Restrições do STF à atuação da polícia nas favelas do RJ fortaleceram o domínio territorial do crime organizado, avaliam especialistas.| Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Ouça este conteúdo

O autor da coluna desta semana é Juan de Paula Siqueira, pastor da Igreja Batista do Redentor, no Rio de Janeiro, que nos oferece uma resenha do livro recém-lançado A construção da maldade – como ocorreu a destruição da segurança pública brasileira, de Roberto Motta, publicado pela Editora Avis Rara, selo da Faro Editorial. Motta é formado em Engenharia pela PUC-Rio, mestre em Gestão Empresarial pela FGV/RJ, escritor, comentarista político e ativista na área de segurança pública; foi coordenador de Segurança Pública entre a intervenção federal de 2017 e o governo eleito em 2018 no estado do Rio de Janeiro, sendo, portanto, o último secretário de Segurança do estado (cargo hoje extinto, pois no atual governo as polícias foram elevadas ao status de secretária). O lançamento de seu livro, realizado no Rio em 11 de julho, contou com a participação de diversas autoridades da área de segurança pública e da Justiça, como o procurador Marcelo Monteiro, o coronel da PMERJ Fábio Cajueiro e o delegado federal Alexandre Ramagem, bem como ativistas e políticos de viés conservador, como o deputado estadual Rodrigo Amorim (PTB).

CARREGANDO :)

Um desafio às ideologias que ajudam a perpetuar a dominação dos criminosos

CARREGANDO :)

Como a criminalidade atingiu números tão alarmantes como os atuais? Quais foram as causas? Essas foram as inquietações que levaram Roberto Motta da área empresarial para a segurança pública. Logo na introdução, o autor afirma que a causa principal do crime não é econômica, como salientam alguns acadêmicos, mas “são as ideias – e a ideologia – que passaram a dominar as políticas públicas e o sistema de justiça criminal” (p. 20). E, segundo o autor, o livro também propõe oferecer diretrizes para a mudança de cenário.

A construção da maldade tem dez capítulos. O primeiro deles, intitulado “Enquanto seu lobo não vem”, defende a tese de que o mal que mais aflige o Brasil “não é a violência, é o crime” (p. 23). Ele explica a diferença, salientando que a violência em si pode ser boa (pode-se usar a violência para salvar um inocente, por exemplo) como também má; e, se a crise do Brasil é a criminalidade, o Estado brasileiro não está cumprindo o seu papel de garantir a segurança de seus cidadãos. O capítulo termina com a chocante estatística de homicídios no Brasil (média de uma morte a cada 10 minutos), o teatro de operações de uma guerra assimétrica (os criminosos têm todos os meios, enquanto o Estado age dentro da lei), e uma narrativa impactante do homicídio de um jovem universitário.

Publicidade

É um erro de lógica e moral acreditar que o meliante é uma vítima social, enquanto a verdadeira vítima, também parte de um Estado Democrático de Direito, não tem nem a sua proteção e nem justiça feita

O segundo capítulo tem como título “O criminoso como vítima”, afirmando ser um erro de lógica e moral acreditar que o meliante é uma vítima social, enquanto a verdadeira vítima, também parte de um Estado Democrático de Direito, não tem nem a sua proteção e nem justiça feita. E isso acontece, nas palavras do autor, por uma “mentalidade bandidólatra sobre segurança pública” (p. 35). Ou seja, o sistema proporciona mais direitos aos criminosos que à verdadeira vítima. O autor combate a tese de que a pobreza econômica é a causa do crime – a consequência do argumento seria a de que todo pobre é um criminoso em potencial, o que a experiência mostra ser exatamente o contrário. Para o autor, a causa é a impunidade, e ele exemplifica o seu argumento ao abordar a prática do garantismo penal e as audiências de custódia que liberam meliantes, mesmo com elementos de flagrante. Gerada a impunidade, os criminosos ainda contam com ativistas e ONGs defendendo os seus direitos. Um exemplo é o impedimento de operações policiais cotidianas nas favelas cariocas, e o fenômeno de chefes de facções criminosas em outros estados da Federação migrando para o Rio de Janeiro.

O capítulo seguinte tem como título o famoso bordão “lobos, ovelhas e cães pastores”, de autoria do tenente-coronel do Exército americano Dave Grossman, citado no filme Sniper americano. Se os capítulos anteriores trataram do fenômeno do crime, este trata da polícia. Nele, Motta trata do funcionamento das principais forças policiais do país, a saber, as polícias militares e civis estaduais. A primeira trabalha com a administração e preservação da ordem pública, debaixo de uma doutrina militar, no modelo policial-militar da Gendarmerie nationale francesa, que existe desde a época imperial no Brasil – e que não seria uma herança do regime militar (1964-1985), como argumentam alguns sociólogos. A segunda é a polícia judiciária, responsável pela apuração de crimes com investigações e inquéritos. Essa estrutura quebra o chamado “ciclo completo policial”, em que uma mesma polícia previne a infração, executa o flagrante e investiga o delito, sendo o Brasil um dos únicos países no mundo onde ocorre a quebra desse ciclo. Isso sem contar que os agentes policiais trabalham em turnos exaustivos e ainda se envolvem em outras atividades remuneradas para complementar a renda. Além da já citada guerra assimétrica, o modelo de inquérito policial é cartorário, o que tem se mostrado burocrático em excesso e ineficiente. A integração dessas duas forças ainda é um desafio para os Executivos estaduais.

O quarto capítulo, “o criminoso em seu labirinto”, vai dissertar sobre a necessidade de punição para o criminoso. Estes são vocacionados por má índole e protegidos por ideologias revolucionárias. Segundo Motta, a prisão tem como função afastar o meliante do convívio social, sinalizar para a sociedade que o crime será punido e punir o criminoso pelo delito cometido (p. 75). A tese do capítulo é que o crime é uma escolha racional (p. 76, 80, 84), sendo uma opção individual e (ir)responsável de quem faz essa opção. Ignorar as regras e a ausência de empatia são algumas das marcas dos criminosos. Mesmo se as drogas fossem legalizadas, por exemplo, o traficante continuaria cometendo crimes. Motta, portanto, defende a eficiência e a viabilidade da última etapa da persecução penal, que é o encarceramento e a prisão: “quanto mais criminosos presos, menos crimes acontecem” (p. 88).

O próximo capítulo, “o crime como escolha”, segue como uma continuação do argumento anterior, porém elevando a discussão a um nível dialético, revelando como a proteção ideológica dos criminosos afrouxa a lei e a punição pelos crimes, inviabilizando o trabalho policial (de investigar) e o da Justiça (de sentenciar o culpado). Motta termina o capítulo abordando o direito à propriedade material privada, como o veículo motorizado ou o aparelho celular, como “materialização e resultado de tempo e esforço investidos em estudo, trabalho e sacrifício” (p. 124). Pode-se destacar uma citação desse capítulo: “Uma propriedade é muito mais do que algo material: é um instrumento de realização de planos e projetos, e a esperança de dias melhores no futuro. O criminoso que rouba a propriedade de alguém está roubando tudo isso” (p. 124).

Publicidade

O sexto capítulo, intitulado “o tapa na pantera: a armadilha da ‘legalização’ das drogas”, traz em debate a falácia da chamada legalização das drogas, mostrando casos em cidades de outros países onde a legalização não reverteu o efeito das drogas, mas piorou a situação das cidades. Para o autor, esse problema deve ser tratado de forma combinada com prevenção (educação) e repressão (p. 131). Além de argumentar sobre o problema das drogas, o autor escreve sobre como os narcotraficantes se instalam nas comunidades economicamente carentes e impõem uma “ditadura” e um “governo paralelo não estatal” autoritário sobre elas.

O capítulo seguinte aborda a questão dos infratores e a redução da maioridade penal, mostrando como a impunidade é um fator motivacional para menores de idade que optam pelo crime. E, no capítulo posterior, Motta enfrenta a questão do desarmamento civil como uma armadilha ideológica que beneficia criminosos, pois a proteção das pessoas foi retirada.

O nono capítulo é o mais filosófico do livro; chama-se “a hipótese da maldade” e afirma que o mal existe, ainda que pessoas tenham dificuldades de acreditar nele (p. 175). Esse mal, segundo o autor, é ignorado pela cultura brasileira, e para ser enfrentado requer coragem em diversas esferas. Até o penúltimo capítulo, Motta faz um diagnóstico da realidade da segurança pública e oferece algumas direções para os problemas levantados em cada capítulo; mas, no último, oferece o prognóstico para a questão: o combate à impunidade, que, segundo ele, tem duas raízes: “a incapacidade do sistema de Justiça Criminal de impedir os crimes e identificar, prender e manter presos os criminosos depois que o crime foi cometido”, e “uma legislação penal criada com base na ideologia do criminoso ‘vítima da sociedade’ e nas ideias absurdas de pensadores radicais e extremistas, sem nenhum compromisso com a realidade” (p. 187).

A proteção ideológica dos criminosos afrouxa a lei e a punição pelos crimes, inviabilizando o trabalho policial (de investigar) e o da Justiça (de sentenciar o culpado)

Para a transformação dessa realidade, a proposta do livro é a reforma da legislação penal, a retomada dos presídios e a reestruturação da polícia, como um tripé para sustentar a mudança. Motta salienta que a mudança ocorre quando as ideias certas são colocadas em práticas, e que o relativismo moral mata (p. 189). Para o autor, as ideologias revolucionárias devem ficar de fora dos tribunais e presídios, pois o resultado destas foi a impunidade denunciada de forma clara no livro. No posfácio, o autor fala da necessidade e responsabilidade de o criminoso mudar de vida. Tal aspecto é ensinado há 2 mil anos pelo cristianismo em suas representações eclesiais, como a realidade do mal em nós e a necessidade de “nascer de novo”.

Publicidade

O livro é muito bem escrito, de forma clara e cativante, fazendo com que as pessoas consigam compreender as ideias expostas e sistematizadas no texto sem apresentá-las de forma simplória. O autor consegue lidar com ideias filosóficas e questões jurídicas, com fundamentos e histórias reais ao fim de cada capítulo, para que os temas tratados façam sentido para os leitores. O texto está muito bem fundamentado, como se pode perceber nas notas de rodapé e referências bibliográficas.

O leitor pode até questionar por que um engenheiro escreveu sobre segurança pública. Mas uma leitura atenta da nossa Constituição Federal, em seu artigo 144 – “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos...” (grifo pessoal) –, mostra que o envolvimento do cidadão com a segurança não é somente possível, mas é algo responsável, uma percepção que devo ao delegado de Polícia Federal e professor de Direito Marcelo Daemon. E o autor, a quem parabenizo pelo livro, tem cumprido com excelência essa responsabilidade.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]