O gnosticismo foi uma das principais heresias que assolaram a Igreja primitiva, nos séculos 2.º e 3.º. Seu nome deriva da palavra grega gnosis, que significa “conhecimento”. Os gnósticos acreditavam possuir um conhecimento secreto e especial, que os separava da massa ignorante dos fiéis comuns. Essa heresia tinha uma visão dualista do mundo, dividindo a realidade entre espírito (bom) e matéria (má). Por consequência, rejeitavam a criação material como algo corrompido e inferior, postulando que a verdadeira salvação não redimia a criação, mas sim libertava dela. O bispo anglicano N. T. Wright resume o gnosticismo original:
“O mundo em que vivemos, feito de espaço, tempo e matéria, é essencialmente um lugar ruim, criado por um deus mau, incompetente ou malévolo. Estamos presos dentro desse mundo corrompido. E nós (ou pelo menos alguns de nós) somos, na verdade, faíscas de luz, ou temos dentro de nossos corpos mortais uma centelha divina que ficou aprisionada e anseia escapar para o mundo do puro espírito, onde finalmente será livre, feliz e plena, liberta desta existência mortal e decadente. A maneira de alcançar essa libertação é por meio do conhecimento, a gnosis, que revela o verdadeiro deus – um deus supremo que pouco ou nada teve a ver com a criação do mundo, pois considerava esse ato algo trivial, secundário e indigno. Esse deus verdadeiro, que rejeita completamente a materialidade e o mundo físico, deseja se conectar com a centelha divina que já existe dentro de nós. Assim, essa gnosis envolve conhecer a Deus, compreender como este mundo maligno foi criado (e por que é um lugar miserável) e descobrir quem você realmente é. Essa ideia se encaixa perfeitamente com muitos aspectos da cultura contemporânea, na qual, em metade dos filmes produzidos, a história gira em torno da ‘descoberta de quem eu realmente sou’. No entanto, a mensagem cristã é diferente: ela ensina que o Deus que criou o mundo é o Deus verdadeiro, que ama você profundamente e quer resgatá-lo – não da materialidade em si, mas da corrupção dessa materialidade, algo que chamamos de rebeldia, idolatria, pecado ou maldade.”
Desde seus primórdios, a Igreja combateu o gnosticismo. Os Pais da Igreja, como Irineu de Lyon, Tertuliano de Cartago e Hipólito de Roma, refutaram seus ensinos, reafirmando a bondade da criação de Deus e a encarnação do Senhor Jesus como eventos centrais da fé cristã. Ensinos gnósticos foram rejeitados no Sínodo de Roma (c. 200 d.C.), no Concílio de Niceia (325 d.C.), no Concílio de Gangra (c. 340 d.C.) e no Concílio de Cartago (397 d.C.) No entanto, mesmo tendo sido condenado pela ortodoxia cristã, o gnosticismo nunca desapareceu completamente. Pelo contrário, ele ressurgiu de várias formas ao longo da história da Igreja, adaptando-se ao espírito da época e infiltrando-se até mesmo entre aqueles que professam o cristianismo.
O ressurgimento do gnosticismo
O chamado “cristianismo progressista” é um tipo de gnosticismo, ao priorizar uma espiritualidade subjetiva, relativizando as doutrinas centrais da fé cristã. Esse movimento subordina a fé às tendências culturais do momento, rejeitando a autoridade das Escrituras e do Senhor Jesus em favor de uma suposta “iluminação” pessoal e social. Como os gnósticos antigos, os “cristãos progressistas” enxergam a moralidade bíblica como antiquada e limitadora, substituindo-a por uma espiritualidade fluida e aberta. Essa abordagem desmaterializa o cristianismo, esvaziando a pessoa de Jesus de significado real e histórico, e transformando-o em uma filosofia abstrata de inclusão e aceitação sem arrependimento e transformação genuína.
Mas, nos dias de hoje, o gnosticismo se manifesta de maneira sutil entre as igrejas históricas e pentecostais, corrompendo a fé de muitos cristãos desavisados. Ele pode ser identificado em diversas tendências teológicas e práticas que enfraquecem a compreensão bíblica da fé. Além da distorção da compreensão dos sacramentos e da igreja, a influência gnóstica pode ser percebida na forma como muitos cristãos modernos entendem a própria pessoa do Senhor Jesus.
Uma tendência gnóstica é a diminuição da encarnação e da humanidade real de Jesus. Muitos cristãos reconhecem sua divindade, mas o veem apenas como mestre espiritual ou fonte de energia positiva
Reimaginando o Messias Jesus
Uma das formas mais preocupantes do gnosticismo na atualidade está na deturpação da identidade e obra do Senhor Jesus. No pensamento gnóstico original, o Messias era frequentemente descrito como um ser puramente espiritual, sem verdadeira humanidade, pois a matéria era considerada intrinsecamente má. Essa visão herética foi combatida pela Igreja primitiva, que reafirmou a doutrina bíblica da plena divindade e plena humanidade de Jesus no Concílio de Calcedônia, em 451 d.C.
Essa heresia tem ressurgido de diversas formas em nosso tempo. No catolicismo popular, há uma ênfase na divindade de Jesus, tornando-o uma figura distante, como ilustrado no filme O Auto da Compadecida, de 2000. Muitas vezes, ele é visto como um ser nebuloso entre Deus e os santos, chegando a ser considerado menos poderoso que o Pai, Maria e até Satanás. Na prática, o Messias assume um papel secundário diante do culto aos santos, tornando-se abstrato e irrelevante para milhões de fiéis, tanto em sua divindade quanto em sua humanidade. Embora reconhecido como Deus Filho em teoria, sua presença na vida da igreja é enfraquecida.
Outra tendência gnóstica é a diminuição da encarnação e da humanidade real de Jesus, especialmente entre pentecostais e neopentecostais. Muitos cristãos reconhecem sua divindade, mas, ao vê-lo apenas como mestre espiritual ou fonte de energia positiva, negam, mesmo que inconscientemente, sua plena humanidade. Isso enfraquece a doutrina da redenção, pois, sem ser verdadeiramente humano, Cristo não poderia ter representado a humanidade na cruz. Além disso, em vez de seguir seu exemplo de renúncia e sacrifício, muitos exaltam líderes religiosos e associam a fé a prosperidade e sucesso, desviando-se do caminho da cruz.
Separar Jesus de suas raízes judaicas também é reflexo da influência gnóstica na teologia cristã. Heresias antigas rejeitavam o Antigo Testamento e viam o Deus de Israel como distinto do Pai de Jesus, apresentando o Messias como um ser puramente espiritual, alheio à história e às promessas feitas a Israel. No entanto, a Igreja sempre afirmou que Jesus é o cumprimento da revelação judaica, não sua negação. A fé cristã ensina que ele é o Messias prometido e a plenitude da revelação divina iniciada no Antigo Testamento.
Além disso, o gnosticismo influencia a maneira como algumas igrejas abordam a vida cristã prática. Há uma crescente desvalorização das realidades concretas da vida cristã – como o arrependimento, a obediência e o discipulado – em favor de uma espiritualidade vaga e subjetiva. Isso leva a uma versão do cristianismo que enfatiza sentimentos e experiências interiores em detrimento da obediência prática aos mandamentos de Deus.
Essas visões distorcidas de Jesus levam muitos cristãos a minimizarem ou desprezarem a Igreja, os meios de graça e a disciplina, enfraquecendo a compreensão do corpo de Cristo.
O desprezo pela igreja visível
Outro reflexo do gnosticismo na Igreja é a crescente valorização da “igreja virtual” em detrimento da comunidade física e real. Com o avanço da tecnologia e das mídias digitais, muitos cristãos passaram a considerar que podem ter uma vida eclesiástica plena sem jamais se reunirem fisicamente com outros crentes. Cultos on-line e interações virtuais substituíram a comunhão presencial, e para muitos, a ideia de pertencer a uma igreja local tornou-se antiquada.
Essa mentalidade reflete a velha heresia gnóstica de que a realidade espiritual é mais importante do que a realidade física. Assim como os gnósticos rejeitavam a Igreja visível e suas estruturas em favor de uma “igreja espiritual” e secreta, muitos hoje desprezam a comunhão presencial e a participação ativa na vida da Igreja em favor de um cristianismo virtual e isolado.
No entanto, as Escrituras deixam claro que a Igreja não é uma ideia abstrata ou uma reunião virtual de crentes desconectados, mas um corpo real e tangível que se reúne fisicamente para adorar, orar, ouvir a Palavra de Deus e participar dos sacramentos (At 2,42-47; Hb 10,25). O desprezo pela igreja local e visível não é apenas um erro teológico, mas um reflexo do gnosticismo que busca desmaterializar a fé cristã.
Portanto, é importante ter em mente o alerta do mártir luterano Dietrich Bonhoeffer: “A pessoa que ama mais seu sonho de uma comunhão cristã do que a própria comunhão cristã destruirá qualquer comunhão cristã”. Ou, como se convencionou parafraseá-lo, “quem ama mais a igreja ideal do que a igreja real nunca terá a primeira e destruirá a segunda”.
Assim como os gnósticos rejeitavam a Igreja visível e suas estruturas em favor de uma “igreja espiritual” e secreta, muitos hoje desprezam a comunhão presencial e a participação ativa na vida da Igreja em favor de um cristianismo virtual e isolado
Uma distorção dos sacramentos
Na tradição cristã, o batismo não é meramente um símbolo subjetivo da fé individual, mas um meio de graça instituído por Jesus para sinalizar a entrada daquele que crê na comunidade da aliança. Da mesma forma, a Ceia do Senhor não é um ritual meramente simbólico ou um momento de introspecção pessoal, mas um meio pelo qual os crentes se alimentam espiritualmente do Senhor Jesus.
Entretanto, o pensamento gnóstico moderno tem corrompido essa visão sacramental ao reduzir o batismo e a Ceia a meros símbolos internos e subjetivos. Muitos cristãos, influenciados por um individualismo exacerbado e pelo desprezo da realidade material, consideram que o batismo não tem efeito real na vida do crente, mas é apenas uma expressão pública da fé, sem qualquer implicação real e objetiva. Esse pensamento esvazia o batismo de seu significado bíblico como um selo da aliança de Deus e um meio de entrada visível na Igreja. Similarmente, muitos cristãos veem a Ceia do Senhor apenas como um memorial abstrato e espiritualizado, sem a presença real do Messias na comunhão dos santos. Essa mentalidade diminui a importância da Igreja visível e de sua adoração corporativa, em favor de uma espiritualidade individualista e subjetiva. Assim, esse tipo de pensamento reflete o dualismo gnóstico, que rejeita o uso de elementos físicos e concretos (água, pão e vinho) como instrumentos legítimos da graça divina.
Durante a pandemia de Covid-19, alguns círculos evangélicos apelaram para a prática da “ceia virtual” e do “batismo virtual”. Tais inovações refletem a influência gnóstica, especialmente quando se enfatiza o aspecto simbólico ou espiritual dessas ordenanças em detrimento de sua realidade material e comunitária. No gnosticismo, a matéria era vista como inferior ou irrelevante para a vida espiritual, o que levava a uma rejeição dos sacramentos físicos ou a uma reinterpretação puramente simbólica deles.
No cristianismo histórico, tanto a Ceia do Senhor quanto o batismo são ritos que envolvem elementos concretos – pão, vinho, água – e uma dimensão comunitária real. A Igreja sempre ensinou que esses sacramentos não são apenas símbolos abstratos, mas meios pelos quais a graça de Deus é comunicada de forma tangível. A substituição desses ritos por versões digitais minimiza a importância do corpo e da presença física na experiência cristã.
O prejuízo à disciplina eclesiástica
Outro grave problema causado pelo ressurgimento do gnosticismo é o enfraquecimento da disciplina eclesiástica. Se a Igreja visível é desvalorizada e os cristãos passam a enxergar sua fé de forma meramente subjetiva e individual, a ideia de prestação de contas a uma igreja ou conselho se torna irrelevante.
A disciplina eclesiástica é um dos meios pelos quais Deus mantém a santidade de sua Igreja e cuida de seu povo. A Escritura ensina a necessidade da correção dentro da igreja cristã (Mt 18,15-17; 1Co 5,1-5; Hb 12,6). No entanto, quando a Igreja é vista apenas como uma realidade espiritual e não como uma comunidade visível e organizada, a correção fraterna e a disciplina tornam-se impossíveis de serem aplicadas.
Isso explica, em parte, o crescimento da falta de compromisso com a santidade entre muitos que se dizem cristãos. Sem uma igreja visível para exercer autoridade espiritual e supervisionar a conduta dos membros, cada um segue sua própria interpretação da fé, sem qualquer responsabilidade para com os demais irmãos.
A verdadeira fé cristã nos chama à submissão e ao compromisso com a Igreja visível, a fim de crescermos juntos em santidade. Mas, atualmente, muitos cristãos recorrem às redes sociais para tratar questões de pecado e conflito, em vez de buscar a orientação bíblica dentro da igreja local. Em vez de seguir os princípios estabelecidos pelo próprio Senhor Jesus (Mt 18,15-17), que instruem a confrontação e a restauração dentro da comunidade eclesiástica, muitos expõem pecados e conflitos publicamente nas redes sociais, promovendo escândalo e divisão.
Essa tendência reflete uma forma moderna de gnose, na qual a comunhão visível da Igreja é desvalorizada em favor de uma justiça subjetiva e virtual. O pecado deixa de ser tratado biblicamente, e a correção, que deveria ocorrer no contexto da comunidade cristã, torna-se um espetáculo público desprovido de verdadeira restauração e arrependimento. Ou seja, a gnose tornou o mundo virtual o verdadeiro tribunal eclesiástico, não mais a igreja real.
Na gnose, a comunhão visível da Igreja é desvalorizada em favor de uma justiça subjetiva e virtual
Aliás, é importante destacar que a exibição de virtude nas redes sociais, frequentemente acompanhada por exposições públicas de conflitos pessoais, muitas vezes se manifesta como virtue signaling – ou seja, por meio da ostentação de valores morais não necessariamente para vivenciá-los, mas para obter aprovação ou status. Esse fenômeno lembra a heresia pelagiana, que negava a necessidade da graça divina para a salvação, sustentando que o ser humano poderia alcançar a perfeição moral por si mesmo. Assim como o pelagianismo enfatizava um ideal de autossuficiência moral, a ostentação de virtudes nas redes sociais frequentemente ignora a fragilidade humana e a necessidade de transformação interior genuína, reduzindo a moralidade a um espetáculo superficial de méritos próprios.
O gnosticismo é uma heresia
Diante desse cenário, é fundamental reafirmarmos que o gnosticismo é uma heresia condenada pelas Escrituras e pela tradição cristã. A fé cristã não é uma experiência meramente subjetiva e espiritualizada, mas uma realidade concreta e encarnada. Deus criou o mundo material e viu que era bom (Gn 1,31). O Messias se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). A Igreja é um corpo visível e chamado a viver em comunhão real (Ef 4,4-6).
N.T. Wright identifica em suas obras vários dualismos que os cristãos devem evitar, pois distorcem a visão bíblica da criação, redenção e da missão da Igreja:
Céu vs. Terra: Wright argumenta que muitos cristãos veem a salvação como uma fuga da terra para o céu, quando na verdade a Bíblia ensina que Deus redime a criação e estabelecerá novos céus e nova terra.
Corpo vs. Alma: Ele rejeita a visão de que o corpo é irrelevante ou mau, enquanto a alma é o que realmente importa. A ressurreição de Jesus e a promessa da ressurreição dos crentes enfatizam a importância do corpo na redenção final.
História vs. Espiritualidade: Wright critica a ideia de que a fé cristã é apenas uma experiência espiritual interna, sem relevância para a história ou a cultura. Ele destaca que o evangelho tem implicações para o mundo real e para a justiça na sociedade.
Escritura vs. Tradição: Ele adverte contra a separação radical entre a Escritura e a tradição da Igreja, defendendo que a interpretação correta das Escrituras deve levar em conta a história e o ensino da comunidade cristã ao longo do tempo.
Jesus Histórico vs. Cristo da Fé: Wright rejeita a dicotomia entre o Jesus histórico e o Cristo teológico, insistindo que os evangelhos apresentam um Jesus real que se encaixa na história judaica e cumpre as promessas de Deus a Israel.
A fé cristã não é uma experiência meramente subjetiva e espiritualizada, mas uma realidade concreta e encarnada. Deus criou o mundo material e viu que era bom
A persistente presença desses dualismos na mentalidade dos crentes lembra como o gnosticismo ainda afeta a compreensão cristã da realidade e a necessidade de uma fé integralmente bíblica. Por isso, a “igreja reformada está sempre sendo reformada” (ecclesia reformata semper reformanda) pela Palavra de Deus, pois o espírito da época constantemente tenta corromper a fé verdadeira.
A ressurgência do gnosticismo, que valoriza a individualidade e a subjetividade em detrimento da realidade objetiva da fé cristã, corrompe a visão bíblica do Messias, da Igreja, dos sacramentos e da disciplina eclesiástica. Portanto, os cristãos devem resistir a essa influência demoníaca e reafirmar as verdades centrais da fé bíblica. Só assim permaneceremos fiéis ao chamado de Jesus e preservando a pureza da comunhão dos santos, em meio a um mundo que tenta constantemente desfigurá-la.
Oremos, como aprendemos no Livro de Oração Comum: “Ó Senhor Onipotente, e Deus sempiterno, digna-te, nós te imploramos, dirigir, santificar, e governar tanto nossos corações como nossos corpos, no caminho de tuas leis, e na prática de teus mandamentos; a fim de que, por tua poderosíssima proteção, sejamos, agora e sempre, preservados em corpo e alma; mediante nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Amém.”
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