“Lutero publica as 95 teses”, de Julius Hübner.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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Neste ano de 2021 a igreja evangélica celebra os 504 anos da Reforma Protestante do século 16. A data tradicional em que se comemora este evento importantíssimo para a história do Ocidente é o dia 31 de outubro, quando Martino Lutero, de acordo com a tradição, pregou na porta da Igreja do Castelo da cidade de Wittenberg, na Alemanha, o Debate para o esclarecimento do valor das indulgências, que tem sido conhecido popularmente como as “95 teses”.

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Entre as teses, que questionavam as noções do cristianismo medieval de obtenção de perdão de pecados, estas talvez sejam as de maior destaque: “1. Ao dizer: ‘Fazei penitência’, etc. [Mt 4,17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência”; “27. Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu]”; “32. Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência”; “62. O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus”; e “94. Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através das penas, da morte e do inferno; 95. e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribulações do que pela segurança da paz”.

Conceituando a Reforma

O que torna esse ato de contestação de Lutero tão significativo é que sua atitude de afixar na porta da igreja suas teses era parte de um movimento internacional – e praticamente simultâneo – de retorno aos antigos marcos da fé cristã, como estabelecidos na Escritura.

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Mas a Reforma não dividiu apenas a antiga fé cristã na Europa Ocidental. Ela cedo também se dividiu em pelo menos duas alas principais: a reforma magisterial, que aconteceu com o apoio do Estado, e a reforma radical, que aconteceu sem o apoio do Estado e muitas vezes foi perseguida por este. Associados à primeira estão três movimentos reformadores: os evangélicos, vinculados a Martinho Lutero, a Felipe Melanchthon e a Martin Chemnitz; os reformados, associados com Ulrico Zwínglio, Martin Bucer, João Calvino, João Knox, Henrique Bullinger e Gaspar Oleviano; e os anglicanos, guiados por William Tyndale, Thomas Cranmer e William Perkins. Os reformadores radicais, também conhecidos como anabatistas, subdividiram-se em espiritualistas, apocalípticos e racionalistas, mas o grupo que mais se destacou pode ser categorizado como “os irmãos”. Entre os principais líderes deste último movimento, estão Conrad Grebel, Balthasar Hubmaier, Michael Sattler e Menno Simons.

A atitude de Lutero de afixar na porta da igreja suas teses era parte de um movimento internacional – e praticamente simultâneo – de retorno aos antigos marcos da fé cristã

Entre as mulheres, podem ser mencionadas Katharina von Bora, a operosa esposa de Lutero; Katharina Schütz Zell, de Estrasburgo, escritora de tratados e hinos; a rainha Margarida de Navarra, irmã do rei francês Francisco I e protetora dos reformados franceses; a corajosa Jeanne d’Albret, rainha de Navarra; Jane Grey, a “rainha dos nove dias” da Inglaterra; Marie Dentière, uma belga que escreveu o prefácio a um sermão de Calvino e que é celebrada no Muro dos Reformadores, em Genebra; e a italiana Olympia Fulvia Morata, uma erudita em latim e grego.

A influência luterana se espalhou pela Alemanha e por partes da Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia. A influência reformada se difundiu pela Suíça, França, Holanda, Alemanha, Hungria, Polônia, Inglaterra e Escócia. Foram os reformados franceses que realizaram o primeiro culto evangélico em terras brasileiras, em 10 de março de 1557. A influência anglicana ficou restrita à Inglaterra, e a anabatista chegou a partes da Holanda, Suíça, Alemanha, Áustria e Polônia.

Mas o que foi a “Reforma”, afinal? A palavra é uma tradução do latim reformatio e, de acordo com Patrick Collinson, traz a noção de “rejeição de novidades, que se definiam pelas graves distorções da verdade cristã que passaram por verdades em séculos mais recentes, e que conhecemos como catolicismo medieval”. Já no século 15 os cristãos ocidentais falavam de reforma, “termo frequentemente encontrado na fórmula ‘reforma da Igreja, de sua cabeça e seus membros’ e nesse nível acreditava-se que o objetivo da reforma deveria ser todo o corpo da Igreja, porém mais especialmente as camadas mais elevadas”.

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Mas a Reforma do século 16 foi diferente das tentativas anteriores. Carl Trueman oferece a seguinte definição para esse movimento: “A Reforma é a tentativa de colocar Deus, como ele se revelou em Cristo, no centro da vida e do pensamento da igreja”. Desse modo, como Philip Watson argumentou, a Reforma não foi apenas um protesto contra as degradações “religiosas e práticas” da igreja medieval, mas fundamentalmente um ataque contra a “doutrina” corrompida e não apenas a “vida” corrompida atacada por reformadores anteriores.  Portanto, a Reforma do século 16 foi uma contenda a favor da doutrina correta. Como Lutero escreveu: “Não estou preocupado com a vida, mas com as doutrinas. A vida má não causa grande dano a não ser a si mesma, mas o ensinamento errado é o maior mal neste mundo, porque leva multidões de almas ao inferno. Não estou preocupado se és bom ou mau, mas atacarei teu ensinamento venenoso e mentiroso que contradiz a Palavra de Deus”.

Podemos perceber essa ênfase nas três áreas que foram reafirmadas pela Reforma do século 16: a centralidade da Escritura, a justificação pela fé e o sacerdócio de todos os crentes.

Três áreas chave para a fé

A igreja medieval teve sua autoridade minada por causa do papado desacreditado e do clero corrupto. Foi nesse contexto que os reformadores magisteriais reafirmaram a autoridade da Escritura como um guia certo e suficiente para a salvação e o conhecimento de Deus. O fundamento da autoridade não era a Escritura interpretada pela igreja e pelo clero. Era a crença na clareza da Escritura, a noção de que qualquer pessoa, por meio da iluminação do Espírito Santo, poderia entender a mensagem central da Palavra de Deus, que é o caminho da salvação por Cristo somente. A Confissão Belga, escrita em 1559 pelo mártir Guido de Brès, afirmou:

“Deus se fez conhecer [...] por sua sagrada e divina Palavra, isto é, tanto quanto nos é necessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que Lhe pertencem. [...] A palavra de Deus não foi enviada nem produzida ‘por vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo’. [...] Cremos que esta Sagrada Escritura contém perfeitamente a vontade de Deus e suficientemente ensina tudo o que o homem deve crer para ser salvo. Nela, Deus descreveu, por extenso, toda a maneira de servi-Lo. por isso, não é lícito aos homens, mesmo que fossem apóstolos ‘ou um anjo vindo do céu’ [...] ensinarem outra doutrina, senão aquela da Sagrada Escritura. É proibido ‘acrescentar algo à Palavra de Deus ou tirar algo dela’ [...]. Não se pode igualar escritos de homens, por mais santos que fossem os autores, às Escrituras divinas. Nem se pode igualar à verdade de Deus costumes, opiniões da maioria, instituições antigas, sucessão de tempos ou de pessoas, ou concílios, decretos ou resoluções. [...] Por isso, rejeitamos, de todo o coração, tudo que não está de acordo com esta regra infalível.”

Por isso os reformadores pregaram, ensinaram e traduziram a Escritura na língua do povo e creram que foi a Escritura que produziu a Reforma. Os reformadores defenderam ferrenhamente o livre exame das Escrituras por parte dos cristãos, mas nunca defenderam algo parecido com uma livre interpretação das Escrituras. Para os reformadores, a Escritura Sagrada tem uma única mensagem, e esta é unívoca. Por meio do estudo das línguas originais da Escritura, do contexto histórico original em que a Escritura foi revelada e em diálogo com a interpretação da Escritura como preservada na tradição cristã – sobretudo nos escritos dos Pais da Igreja, como Irineu de Lyon e Agostinho de Hipona –, a mensagem bíblica de criação, queda, redenção e restauração pode ser compreendida por todos os fiéis.

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Não se pode ser cristão sozinho, é necessária a “comunhão dos santos”, a igreja, que deve ser uma comunidade de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam

A segunda e mais importante doutrina redescoberta pelos reformadores foi a doutrina de justificação pela graça, baseada somente na livre graça eletiva de Deus, e recebida pela fé somente. Num contexto dominado por ideias da graça divina mediada pelos sacramentos eclesiásticos e recebida pela cooperação do fiel, além das noções de que a salvação poderia ser conseguida mediante a compra de indulgências, o ensino bíblico da justificação redescoberto pelos reformadores foi como bálsamo para corações feridos.

Como ensina a Confissão de Augsburgo, apresentada por sete príncipes e pelos representantes de duas cidades livres diante do imperador Carlos V, em junho de 1530: “Ensina-se também que não podemos alcançar remissão do pecado e justiça diante de Deus por mérito, obra e satisfação nossos, porém que recebemos remissão do pecado e nos tornamos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé, quando cremos que Cristo padeceu por nós e que por sua causa os pecados nos são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna”.

Não é surpresa que aqueles que entenderam este ensino e receberam alívio, segurança e esperança por meio dele preferiam morrer antes de negá-lo. Portanto, a ideia da imputação da justiça de Cristo ao que crê somente foi o coração da mensagem da Reforma do século 16.

A terceira área reafirmada na Reforma foi a redescoberta de uma nova compreensão da vida cristã. A igreja medieval era dividida em duas classes, o clero e o laicato. Nos anos anteriores à Reforma, houve, entre muitas pessoas, fome de comunhão mais íntima com Deus, e surgiram movimentos para suprir estes anseios, como a devotio moderna dos Irmãos da Vida Comum, associados a Tomás de Kémpis, autor do clássico Imitação de Cristo. Esse movimento espalhou-se pela Holanda, França, Alemanha e Suíça. Mas muitas destas pessoas não podiam se tornar membros do clero, por causa das responsabilidades com suas famílias, e outras não queriam se tornar membros do clero por causa de sua corrupção.

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Os reformadores, então, ensinaram que nem todos são chamados para ser pastores, mestres ou conselheiros. Há um só “estado” – todos os cristãos são sacerdotes –, mas uma variedade de funções, isto é, cada cristão tem um chamado específico da parte de Deus, para glorificá-lo no mundo. Assim, todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes uns dos outros. Portanto, não se pode ser cristão sozinho, é necessária a “comunhão dos santos”, a igreja, que deve ser uma comunidade de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família na qual as cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente.

É importante ressaltar que essa noção de sacerdócio universal de todos os crentes contribuiu em muito para um cristianismo menos hierarquizado e foi parte essencial da construção da democracia em toda a civilização ocidental. Essa ideia é fundamental para que cada cristão lembre de sua responsabilidade perante Deus, sem depender de pretensas instâncias religiosas que controlem sua vida.

“Sempre sendo reformada”

Assim, ainda que sejam consideradas questões políticas, sociais, culturais e econômicas na Reforma Protestante, a marca significativa deste movimento é a sua clara preocupação com a doutrina e a prática da fé como afirmada na Escritura Sagrada. Essa postura nunca deixará de ser atual, pois a igreja deve ser semper reformanda, isto é, deve estar “sempre sendo reformada” pelo Espírito Santo por meio da Palavra de Deus, sempre voltando ao fundamento, à Escritura, que deve ser permanentemente estudada e meditada para que a igreja seja iluminada e conduzida somente pela Palavra de Deus, que nos foi revelada como única regra de fé e prática.

Assim, é oportuno citar um trecho de uma correspondência de João Calvino ao imperador do Sacro Império Romano-Germânico Carlos V: “A reforma da igreja é obra de Deus e tão independente de esperanças e opiniões humanas quanto a ressurreição dos mortos ou qualquer milagre dessa espécie. Portanto, no que tange à possibilidade de fazer algo em favor dela, não se pode ficar esperando pela boa vontade das pessoas ou pela alteração das circunstâncias da época, mas é preciso irromper por entre o desespero. Deus quer que seu evangelho seja pregado. Vamos obedecer a esse mandamento, vamos para onde ele nos chama! O sucesso não é da nossa conta”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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