, porém com a insegurança em duas pontas: a bélica, porque o criminoso tem um arsenal mais potente; e a jurídica, pois a lei, influenciada pelo positivismo jurídico e pela doutrina do jurista italiano Luigi Ferrajoli, do garantismo penal, gera uma cultura de impunidade – que se reflete, por exemplo, na audiência de custódia, que, sob o argumento da celeridade, na verdade abranda a punição de criminosos.
Nas palavras de Ludmila Lins, juíza de Direito em Minas Gerais, esse garantismo é hiperbólico, pelo exagero no cuidado com o criminoso em detrimento da vítima; e monocular, pois olha somente para os direitos do criminoso, em detrimento da reparação à vítima. Tudo isso influenciado por ideologias “progressistas”, que compreendem que o crime é resultado do conflito de classes e da pobreza – o que é desmentido por inúmeros especialistas, com dados de inúmeros cidadãos de bem e trabalhadores residentes em comunidades carentes. Aqui, vale a leitura do livro dos promotores Leonardo Giardin e Diego Pessi Bandidolatria e Democídio: ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil.
O conceito de “taxa de atrito” é abordado pelo major Vilardi, da PMESP, doutor em Direito Penal: trata-se da realidade da criação de duas policias territoriais por estado, conforme o artigo 144 da Constituição: a militar, que é a polícia preventiva e ostensiva (baseada na gendarmerie francesa), e a polícia judiciária, de natureza civil, que trabalha com a investigação pós-crime, inspirada em organizações similares da Europa continental – em detrimento do modelo anglo-saxão, de uma única polícia de ciclo completo, que previne, flagra e investiga o delito, e que se mostra mais eficaz e eficiente, e menos custosa ao Estado, na luta contra o crime. Fora a questão da chamada “carreira única”, com uma única porta de entrada e a possibilidade concreta de ascender na carreira.
O documentário mostra o case de sucesso de Nova York na década de 1990, quando o prefeito Rudolf Giuliani iniciou o programa “tolerância zero” após décadas de expansão criminal naquela cidade. Todo crime seria denunciado, e todo agente corrupto seria punido – aliás, o documentário expõe como a impunidade na corporação serve de oportunidade para mal-intencionados dentro do serviço público. A polícia, como braço da lei no Estado moderno, foi liderada por William Bratton, comissário da NYPD, e os delitos criminais diminuíram drasticamente na cidade.
Giuliani utilizou a famosa “teoria das janelas quebradas” no campo da criminologia, que defende a ideia de que, se um indivíduo arremessa uma pedra em um prédio e quebra uma janela, o conserto deve ser providenciado imediatamente, pois, se a janela permanecer quebrada, vai transmitir uma mensagem de possibilidade de desordem e impunidade. Essa teoria, aplicada em um espectro mais amplo, mostrou que o programa “tolerância zero” foi efetivo e eficaz em Nova York e, depois, em Los Angeles e outras cidades com alto índice criminal nos EUA.
Um exemplo contado por Rodrigo Pimentel em uma entrevista foi o da pichação da estátua de Carlos Drummond de Andrade no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Enquanto o ato era enquadrado somente como delito menor, os pichadores saíam ilesos. Mas, quando um deles foi enquadrado em crime ambiental e efetivamente detido, a estátua não foi mais alvo de vandalismo.
O modelo anglo-saxão, de uma única polícia de ciclo completo, que previne, flagra e investiga o delito, se mostra mais eficaz e eficiente, e menos custosa ao Estado, na luta contra o crime
Vale destacar ainda, neste episódio, o tocante depoimento do sargento reformado da PMERJ Alex Fávaro, que, ao resgatar um colega em uma troca de tiro, foi alvejado e ficou tetraplégico.
O terceiro episódio, chamado “O custo do crime e o preço da civilização”, aborda o estado natural da humanidade, que é a barbárie, e a civilização como construção humana. Também mostra o problema das fronteiras, a luta contra a exportação de entorpecentes, o fenômeno do contrabando e as relações diplomáticas com outros países da América do Sul.
Real, assustador, chocante e cruel, o documentário expõe toda a logística criminosa e o seu aparato protetor, realizado por legisladores e aplicadores da lei de orientação “progressista” e revolucionária. Mas também não deixa de apontar caminhos de esperança e casos que estão dando certo, como o mencionado pelos tenentes-coronéis Nunes e Uirá e registrados também pelo major Leonardo Novo, todos da PMERJ: o caso do Bope na comunidade Tavares Bastos, na Zona Sul carioca, ocupada previamente por uma facção criminosa e onde, há mais de 20 anos, está sediado o quartel do Batalhão de Operações Especiais da PMERJ, não só atuando na repressão ao crime, mas oferecendo programas de esportes para a terceira idade e crianças daquele local. Interessante também o depoimento de crianças daquela localidade, que sonham em ingressar no Bope quando adultas.
Além disso, Entre Lobos destaca ótimos trabalhos como os batalhões de fronteiras das PMs de Paraná e Rondônia, como também a Divisão de Operações de Fronteira (DOF) da PM do Mato Grosso do Sul e a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), na área de patrulhamento tático, em São Paulo. Para os assinantes plenos, a Brasil Paralelo, em seu núcleo de formação, ainda oferece um excelente curso de segurança pública ministrado pelo professor João Henrique Martins, oficial da PMESP e cientista político.
O documentário expõe toda a logística criminosa e o seu aparato protetor, realizado por legisladores e aplicadores da lei de orientação “progressista” e revolucionária. Mas também não deixa de apontar caminhos de esperança
E o que fazer após assistir ao documentário? Uma consciência política de voto em candidatos, sobretudo ao Legislativo, a favor das instituições de força do Estado moderno, bem como da implantação de leis mais duras e punitivas para criminosos, conforme entrevista do deputado Derrite no canal da Brasil Paralelo. O documentário também fortalece uma iniciativa da demanda cultural de apoio e admiração aos agentes de segurança pública e do Judiciário, fazendo coro com filmes em que o policial é o herói e “mocinho”, além de bons canais de plataformas de divulgação de vozes da segurança pública, entre os quais destaco o Diário da Honra.
Todas essas iniciativas, como casos de êxito no combate ao crime, servem para inspiração e mudança do quadro atual. Para parafrasear o tenente-coronel da reserva do Exército dos Estados Unidos Dave Grossman: “Existem três tipos de pessoas neste mundo: ovelhas, lobos e cães pastores. Algumas pessoas preferem acreditar que o mal não existe no mundo, e se algum dia o mal bate-lhes à porta, eles não saberiam como se proteger. Essas são as ovelhas. Então você tem predadores, que usam a violência para se alimentar dos mais fracos. Eles são os lobos. E, depois, há aqueles abençoados com o dom da agressão, uma necessidade incontrolável de proteger o rebanho. Estes homens são a raça rara que vive para confrontar o lobo. Eles são os cães pastores”. Quem sabe Entre Lobos não incentive mais jovens a se tornarem “cães pastores”?
(Escrevo este artigo em memória de meus parentes que serviram na antiga Guarda Civil do Distrito Federal e na atual Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, um deles cumprindo com o dever com o sacrifício da própria vida. Também dedico este texto ao meu melhor amigo, agente de Polícia Federal B. Carvalho, que com honra expõe a sua própria vida para a liberdade do próximo.)