Há duas semanas fui a Recife com a minha esposa e aproveitei para ter uma visita guiada por vários marcos da passagem holandesa pela capital de Pernambuco. Visitei também o excelente Instituto Ricardo Brennand, provavelmente o melhor museu que temos no Brasil. Nos passeios, tive o privilégio de ser guiado pelo reverendo José Roberto de Souza, que bondosamente fez uma pausa em suas atividades para passar algumas horas conosco, dando-nos uma verdadeira aula particular de história. Na ocasião, convidei-o para uma entrevista para essa coluna. Ele é doutor e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), mestre em Teologia Histórica pelo Seminário Presbiteriano do Norte (SPN), licenciado em História (FSF) e bacharel em Teologia (SPN/Unicap). Também é integrante dos grupos de pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos (Unicap), História das Práticas Educacionais (Unit) e do Laboratório de Estudos da História das Religiões (Lehr-UPE); professor (visitante) da Universidad de Desarrollo Sustentable (UDS), em Assunção, no Paraguai. Atualmente é professor, coordenador acadêmico e coordenador do departamento de História do Seminário Presbiteriano do Norte. Também desenvolve investigações sobre a história do protestantismo no Brasil, fundamentalismo protestante, história do pentecostalismo e do neopentecostalismo.
Como foi o contexto da vinda dos holandeses para o Brasil?
Tentaremos fazer uma síntese, tendo em vista a extensão do contexto histórico que envolve essa pergunta. É do nosso conhecimento que, durante a transição do século 16 para o 17, a Espanha era a grande potência do mundo, com o seu império colonial tocado à base sobretudo da prata do Peru e do México, e a dividir com Lisboa a preocupação comum da manutenção de colônias espalhadas pelo orbe.
Por sua vez, nesse mesmo período, ou seja, no início do século 17, a Holanda, soberana nos mares e em terra na atividade mercantil, era a grande rival da Espanha, de quem havia conquistado a duras penas sua soberania político-administrativa. As relações diplomáticas conflituosas estabelecidas com a Espanha após o movimento em prol da independência marginalizaram a Holanda da esfera comercial brasileira durante o ano de 1580, quando foi estabelecida a famosa União Ibérica, o momento em que Portugal cai sobre domínio da Coroa espanhola. Devido a esse fato, os investimentos realizados no Brasil na produção açucareira ficaram ameaçados sob o domínio espanhol, justificando a decisão de promover a ocupação territorial mediante incursão armada à Bahia e, posteriormente, a Pernambuco, os quais eram grandes centros produtores de açúcar para o mercado europeu. Encarregada do refino e distribuição do açúcar na Europa, a Holanda temia perder vantagens auferidas nas relações previamente estabelecidas com Portugal.
“O historiador e diplomata brasileiro Evaldo Cabral de Mello diz que as guerras holandesas foram inegavelmente guerras do açúcar, não só pelo açúcar, mas sustentadas pelo sistema econômico cuja base era o açúcar.”
José Roberto de Souza, coordenador do departamento de História do Seminário Presbiteriano do Norte.
Algumas datas e acontecimentos são relevantes para que compreendamos o fio da meada. Por exemplo: em 1585 iniciam-se proibições aos holandeses de comerciar com o Brasil. Nesse ínterim, vários navios holandeses são confiscados em Portugal. Em 1602, por sua vez, foi criada a Companhia das Índias Orientais. Três anos depois, isto é, em 1605, os holandeses são terminantemente proibidos de comercializar no Brasil. Não tardou para que, em 1621, fosse fundada a Companhia das Índias Ocidentais. Essa, por sua vez, tinha como meta levar ao Novo Mundo (assim como fez na Ásia a sua congênere, a bem sucedida Companhia Holandesa das Índias Orientais) a guerra da independência dos Países Baixos, atacando os pontos centrais do império espanhol. As possessões portuguesas, segundo se calculava, seriam o ponto franco, o “calcanhar de Aquiles”, pois pensava-se que a Espanha sacrificaria sua própria defesa em benefício da proteção dos seus domínios americanos. Por isso, em 1624 e 1625, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (em holandês, West-Indische Compagnie, WIC) dedicava ao Brasil o melhor de suas atenções, tentando ocupar Salvador, capital da colônia lusitana na América, onde, porém, os neerlandeses não obtiveram êxito.
Para que possamos entender esse contexto de guerras e disputas que envolvem os holandeses, cremos que seja salutar lembrarmo-nos de um dos grandes nomes que há décadas tem oferecido uma grande contribuição, escrevendo sobre esse período. Pensamos no historiador e diplomata brasileiro Evaldo Cabral de Mello, que diz que as guerras holandesas foram inegavelmente guerras do açúcar, não só pelo açúcar, mas sustentadas pelo sistema econômico cuja base era o açúcar. Portanto, isso torna a invasão holandesa parte da guerra maior que se desenvolvia na Europa: Portugal subordinado à Espanha (pela União Ibérica), estando essa em guerra com a Holanda. É exatamente nesse momento que entra em cena particularmente a importância do Brasil. Isso se dá porque, para a Europa, vista como o núcleo irradiador das transformações econômicas da época, o Brasil passa a representar uma economia complementar à sua monocultura açucareira. Com isso, vê-se um modelo de exploração econômico novo, na visão do colonialismo europeu. Eis, portanto, de forma resumida, o interesse da Holanda para com o Brasil.
Qual o período do governo holandês no Brasil? Foi um período governado apenas por Nassau?
Sempre que ouvimos falar do período holandês, as pessoas tendem a relembrar um intervalo de apenas 24 anos, isto é, de 1630 a 1654. Já a outra inevitável associação é a de relacionar esse período à pessoa de Maurício de Nassau. Até os dias de hoje há quem pense que Nassau tenha governado durante todo esse tempo. Na realidade, Nassau só chegou ao Brasil em 1637, ficando até 1644. Ou seja, o seu governo teve uma duração de apenas oito anos. É certo que a duração do governo holandês no Brasil contempla os anos de 1630 a 1654, mas muitos acabam esquecendo que, antes da invasão ocorrida em Pernambuco, os holandeses tiveram uma tentativa frustrada na Bahia, chegando a invadi-la no ano de 1624, mas sendo expulsos no ano seguinte, em parte devido à reação local, com a presença moderada da população nativa e do socorro enviado de Pernambuco por Matias de Albuquerque, mas, sobretudo, pelo bloqueio asfixiante imposto pela armada de dom Fradique de Toledo. Entretanto, não demorou muito para que os holandeses planejassem e executassem uma nova invasão. A professora Socorro Ferraz lembra que o não êxito da invasão à Bahia não arrefeceu os planos dos Estados Gerais da Holanda e, de acordo com as informações citadas, a próxima praça promissora e indefesa seria Pernambuco.
Parece ser do senso comum que o donatário de Pernambuco, Matias de Albuquerque, e Duarte, seu irmão, não avisaram as autoridades portuguesas do despreparo da capitania para enfrentar os holandeses. Provavelmente, isso se deu por temerem a intervenção do poder luso e, consequentemente, as perdas dos seus privilégios. As autoridades espanholas, portuguesas e o próprio donatário sabiam da preparação da armada holandesa e da pretendida invasão. O fato de ser a segunda tentativa para os holandeses penetrarem no Nordeste brasileiro açucareiro e, dessa forma, atingir o poder espanhol gerava entre as hostes batavas expectativas mais positivas que a primeira tentativa na Bahia. Com mais experiência nas lutas contra os ibéricos, chegavam os holandeses para enfrentar a estratégia luso-brasileira, que combinava “poder naval e defesa local”. Depois de Salvador (1624-1625), em 1630 os holandeses conquistam Olinda, na ocasião a capital de Pernambuco. Uma vez conquistado o norte do Brasil, passando-se alguns anos, os diretores da WIC, nos Países Baixos, convenceram-se de que era necessário consolidar o domínio da colônia e reconstruir a economia devastada para que a terra pudesse se sustentar às próprias custas.
Insatisfeitos com a administração do Brasil Holandês, o Conselho dos XIX, da Companhia das Índias Ocidentais, resolve substituir o “Conselho de Governo” (composto por cinco membros) por um “grande líder”. Foi assim escolhido um jovem coronel do exército da União, conde João Maurício de Nassau-Siegen. Alemão, nascido em Dillenburgo em 17 de agosto de 1604, João Maurício era filho primogênito do conde João VII e de sua segunda esposa, Margarida von Helstein-Soderborg, uma parente da família real da Dinamarca. Fizera seus estudos humanísticos nos liceus de Basileia, Genebra e Cassel, mas, aos 15 anos, teve de abandoná-los em favor da carreira militar. Em 20 de agosto de 1621, com 17 anos, ingressou para o exército da União, tendo ocupado o posto inicial de alferes, mas não tardou para que viesse a ocupar, em 1629, o posto de coronel. Com isso, percebemos que a escolha por Nassau não foi de forma aleatória.
Apesar de ser bem jovem, Nassau tinha uma vasta experiência militar e administrativa. O historiador Pedro Puntoni lembra que, nos meses seguintes à sua chegada a Pernambuco, em janeiro de 1637, com o título de “Governador Geral do Brasil”, Nassau se preocupou exclusivamente em derrotar os últimos focos da resistência nativa, que se pôs definitivamente em fuga para o sul. As tropas luso-espanholas foram derrotadas em Porto Calvo no dia 18 de fevereiro de 1637, retirando-se às pressas para Sergipe. O Rio São Francisco ficaria, então, como uma espécie de fronteira natural entre o Brasil holandês e o Brasil luso-espanhol. Aquele se constituía, portanto, das capitanias conquistadas de Pernambuco, Paraíba, Itamaracá e Rio Grande do Norte.
O governo de Nassau teve uma duração somente de oito anos, mas é saudosamente lembrado. Você poderia falar um pouco mais sobre a chegada e o governo de Nassau? Quais foram as principais características do Brasil Holandês?
O professor Leonardo Dantas faz muito bem em lembrar que, quando o conde Maurício de Nassau aportou em Pernambuco, com apenas 33 anos, na qualidade de Governador Geral do Brasil Holandês, em 23 de janeiro de 1637, trazia em sua comitiva não o exército, à moda dos colonizadores de então, mas uma verdadeira missão científica que ainda hoje desperta as atenções dos estudiosos daquele período. É comum, quando lembramos da comitiva de Nassau, evocarmos alguns nomes que deixaram registrada essa história; entre eles, estão os nomes dos pintores Frans Post e Albert Eckhout. Porém, não podemos esquecer outras pessoas importantes, como o latinista e poeta Franciscus Plante, o médico e naturalista Willem Piso, o astrônomo e naturalista George Marcgrave, o médico Willem van Milaenen e outros que vieram posteriormente a integrar o grupo, como o humanista Elias Herckmans, os cartógrafos Cornelis Bastianszoon Golijath e Johannes Vingboons, o desenhista Gaspar Schmalkalden, o pintor Zacharias Wagener e o arquiteto Pieter Post.
Assim que chega ao Brasil, Nassau se preocupa de imediato com a segurança da colônia, bem como com as ocupações dos engenhos abandonados e confiscados pela Companhia das Índias; para isso, ele providencia a mão de obra. Inegavelmente, na administração do conde, houve um estrondoso e significativo progresso. Nassau se preocupou com melhorias urbanísticas, chegando a construir alguns palácios, a primeira ponte do Brasil, além de um horto zoobotânico, o observatório astronômico e alguns templos calvinistas. Ele ainda investiu nos estudos sobre a flora, a fauna, a medicina e os naturais da terra, somando-se a tudo isso uma infindável produção de uma arquitetura não religiosa, de pinturas e desenhos documentando a paisagem, urbana e rural, retratos, figuras humanas e de animais, naturezas mortas, entre outros. Tudo isso contribuiu para que o Brasil se tornasse conhecido no mundo.
“Quando Maurício de Nassau aportou em Pernambuco, trazia em sua comitiva não o exército, à moda dos colonizadores de então, mas uma verdadeira missão científica que ainda hoje desperta as atenções dos estudiosos daquele período.”
José Roberto de Souza
Uma das características do governo holandês no Brasil é a presença de vários povos, culturas e, consequentemente, uma diversidade de crenças. Por exemplo, encontramos por aqui um grande número de judeus. É aí que surge a seguinte pergunta: sendo os holandeses predominantemente calvinistas, como se dava a permissão desses grupos que divergiam da sua religião?
O historiador Frans Leonard Schalkwijk diz que, por volta de 1640, o total da população do Nordeste ocupado deve ter sido de aproximadamente 90 mil pessoas. Dessas, cerca de 30 mil eram luso-brasileiros, havendo ainda o mesmo número de escravos; 16 mil índios; cerca de 12 mil neerlandeses e seus aliados europeus; e, finalmente, uns 1,5 mil judeus, ou seja, um terço de lusos, um terço de escravos e um terço de “neerlandeses”. Especialista sobre escravidão, o professor universitário Marcus Carvalho lembra o contexto da chegada dos holandeses e diz que, quando a Companhia das Índias Ocidentais tomou Pernambuco, em 1630, supõe-se que a imensa maioria dos escravos que trabalhava nos engenhos era de africanos. Não obstante, embora seja impossível precisar quantidades exatas, havia ainda um contingente significativo de índios escravizados. Além disso, os holandeses encontraram uma sociedade predominantemente constituída por naturais da terra. Com o governo de Nassau, já se podia perceber o surgimento embrionário de uma democracia racial com a presença de holandeses, franceses, italianos, belgas, alemães, bem como de uma infinidade de judeus que vieram fugidos da Inquisição, oriundos da Península Ibérica e do norte da Europa. Lembrança presente nos traços deixados aos seus descendentes até os dias de hoje.
É certo que a aceitação dessa diversidade religiosa se deve aos interesses comerciais, provenientes da necessidade da mão de obra. Uma das maiores autoridades sobre os holandeses no Brasil, o saudoso professor Antônio Gonsalves de Mello, na sua obra Tempo dos Flamengos, que se tornou um clássico, relembrando o artigo 5.º da versão holandesa do documento de capitulação, assinado em 26 de janeiro de 1624, diz que o mesmo consentia aos vassalos dos ditos Senhores Estados Gerais casados com mulheres portuguesas ou nascidas na terra que fossem tratados como se fossem casados com holandesas. Uma das características sempre lembradas do conde Maurício de Nassau é a sua capacidade enquanto conciliador, provavelmente por ter sido criado num lar evangélico. Schalkwijk lembra que, quando o conde chegou ao Brasil, no dia 23 de janeiro de 1637, ele realizou um culto de ação de graças por sua chegada a Recife. Além de ser um assíduo frequentador das reuniões da igreja, era visto como um governador sábio, virtuoso e temente a Deus.
O que ainda podemos ver e conhecer desse período do Brasil Holandês?
Bem, estamos falando de um período que ficou para trás há mais de três séculos; consequentemente, restam-nos apenas algumas nuanças dessa história. Aqui em Recife, particularmente, foi descoberta recentemente a primeira sinagoga construída nas Américas, durante o governo holandês: a Sinagoga Kahal Zur Israel, a “Rocha de Israel”. Temos ainda a primeira ponte construída no Brasil, no governo do conde Maurício de Nassau, além dos resquícios da primeira igreja calvinista construída no Brasil, hoje uma igreja católica, a Igreja do Divino Espírito Santo. Há uma estátua do conde Maurício de Nassau na Praça da República, em frente ao Palácio do Campo das Princesas, assinalando a localização do Palácio de Friburgo, construído pelo conde Maurício de Nassau entre 1640 e 1642. E não podemos deixar de mencionar o castelo do saudoso Ricardo Brennand, tido como um dos maiores colecionadores das obras e objetos do Brasil Holandês. Em Itamaracá, a cerca de 34 km ao norte do Recife, pode-se visitar o Forte Orange, o maior forte em pedra do Nordeste do país, cuja construção foi iniciada pelos holandeses em 1631. Após a capitulação holandesa em Recife, em 1654, o forte foi ocupado pelas forças portuguesas e rebatizado como Fortaleza de Santa Cruz de Itamaracá.
Quais livros são recomendados para quem quer conhecer mais sobre esse período histórico?
Citaremos alguns poucos, mas que julgamos serem obrigatórios na estante daqueles que desejam estudar e conhecer o período do governo holandês no Brasil. São eles: O Brasil Holandês, de Evaldo Cabral de Mello; Tempo dos Flamengos, de José Antônio Gonsalves de Mello; Igreja e Estado no Brasil Holandês: 1630-1654, de Frans Leonard Schalkwijk; Barléu: História do Brasil sob o governo de Maurício de Nassau; Uma aventura holandesa no Brasil, de Flávio Guerra; e Holandeses em Pernambuco: 1630-1645, de Leonardo Dantas.
Gostaria que você falasse sobre algumas das suas publicações e projetos presentes e futuros. O que vem no futuro?
Publiquei três livros: Presbiterianos x Pentecostais (fruto da minha dissertação de mestrado, esgotado na segunda edição); Protestantismo em Revista (fruto de artigos para jornais e revistas, esgotado na segunda edição); e, recentemente, Religião, Sociedade e Memória. Também organizei três coletâneas: Lideranças Protestantes no Brasil: ensaios biográficos; Mosaico Religioso (vol. 3); e, por fim, um que será lançado nessa semana, A Reforma Protestante e o seu Legado. Já em relação para o futuro, quero publicar no próximo ano a minha tese de doutorado, na qual pesquisei sobre o fundamentalismo protestante brasileiro, mas especificamente sobre o surgimento e o desenvolvimento da Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil (IPFB). Além desse projeto, há duas coletâneas que estou organizando, as quais já estão no “gatilho”.
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