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Nesta semana entrevisto João Luiz de Oliveira, graduado em Cinema, MBA em TV, coordenador do Projeto Sobreviventes, uma iniciativa de usar produções audiovisuais para denunciar todo tipo de violência contra crianças e valorizar a vida desde a concepção. Também é diretor e roteirista do filme Kanani, eu sobrevivi (2021, 38 minutos), que pode ser assistido na versão original ou na versão legendada em inglês, um documentário que denuncia a violência que crianças indígenas ainda sofrem em algumas tribos através do infanticídio.
Como surgiu a ideia do documentário Kanani, eu sobrevivi?
Durante alguns anos eu apoiei financeiramente um casal de missionários evangélicos entre os indígenas do Amazonas. Em 2009 esse casal me deu de presente o filme Hakani, dirigido por David L. Cuningham, cineasta de Hollywood. O drama mostrava a história de duas crianças vítimas de infanticídio: Hakani e Niawi, seu irmão. Ele levou um golpe de facão na cabeça, desmaiou, foi enterrado e morreu. Ela também levou um golpe de facão na cabeça, desmaiou, mas acordou, começou a chorar e foi salva por Bibi, um de seus irmãos. Ele cuidou dela durante alguns anos. Quando ela estava quase morrendo de desnutrição, ele a entregou ao casal de missionários Edson e Marcia Suzuki, com a autorização da liderança da tribo. Apesar de não conseguir o apoio direto da Funai, esse casal conseguiu tratamento médico para Hakani e, depois, a adotou legalmente. É uma das histórias mais emocionantes que conheci. É um milagre que ela tenha sobrevivido depois de tanto sofrimento. Quando vi esse filme em 2009, estava concluindo minha graduação em Cinema e resolvi fazer meu TCC contando sua história, além de analisar outros filmes brasileiros que falam da violência contra crianças. Assim surgiu o Projeto Sobreviventes, cujo objetivo é produzir filmes que exaltem o valor sagrado da vida humana e denunciem todo tipo de violência contra bebês e crianças.
O que é infanticídio e como acontece essa prática entre os indígenas brasileiros?
O infanticídio é o ato de matar um bebê normalmente recém-nascido; quase sempre, é praticado pela própria mãe. O artigo 123 do Código Penal brasileiro define infanticídio como “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”, e prevê pena de dois a seis anos de detenção. O infanticídio sempre foi praticado na história e por diversas motivações diferentes. Na Grécia matavam-se os bebês mais fracos, pois não seriam bons guerreiros. Na Babilônia e em Canaã, em sacrifício aos deuses, como Baal, por exemplo; no Egito, o faraó ordenou que as parteiras matassem todos os recém-nascidos hebreus com o objetivo de matar Moisés, o futuro líder de Israel. A fim de matar Jesus, Herodes, o Grande, mandou matar todos os bebês de até 2 anos em Belém. Os incas, astecas e maias também sacrificavam bebês. Na China comunista, devido à proibição de se ter mais de um filho, muitos bebês eram mortos ou abandonados para morrer logo depois do nascimento. Na Índia, muitos bebês do sexo feminino ainda são rejeitados e mortos pela família que não quer pagar o dote do casamento.
“Antropólogos e indigenistas adeptos do relativismo moral e cultural extremo ainda enxergam o infanticídio como uma questão puramente cultural e de costume. Missionários e agentes de saúde me contaram que sofreram intimidações por salvar crianças do infanticídio.”
João Luiz de Oliveira, coordenador do Projeto Sobreviventes
Porém, é preciso deixar claro que, no Brasil, não são só os indígenas que praticam o infanticídio. Muitas mães e pais nas nossas cidades praticam o infanticídio e o assassinato de bebês e crianças: agridem-nas até a morte, jogam-nas de prédios e as abandonam em lixeiras. Milhares de bebês são abortados todo ano no Brasil. Entre os indígenas, há algumas etnias brasileiras que ainda praticam o infanticídio e o assassinato de bebês e crianças, como os suruwahás, no Amazonas; os camaiurás, em Xingu (MT); e os yanomamis, em Roraima. Alguns bebês são mortos quando a mãe é solteira; em algumas etnias, o bebê é morto porque nasceu com alguma deficiência física ou mental, como foi o caso de Iganani, Hakani e seu irmão Niawi; alguns bebês são mortos por questão social e econômica, pois os pais acham que não vão poder criar a criança; outras morrem por questões religiosas e superstição, como o caso de bebês gêmeos considerados amaldiçoados em algumas etnias. Nem sempre são a mãe ou o pai quem mata o filho; às vezes é a avó, outro parente ou a liderança da tribo.
Como as leis brasileiras tratam a questão da proteção das crianças indígenas?
O artigo 227 da Constituição Federal brasileira afirma que as crianças têm “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Isso vale para todas as crianças, inclusive as indígenas. Além da Constituição, o Brasil assinou tratados internacionais com peso de lei que também protegem a vida das crianças e faz parte de órgãos multinacionais que determinam essa protação, tais como a Organização Internacional do Trabalho e a Convenção sobre os Direitos da Criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também exige essa proteção. O PL 1.057/2007 – conhecido como Lei Muwaji – visa a proteger plenamente a vida dessas crianças e está tramitando no Congresso há 15 anos.
Infelizmente, antropólogos e indigenistas adeptos do relativismo moral e cultural extremo ainda enxergam o infanticídio como uma questão puramente cultural e de costume. Eles não aceitam a interferência do não indígena nessa questão. Diversos missionários e agentes de saúde me contaram que sofreram intimidações por salvar crianças do infanticídio. Segundo eles, em governos anteriores, acusações e ameaças de estarem destruindo a cultura e a tradição indígena partiram de pessoas ligadas à Funai e de antropólogos. Uma das entrevistas que fiz me chocou profundamente. Uma missionária me contou que um antropólogo, na hora de emitir o laudo para autorizar a adoção da criança de quase 1 ano que ela salvou da morte – além de ferimentos e hematomas pelo corpo, a bebê tinha duas fraturas de crânio –, declarou o seguinte diante do juiz: “Só vou autorizar a adoção porque ela já tem quase 1 ano. Se ela ainda fosse bebê eu não ia autorizar e ela seria levada de novo à tribo para morrer lá porque essa é a cultura deles”.
Fale um pouco sobre esse PL da “Lei Muwaji”.
O PL 1.057/2007 é de autoria do então deputado federal do PT Henrique Afonso (hoje ele é filiado ao PSD) e foi criado para proteger as crianças indígenas do infanticídio. Ele foi inspirado na história real da indígena Muwaji Suruwahá, que decidiu deixar sua tribo suruwahá, no Amazonas, a fim de salvar sua filhinha Iganani porque ela tinha paralisia cerebral parcial; a tribo entendia que ela era amaldiçoada e precisava ser sacrificada. Muwaji não aceitou essa sentença, saiu da tribo e foi para Brasília, onde foi acolhida pela ONG Atini, que providenciou todos os tratamentos de saúde necessários para que Iganani tivesse qualidade de vida. Esse PL foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2015, tornou-se Projeto de Lei da Câmara (PLC) 119/2015 e está na gaveta do senador Marcos Rogério, esperando para ser votado no Senado. Ele sofreu uma alteração, tornou-se mais abrangente e passou a incluir a proteção às mulheres, idosos e indígenas com deficiência. O objetivo do PLC 119/2015 não é punir indígenas, como alguns jornalistas e antropólogos já afirmaram na mídia. Isso é fake news. O objetivo é salvar a vida dessas crianças!
Outro objetivo fundamental do PLC 119/2015 é exigir que qualquer pessoa (indígena ou não) que souber que uma criança será vítima de infanticídio comunique às autoridades que tomará as providências necessárias para salvar a vida da criança. Por outro lado, diferentemente do que vinha acontecendo até aqui, o PLC 119/2015 vai proteger o denunciante ou a pessoa que salvar a criança; essa pessoa não poderá sofrer nenhuma ameaça, mesmo sendo missionário ou servidor público. Além disso, o PLC 119/2015 também prevê a criação de políticas públicas para viabilizar o que for necessário na área de educação e saúde entre as tribos a fim de acabar com essa cultura de morte. Essa luta é uma luta essencial para a preservação da vida e da cultura indígena.
Como é o trabalho das pessoas e instituições que lutam para salvar essas crianças?
Há quase 20 anos a ONG Atini – voz pela vida, de Gama (DF), faz um trabalho maravilhoso e fundamental, mas muito atacado por alguns antropólogos, indigenistas e instituições que acham que ninguém pode interferir nessa prática cultural nociva. A cultura indígena deve ser preservada: as danças, a culinária, a arte, a relação com a natureza. Mas a cultura da morte deve ser banida. A cultura não pode estar acima da vida. Aliás, só existe cultura se houver vida.
A ONG Atini foi fundada pelos missionários Edson e Marcia Suzuki, pela ex-ministra e senadora eleita Damares Alves, por antropólogos, indígenas e voluntários de diversas áreas da sociedade civil. Ela acolhe crianças indígenas de várias etnias em risco de morte ou violência. Suas famílias são acolhidas também. Diversas crianças que seriam mortas foram salvas. O líder indígena Kakatsa Kamaiurá e sua esposa Sarah também fazem um trabalho imprescindível para livrar essas crianças da morte. Ele mesmo foi salvo. Seu pai não reconheceu a paternidade e ele seria morto, mas foi salvo por uma vizinha que, mais tarde, o devolveu à sua mãe. Eu entrevistei alguns profissionais de saúde que também salvaram bebês quando seriam mortos. Ouvi, também – infelizmente! –, de indígenas e não indígenas que tentaram, mas não conseguiram salvar crianças. Muwaji, que dá nome ao PLC 119/2015, conta que ficou com muita raiva porque passou uma noite ouvindo o choro de um bebê enterrado vivo em sua aldeia suruwahá e não pôde fazer nada.
“O objetivo do PLC 119/2015 não é punir indígenas, como alguns jornalistas e antropólogos já afirmaram na mídia. Isso é fake news. O objetivo é salvar a vida das crianças.”
João Luiz de Oliveira
Quais são os próximos objetivos do Projeto Sobreviventes?
Fomos convidados pelo líder indígena yanomami Renato Sanumá, diretor da Associação Sanumá, para fazer um documentário sobre seu trabalho de salvar e acolher crianças na selva. Já são mais de 50 crianças salvas do abandono ou infanticídio em Roraima. É um trabalho fantástico e que precisa de visibilidade e apoio. Também queremos produzir filmes sobre o aborto e sobre crianças vítimas de abusos sexuais e outras violências. Queremos usar os filmes para denunciar a violência e a morte, mas também para mostrar histórias de esperança e vida, como fizemos no Kanani, eu sobrevivi. Queremos mostrar a saga de verdadeiros sobreviventes para inspirar outros nessa luta pela vida. Uma coisa muito importante é que só conseguimos produzir o documentário porque diversas pessoas contribuíram financeiramente ou doaram seu tempo e talento. Precisamos de mais aliados nesse combate pela vida: cidadãos comuns, empresários, artistas, indígenas e não indígenas, advogados, profissionais de comunicação e cultura e muitos outros. Neste momento certamente muitas crianças estão sofrendo violência física, sexual ou sendo mortas nas cidades, mas também nas aldeias. Nas sociedades não indígenas já existe o consenso de que matar um bebê indefeso é crime hediondo, bem como o cumprimento das leis, das punições e das iniciativas para acolher as vítimas. E as crianças indígenas, o que fazer para salvar suas vidas? A sociedade brasileira precisa debater urgentemente essa questão e tomar providências para acabar com essa tragédia em pleno século 21.
Os interessados em conhecer mais sobre o Projeto Sobreviventes e aqueles que se sentirem motivados a lutar contra a violência e a favor da vida de bebês e crianças indígenas e não indígenas podem entrar em contato pelo telefone (27) 99790-2929, pelo e-mail projetosobreviventes@gmail.com e pelo perfil do projeto no Instagram.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos