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O Brasil tem atravessado momentos críticos, não somente do ponto de vista político, mas também no que diz respeito à garantia de princípios basilares de uma sociedade democrática. Temos recebido vários relatos de cidadãos que são vilipendiados por seus princípios e valores, em sua maioria pautados pela fé cristã. É o caso da professora Anna Maria Barros de Azevêdo, a entrevistada de hoje na coluna. Ela é formada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco, especialista em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela Unyleya e mestre em Linguística pela Universidade de Brasília. Foi virtualmente cancelada pelos seus alunos de pós-graduação, o que culminou em sua demissão da instituição em que trabalhava, o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR School). O motivo: ser cristã e se posicionar contra o aborto em suas redes pessoais.
Para além de fomentar a reflexão sobre o rumo que o Brasil tem tomado, surge a necessidade de, como cidadãos, estarmos vigilantes quanto à defesa das liberdades de expressão e religiosa, fundamentais não somente para o respeito mútuo entre os povos, mas também para contribuir em políticas de desenvolvimento nas diversas áreas que compõem uma sociedade organizada.
Quando você foi contratada pela CESAR e que responsabilidades você desempenhava?
Fui contratada pelo CESAR (cuja mantenedora é a IES CESAR School) em junho de 2018. Estava alocada em Projetos Educacionais, na função de assistente administrativa. Minha função era destinada ao trabalho na Secretaria Acadêmica da instituição, que deve focar em atividades de manutenção da vida acadêmica do aluno enquanto curso (matrícula, lançamento de notas, emissão de documentos, guarda de acervo acadêmico e atendimento presencial naquilo que couber).
Além das tarefas atribuídas à função, exercia atividade relacionada à Secretaria-Executiva da faculdade, com elaboração de atas das reuniões de gestão acadêmica e administrativa; elaboração e revisão de documentos ligados ao credenciamento e recredenciamento da instituição no MEC; acompanhamento da Comissão Própria de Avaliação, desenvolvendo pesquisas acadêmicas com os alunos quanto ao desempenho institucional nos âmbitos administrativo, infraestrutura e pedagógico; ouvidoria, com atendimento especializado via e-mail e reuniões virtuais com reclamantes, buscando solucionar as reclamações feitas quanto a cada setor institucional, visando excelência educacional e alto padrão de qualidade nos serviços prestados aos alunos e comunidade acadêmica; administração diária em um dos estabelecimentos locais da instituição, atendendo as demandas do dia a dia junto a professores, alunos, demais atores educacionais e, ainda, atendimento ao público externo que se dirigisse à instituição; e, por fim, docência do ensino superior nas disciplinas de Metodologia Científica e Escrita Criativa, para os cursos lato sensu em Desenvolvimento de Aplicações Móveis e Design de Interação para Artefatos Digitais.
As liberdades de expressão e religiosa são fundamentais não somente para o respeito mútuo entre os povos, mas também para contribuir em políticas de desenvolvimento nas diversas áreas que compõem uma sociedade organizada
Como era o ambiente de trabalho e com os alunos?
O ambiente de trabalho era excelente, de muita amistosidade e respeito entre os colegas de trabalho. O líder imediato apresentava conduta ilibada na condução da equipe, demonstrado competência técnica e humanidade no trato com todos. Os alunos sempre foram cordiais. Gostavam de frequentar a minha sala para tirar dúvidas, mas também para partilha de situações da vida particular, obtendo em minha pessoa não somente o atendimento profissional, mas também a oportunidade de diálogos sobre assuntos diversos que desejassem, sempre com mútuo respeito e espírito de amizade.
Tanto com colegas de trabalho quanto com alunos, quando havia divergência de opiniões, tudo era sempre tratado com bom humor e respeito, buscando manter o bom relacionamento e cordialidade. Não me recordo de absolutamente nenhuma situação em que os vínculos de convivência tenham sido prejudicados por quaisquer que fossem os assuntos tratados, e a gestão sempre manifestava ouvir boas referências a meu respeito, quando eu buscava informações de como estava meu desempenho profissional.
Com os alunos que participaram de minhas disciplinas, a receptividade e carisma eram notórios. Buscava um sistema de aulas que não fosse monótono, ainda mais considerando que as minhas disciplinas eram aquelas não muito queridas no campo acadêmico por terem conteúdos muito teóricos. Mas ao fim da oferta de disciplinas, quando conversávamos sobre o conteúdo e exposição das aulas, era notória a satisfação pela leveza com que eu transmitia os conteúdos. Aqui e acolá surgiam algumas reclamações de ordem pedagógica (sobre se a disciplina era necessária à grade curricular, por exemplo) e quanto à disposição do tempo destinado à cada atividade. Eu acompanhava tais reclamações nas avaliações que fazia na qualidade de CPA, e sempre comentava com os coordenadores de curso sobre como poderíamos melhorar minha atuação docente. Eu tinha uma comunicação muito boa com as coordenações, de maneira que as aulas iam sendo aperfeiçoadas a cada turma aplicada.
Quando a situação começou a mudar?
Esta é uma pergunta curiosa, porque o bom relacionamento institucional (envolvendo profissionais e clientes) era excelente. A gestão institucional (e aqui eu trato da liderança como um todo) sempre demonstrou confiança no meu trabalho; mesmo quando surgiam algumas opiniões contrárias relativas às decisões de trabalho, sempre se mostraram atentos aos meus feedbacks. Não era incomum ouvir “suas contribuições são sempre bem-vindas”, o que me trazia confiança no desempenho das minhas atividades, ciente de que haveria sempre o diálogo.
Se houve um momento para a situação mudar, diria que foi na oferta da disciplina de Escrita Criativa na última turma para a qual lecionei. Em junho, lecionei em uma turma de Design de Interação para Artefatos Digitais. Passei um poema livre e os alunos fizeram um verso em que mencionavam o Lula. Perguntei se era a lula animal marinho ou o Lula candidato, e eles disseram que era o candidato (e, ligando suas câmeras, faziam o L, na tentativa frustrada de que eu os coibisse). Eu disse: “Não vou nem falar para vocês qual é meu candidato, para vocês não me odiarem. Mas vamos continuar a aula”. E seguimos tranquilos. Eu achava que estava tudo bem, mas descobri, com a minha demissão, que não. Os alunos do mesmo curso se comunicavam entre si e construíram uma narrativa pejorativa em que eu, uma professora “bolsonarista” e “conservadora”, como eles rotularam, não era apta a estar lecionando numa turma de “inovação”.
Qual foi o estopim de sua demissão?
O estopim da minha demissão se deu quando surgiu o caso jornalístico de uma pré-adolescente catarinense, de 11 anos, que engravidou e estaria sendo submetida, em breve, a um aborto para retirada do bebê. Como sou mestre em Linguística, tendo acuidade para análise do discurso, percebi de imediato uma tendência midiática para colocar a população favoravelmente ao aborto, apontando dados duvidosos para manipular a opinião pública. Quem lida com análise textual percebe isto com muita facilidade. E a notícia não ficou de fora dessa manipulação, infelizmente. Digo “infelizmente” porque vemos uma parcela do jornalismo brasileiro praticando um desserviço a muitos jornalistas comprometidos com a seriedade da profissão e idoneidade dos dados. Não sem razão, hoje vivemos um grande prejuízo com uma impressa costumeiramente desacreditada e alvo das tais fake news em meio a notícias verídicas e sérias. Meu papel, enquanto docente e linguista é, sem dúvida, instigar os meus alunos a uma percepção aguçada para que sejam capazes de distinguir notícias de fake news. Escrevi uma análise textual e a publiquei em minhas redes sociais e no meu LinkedIn – nas redes sociais, porque meus amigos de rede gostam de ler meus textos e opiniões; no LinkedIn, por ser uma ferramenta em que devemos apontar nossas habilidades profissionais e, sendo eu linguista, nada mais acertado que colocar um objeto de meu trabalho profissional ali, para que tomem ciência das minhas habilidades linguísticas.
“Meu papel, enquanto docente e linguista, é, sem dúvida, instigar os meus alunos a uma percepção aguçada para que sejam capazes de distinguir notícias de fake news.”
Anna Maria Barros de Azevêdo, professora demitida por assumir posicionamento pró-vida.
Qual foi o teor do texto que gerou sua demissão?
O que escrevi foi exatamente o seguinte:
“Ontem,
antes de dormir, li uma ‘reportagem de jornal’. Hoje, ao acordar, ela estava na
minha mente por seu discurso paupérrimo. Aliás, diga-se de passagem, as aspas
foram propositais, já que a notícia ficou longe de atender às especificidades
do gênero textual jornalístico que é informar.
Como a notícia está rendendo discussões afora, foi impossível não rabiscar
alguns apontamentos de análise do discurso que revelam quão tendencioso o texto
se apresentou.
1. Diz que a criança foi colocada longe da família. Mas abaixo revela
que a decisão judicial só foi cumprida +- 15 dias depois da recomendação da
Magistrada, inclusive após a mãe ser incluída no serviço de proteção às vítimas
de violência.
2. O discurso ‘politicamente correto’ aponta que crianças não têm noção
de decisões como, por exemplo, quando cometem crimes de roubo/assassinato e,
por isso, deveriam ser isentas de processos judiciais, indo para centros de
reintegração... mas são perfeitamente aptas para decidir seguir com uma
gestação ou não, aos 11 anos.
3. A postura da Magistrada em uma tentativa de manter a criança que está
sendo gestada é colocada como erro, quando na verdade se trata da preservação
da vida.
4. O uso constante do termo ‘feto’ para se referir à criança que está
sendo gestada revela o distanciamento da solidariedade da raça, isto é, uma
vida está sendo desconsiderada e descartada. Aliás, diga-se de passagem, esta é
uma das artimanhas do feminismo.
5. A vida que está fora tem direito a advogados e vozes estridentes em
sua ‘defesa’, mas a vida que está dentro receber um advogado que estime pela
sua sobrevivência é absurdo?
Notícias jornalísticas deveriam preservar a característica do tipo textual que
se utiliza, isto é, noticiar, descrevendo fatos, e nada mais.
Mas, o que se espera de uma geração marcada pelo analfabetismo funcional, não é
mesmo?”
Como é possível observar, fiz uma análise do que o texto dizia, na reportagem original. Não me dediquei a defender ou condenar a atitude da juíza ou o aborto. Mas coloquei em xeque a posição do jornal quando se posiciona contra a juíza e a favor do aborto. Um bom texto jornalístico informativo se preza a informar o que está acontecendo, sem tecer opiniões sobre os sujeitos da notícia. Como trabalho com gêneros textuais e literários, quis fomentar essa reflexão quanto à preservação ou não do tipo textual.
A instituição, no momento de minha demissão, deixou claro o motivo da minha demissão, que era o referido texto. Na ocasião, falei um pouco sobre a utopia da neutralidade em sala de aula; sobre o fato de que, aonde vamos, levamos nossa cosmovisão em nossas atitudes e falas; e sobre a minha idoneidade em entrar na sala, lecionar e sair sem contexto político e religioso qualquer que fosse. Agradeci o tempo ali, parabenizei meu chefe imediato, que foi um grande líder pra mim, entreguei o notebook da empresa com tudo que dizia respeito ao meu trabalho e saí.
Qual a reação de alunos e colegas à sua demissão?
Os alunos que conviviam no dia a dia ficaram incomodados com a minha saída, mesmo que tivessem opiniões contrárias às minhas, questionando a decisão da faculdade por uma opinião particular. Os alunos que foram autores do meu cancelamento virtual e posterior demissão comemoram a minha saída em grupos de WhatsApp, até onde tomei conhecimento. Houve uns poucos alunos desta mesma turma que lamentaram a postura canceladora e comemorativa dos resultados obtidos, de seus colegas. Alguns ex-alunos ficaram sabendo da questão e lamentaram o posicionamento institucional intolerante às opiniões de uma colaboradora, sem levar em consideração o meu profissionalismo e desempenho das funções que eu realizava ali. Os colegas de trabalho se mostraram céticos de que eu fosse demitida por esta questão, já que era uma opinião pessoal. Mas, quando a demissão foi concretizada, se mostraram aversos à postura da Gestão Institucional, que se mostrou totalmente intolerante a opiniões divergentes e ainda agiu com arbitrariedade, dando ouvidos à opinião de uns poucos alunos, sem levar em consideração todo o trabalho pedagógico e administrativo de qualidade que recebia como fruto de meu trabalho.
Emocionalmente, muitos foram consolados por mim. Procurei mostrar a eles que não agi de má-fé em nenhuma das minhas aulas; que sempre respeitei meus alunos quaisquer que fossem suas opiniões, sempre considerando um ambiente de troca de conhecimento e construção do saber; que não cometi nenhum ato político ou religioso em sala de aula, como estava sendo espalhado institucionalmente por detratores; que aprendi bastante no convívio institucional e, sem dúvida, a amizade permaneceria fora daquele ambiente, pois os relacionamentos construídos de minha parte não eram falsos, mas pautados em respeito e cordialidade.
“Saí bastante feliz porque os valores responsáveis por quem sou são inegociáveis. Ser cristã em um mundo dominado pela inversão de valores é uma honra.”
Anna Maria Barros de Azevêdo,
Como você se sente com toda essa situação? Tem recebido apoio?
Eu me sinto muito tranquila quanto ao trabalho que desempenhei no CESAR. Procurei dar o melhor do meu conhecimento acadêmico em tudo quanto realizei. Embora eu fosse uma simples assistente administrativa, trabalhava diariamente com um sentimento de pertencimento, querendo ver a empresa crescer e fazer diferença não somente na formação dos alunos, mas também na sociedade em que está inserida. Pude aprender muitas coisas boas em quatro anos de trabalho sobre autonomia, trabalho em equipe, respeito mútuo, ferramentas de facilitação do trabalho e sobre inovação.
Mas a decepção quanto à teoria e à prática foi inevitável nessa questão. O CESAR sempre se posicionou, em seu discurso, como uma empresa acolhedora de todas as classes. Mas mostrou-se totalmente aversa ao seu discurso quando desconsiderou que uma mulher nordestina, deficiente, professora e cristã pudesse ser competente e desempenhar suas atribuições com ética e comprometimento sem que isso afetasse seus valores. A prática intolerante fez o discurso teórico cair por terra! Também fiquei surpresa em ter sido demitida por uma das muitas funções acumuladas que em nada dizia respeito à função para a qual fui contratada. Contratada como secretária, fui demitida como professora, o que aponta para o fato de que eu realmente acumulava muitas funções maiores que aquela para a qual fui chamada, o que ainda atestava a minha capacidade profissional. Neste ponto, foi um grande elogio para mim, profissionalmente falando.
Pessoalmente, saí bastante feliz porque os valores responsáveis por quem sou são inegociáveis. Ser cristã em um mundo dominado pela inversão de valores é uma honra. E ser perseguida por esta razão era algo a que eu me considerava inapta, mas fui fortalecida pela fé e saí assim... feliz! Se o CESAR não soube respeitar e conviver com esta diferença, certamente aquele lugar não me cabia mais.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos