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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Igreja evangélica, Evangelho, teologia moral, história e cultura. Coluna atualizada às quintas-feiras

Guerra civil e guerra justa

Batalha de Gettysburg
Batalha de Gettysburg (Foto: Currier and Ives)

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A Guerra Civil Americana, travada entre 1861 e 1865, e que custou aproximadamente 750 mil vidas, incluindo mais de 200 mil mortes em campos de batalha, permanece como o conflito mais mortífero ocorrido na América, com repercussões profundas que ecoam até os dias de hoje.

Também é considerada a primeira “guerra total” da história. Em The Calculus of Violence: How Americans Fought the Civil War, publicado em 2018 pela Harvard University Press, Aaron Sheehan-Dean, professor na Louisiana State University, argumenta que a guerra poderia ter sido muito pior, se ambos os lados não tivessem aspirado a lutar uma guerra justa.

Este artigo, baseado numa entrevista concedida por Aaron Sheehan-Dean para a revista America’s Civil War, de março de 2019, busca explorar a ética da guerra durante esse conflito, especialmente à luz da doutrina da guerra justa. Investigaremos como os líderes e soldados dos dois lados buscaram conciliar a violência da guerra com princípios éticos cristãos, as violações que ocorreram e os esforços para manter a guerra dentro de limites moralmente aceitáveis.

Origens da doutrina da guerra justa

Para compreender a ética da guerra durante a Guerra Civil Americana é fundamental remontar às raízes da doutrina da guerra justa. Desde a Antiguidade, pensadores cristãos como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino tentaram conciliar a violência do conflito armado com os preceitos éticos cristãos.

No século 17, o jurista holandês Hugo Grotius defendeu que a guerra poderia ser travada de forma justa apenas se estivesse em conformidade com os princípios morais cristãos. Essas concepções influenciaram os fundadores dos Estados Unidos e foram integradas ao pensamento militar da época.

Sheehan-Dean escreve: “Historiadores europeus diriam que [a doutrina da guerra justa] começa com teólogos como Santo Agostinho tentando conciliar a guerra com a ética cristã. O jurista holandês do século 17, Hugo Grotius, argumentou que as nações podem travar guerras justas apenas mantendo a violência dentro dos limites da moral cristã. Grotius influenciou o escritor do século 18, Emer de Vattel, que foi lido por George Washington e Thomas Jefferson. A geração da Guerra Revolucionária estava familiarizada com essas teorias, principalmente [com a noção de] que a violência [na guerra] deveria ser direcionada apenas aos soldados uniformizados, não aos civis.”

O Código Lieber

Um marco importante na história da ética de guerra durante a Guerra Civil americana foi a criação do Código Lieber. Francis Lieber, um imigrante alemão, veterano do exército prussiano durante as Guerras Napoleônicas, filósofo político e consultor do Exército da União, transformou teorias abstratas sobre guerra justa em diretrizes práticas para as Forças Armadas dos Estados Unidos. As Ordens Gerais nº 100, de 24 de abril de 1863, representaram os primeiros passos para codificar as leis de guerra, estabelecendo o que era considerado aceitável e inaceitável durante o conflito.

De acordo com Sheehan-Dean: “Francis Lieber era um imigrante alemão que lecionava na Columbia College e se tornou consultor do Exército da União. Em 1863, ele escreveu o que ficou conhecido como Ordens Gerais nº 100, que traduziam as antigas teorias de guerra justa de seus predecessores europeus para as realidades norte-americanas do século 19. As ordens que ele estabeleceu para o uso do Exército eram tópicos – o que você pode e não pode fazer [numa guerra]. Essas foram as primeiras regras de combate.”

Como resume Sheehan-Dean, no Código Lieber, as “táticas padrão como sitiar cidades, destruir fortificações e bombardear fábricas de material bélico eram permitidas. Alvejar civis ou destruir instituições como hospitais, escolas e bibliotecas era proibido. A violência letal estava restrita às pessoas que estavam armadas”.

Violações das leis de guerra

Apesar dos esforços para aderir à ética de guerra, ambos os lados envolvidos na Guerra Civil Americana desrespeitaram as leis estabelecidas. Desde a controversa Proclamação de Emancipação até as execuções de prisioneiros e táticas guerrilheiras, registros históricos revelam uma série de transgressões ocorridas na guerra. A questão dos soldados negros e a aplicação desigual das regras de tratamento de prisioneiros de guerra levantam dilemas éticos complexos enfrentados durante o conflito. Essas transgressões suscitaram questionamentos profundos sobre o equilíbrio entre as necessidades militares e a moralidade da guerra.

Como escreveu Sheehan-Dean: “Muitos confederados consideravam a Proclamação de Emancipação, em 1863, declarando que todas as pessoas escravizadas nos estados rebeldes seriam alforriadas, e o alistamento de soldados negros no Exército da União como violações das leis da guerra, porque supostamente encorajavam a insurreição dos escravos no front interno. A liderança confederada acreditava que os soldados negros não estavam protegidos pelas regras que regiam o tratamento de prisioneiros. Jefferson Davis [presidente dos Estados Confederados da América] acreditava que, se os antigos escravos fossem capturados, deveriam ser escravizados novamente ou executados sob as leis estaduais que impunham a pena de morte para insurreições de escravos. Muitos soldados negros foram mortos ao tentar se render. Em julho de 1863, [o presidente] Abraham Lincoln emitiu uma proclamação na qual ele disse que, para cada soldado da União injustamente escravizado ou executado após a rendição, os comandantes da União tomariam uma ação correspondente contra um confederado capturado. Lincoln estava ameaçando escalar dramaticamente a guerra; ele colocou pressão suficiente sobre o Sul para que pelo menos alguns soldados negros fossem tratados como [os soldados] brancos”. Mas ele destaca: “A qualquer momento, um comandante de divisão ou até mesmo de uma brigada tinha considerável autonomia. Na Batalha da Cratera em Petersburg, em 1864, o general de brigada confederado William Mahone autorizou [...] a morte de centenas de homens negros feridos”.

Sheehan-Dean também destaca como o Norte percebeu as ações dos guerrilheiros sulistas: “Neste ponto, Lieber não deixa margem para dúvidas. Seu código articula uma variedade de maneiras de identificar guerrilheiros – homens que não usam uniforme, ou operam sob o comando regular de oficiais, não vivem em um acampamento militar e cometem ataques de guerrilha. Esses homens, disse Lieber, devem ser considerados salteadores de estrada e sumariamente executados. Não há uma contagem confiável, mas eu suponho que milhares de guerrilheiros [confederados] foram executados, mas milhares mais foram capturados e enviados para as prisões do Norte. Isso dependia das condições. Se os homens fossem capturados com armas e cavalos, mas não estivessem no meio de um ataque, poderiam ser enviados para a prisão. Se fossem pegos no ato [de um ataque] ou logo após matar uma sentinela da União, provavelmente seriam executados porque o que haviam feito era considerado assassinato”.

Tratando de como os fugitivos e os escravos libertados impediram que a guerra piorasse, ele afirma: “Esta é uma parte fascinante, mas pouco explorada, da história da emancipação. Os escravizados que deixaram as plantações buscaram a liberdade em vez de vingança. Olhando para trás, é possível ver como as pessoas mantidas em cativeiro que tiveram uma oportunidade de retaliação poderiam tê-la aproveitado. As pessoas libertadas durante a Guerra Civil não o fizeram, em parte porque estavam famintas, fracas e não tinham armas. Mas também havia uma dimensão religiosa. As profecias do Jubileu [encontradas no Antigo Testamento (Lv 25.39-46; Jr 34.8-14) e que enfatizam o descanso concedido pelo Deus de Israel ao seu povo], centrais para o cristianismo adotado pelos escravos instigavam as pessoas a se libertarem, mas não justificavam a perpetuação da violência presente na escravidão em si. Parece que os afro-americanos, tanto os escravizados quanto os livres, reconheceram claramente que seu objetivo era a liberdade, e derrotar a escravidão era o trabalho dos militares”.

Autorregulação e suas consequências

Tanto o Exército da União quanto o Exército da Confederação empreenderam medidas para fiscalizar seu próprio comportamento durante a guerra. Os casos de infrações foram julgados e sancionados, demonstrando um esforço para manter a guerra dentro de limites morais aceitáveis. A comunicação entre os lados e a ameaça de retaliação foram métodos utilizados para conter os excessos. Entretanto, as repercussões dessas violações reverberaram muito além do campo de batalha, impactando a opinião pública e a moral nacional.

Sheehan-Dean escreve: “Ambos os exércitos se policiavam. Soldados eram processados por violar as leis da guerra. Temos todos os registros de julgamento da União, mas a maioria dos registros confederados foi destruída quando Richmond [capital do estado da Virgínia e da confederação] foi queimada. Soldados da União foram processados por estupro e pela morte de não combatentes, e há toda uma gama de crimes [que foram punidos] sob o título de ‘conduta imprópria’ ou ‘omissão de dever’. Também houve um esforço extenso para comunicar-se através das linhas para se queixar com um comandante inimigo sobre supostas violações. Essas cartas geralmente ameaçavam retaliação a menos que as ações fossem explicadas. Algumas dessas conversas duraram meses e às vezes chegavam em níveis tão elevados quanto Lincoln ou Davis, permitindo que os ânimos se acalmassem. As execuções retaliatórias eram raras. Isso realça a distinção sobre como as democracias lutam. Civis estavam cientes de que os exércitos se policiavam. Se não houvesse uma explicação adequada para uma ação suspeita, geralmente havia condenação pública”.

E, como Sheehan-Dean, afirma, a doutrina da guerra justa também foi usada pelos confederados para tentar explicar a assim-chamada “Causa Perdida”, uma ideologia que defende que a causa dos Estados Confederados durante a Guerra Civil Americana foi heroica, justa e não foi centrada na questão da escravidão: “A Causa Perdida se baseia na crença de que o Norte travou uma guerra injusta. Faz parte do mito popular [no Sul] que [o major-general William Tecumseh] Sherman devastou o Sul e, ao fazer isso, deve ter matado muitos civis. Na verdade, sabemos que ele não fez isso. Em Atlanta [no estado da Georgia], cinco semanas de bombardeios incessantes [em julho de 1864] mataram provavelmente 20 civis [na cidade]. Além disso, a Causa Perdida estabelece um confronto entre os Yankees [nortistas] rapinantes e os cavalheirescos cristãos [do Sul] como [o general em chefe dos Exércitos dos Estados Confederados, Robert E.] Lee, que lutou de acordo com as leis da guerra, uma decisão nobre, mas que levou à derrota do Sul”.

A pertinência contínua da doutrina da guerra justa

A Guerra Civil Americana permanece como um estudo de caso crucial para compreender a ética da guerra. Suas lições ressoam em conflitos contemporâneos, enfatizando a importância de equilibrar as necessidades militares com considerações éticas. Observamos como democracias modernas, como os Estados Unidos, buscam aderir a padrões éticos mais elevados em conflitos armados, destacando a relevância da vigilância pública e da responsabilidade dos militares. Esta análise sublinha que mesmo nos momentos mais sombrios da história, perseguir justiça e humanidade jamais deve ser negligenciado.

Assim conclui Sheehan-Dean: “É impossível dizer que qualquer guerra seja totalmente justa. Eu acho que os exércitos das democracias têm muito mais probabilidade de se comportar de forma justa. Vemos isso hoje com os militares dos Estados Unidos. Hoje, como na Guerra Civil, há um ciclo de feedback público que ajuda a manter as coisas honestas. O exército somos nós. Ele representa nossos valores. É desagradável ter que julgar indivíduos acusados de violar as leis da guerra, mas em geral o Exército dos Estados Unidos adere a um padrão muito alto e possui um sistema de prestação de contas muito público. Isso é dramaticamente diferente das gerações passadas e certamente não é o mesmo que ocorre nas autocracias. Se houver uma guerra justa no futuro, será travada por uma democracia com um público vigilante”.

A Guerra Civil Americana foi um grande desafio para os princípios éticos da guerra, evidenciando tanto os ideais da guerra justa quanto as duras realidades do conflito armado

Ao examinarmos a aplicação e violação dos princípios da guerra justa nesse período turbulento, nos deparamos com questões profundas sobre moralidade, poder e responsabilidade. É um lembrete marcante de que, mesmo nos momentos mais sombrios da história, a busca pela justiça e humanidade jamais deve ser abandonada, destacando a importância de extrair lições do passado para construir um futuro mais ético e compassivo.

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