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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Franklin Ferreira é pastor da Igreja da Trindade e diretor-geral e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos-SP, professor-adjunto no Puritan Reformed Theological Seminary, em Grand Rapids-MI, nos Estados Unidos, secretário geral do Conselho Deliberativo do IBDR, presidente da Coalizão pelo Evangelho e consultor acadêmico de Edições Vida Nova.

Para onde caminha a igreja brasileira?

(Foto: Pixabay)

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Vivemos uma época em que os debates teológicos ocorrem com cada vez mais frequência e de modo bastante acirrado. Mas um dos fatores que caracterizam muitos desses debates é a falta de referência à Escritura. Isso é algo que, de fato, me espanta. Inclusive alguns clérigos propõem revisões radicais do ensino cristão, mas na maioria das vezes em ruptura com a tradição cristã acerca da doutrina de Deus, da salvação e da igreja e sem demonstrar a menor preocupação em remeter seus ouvintes (ou, pelo menos, seus seguidores mais fiéis) às páginas da Escritura – que era reconhecida até bem pouco tempo atrás como a incondicional Palavra de Deus, pelos que se identificam como cristãos. Dois exemplos são suficientes:

“Confessamos que a palavra de Deus não foi enviada nem produzida ‘por vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo’ [...]. Depois, Deus, por seu cuidado especial para conosco e para com a nossa salvação, mandou seus servos, os profetas e os apóstolos, escreverem sua palavra revelada. Ele mesmo escreveu com o próprio dedo as duas tábuas da lei. Por isso, chamamos estas escritas: sagradas e divinas Escrituras. A Sagrada Escritura consiste de dois volumes: o Antigo e o Novo Testamento, que são canônicos e não podem ser contraditos de forma alguma. [...] Recebemos [...] estes [...] como sagrados e canônicos, para regular, fundamentar e confirmar nossa fé. Acreditamos, sem dúvida nenhuma, em tudo que eles contêm, não tanto porque a igreja aceita e reconhece estes livros como canônicos, mas principalmente porque o Espírito Santo testifica em nossos corações que eles vêm de Deus, como eles mesmos provam. Pois até os cegos podem sentir que as coisas, preditas neles, se cumprem. [...] Cremos que esta Sagrada Escritura contém perfeitamente a vontade de Deus e suficientemente ensina tudo o que o homem deve crer para ser salvo. [...] Por isso, rejeitamos, de todo o coração, tudo que não está de acordo com esta regra infalível.” (artigos 3 a 5, e 7, da Confissão Belga).

“Na sua bondade condescendente, para Se revelar aos homens, Deus fala-lhes em palavras humanas [...]. Através de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus não diz mais que uma só Palavra, o seu Verbo único, [...] ‘que Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados, o qual, sendo no princípio Deus junto de Deus, não tem necessidade de sílabas, pois não está sujeito ao tempo’. Por esta razão, a Igreja sempre venerou as divinas Escrituras [...]. Nunca cessa de distribuir aos fiéis o Pão da vida [...]. Na Sagrada Escritura, a Igreja encontra continuamente o seu alimento e a sua força, porque nela não recebe apenas uma palavra humana, mas o que ela é na realidade: a Palavra de Deus. [...] No entanto, a fé cristã não é uma ‘religião do Livro’. O cristianismo é a religião da ‘Palavra’ de Deus [...]. Para que não sejam letra morta, é preciso que Cristo, Palavra eterna do Deus vivo, pelo Espírito Santo, nos abra o espírito à inteligência das Escrituras. [...] ‘É tão grande a força e a virtude da Palavra de Deus, que ela se torna para a Igreja apoio e vigor e, para os filhos da Igreja, solidez da fé, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual’. É necessário que ‘os fiéis tenham largo acesso à Sagrada Escritura’. [...] A Igreja exorta com ardor e insistência todos os fiéis [...] a que aprendam ‘a sublime ciência de Jesus Cristo’ na leitura frequente da Sagrada Escritura. Porque ‘a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo’.” (parágrafos 101 a 104, 108, 131 e 133 do Catecismo da Igreja Católica).

Alguns clérigos propõem revisões radicais do ensino cristão, mas na maioria das vezes em ruptura com a tradição cristã acerca da doutrina de Deus, da salvação e da igreja e sem demonstrar a menor preocupação em remeter seus ouvintes às páginas da Escritura

Mesmo os debates que tratam de aspectos da ética cristã são pautados não mais pela Escritura, mas pela mera opinião pessoal. Ou por seguir cegamente a crença de um líder religioso ou alguma ideologia política oposta à fé. Vai-se assumindo que a Escritura pode até ser um livro importante, uma coletânea de bons conselhos, ou mesmo que contenha uma mensagem vagamente piedosa ou religiosa em meio a histórias de guerras, traições e matanças, mas que, finalmente, por meio de nossa razão ou intuição podemos alcançar e descobrir a Deus acima e além da Escritura.

Isto não é novo. É o mesmo esforço religioso e idolátrico presente no relato bíblico da construção da Torre de Babel (Gn 11,1-9). E o relato bíblico é claro: Deus despreza a ação religiosa, bagunçando-a e repelindo-a, posto ela ser somente isto, esforço e idolatria. Mas, para os cristãos, quando as Escrituras falam, é Deus mesmo quem fala, e fala a nós. Deus dixit! Dominus dixit! E nas Escrituras aprendemos que, do começo ao fim, é o Senhor Deus Todo-Poderoso que se revela em Cristo Jesus e busca os seus, por pura misericórdia, no Salvador.

Até meados do século passado, os evangélicos inseridos na tradição fundamentalista usavam a Escritura como texto-prova (dicta probantia). Até podiam praticar uma hermenêutica literalista ou ingênua, mas havia preocupação genuína em citar o texto bíblico, em remeter seus ensinos à Escritura. Hoje, nem isso. De um lado, a invasão dos métodos críticos na interpretação da Escritura supostamente tornou sem razão afirmar algo a partir dela, já que, para muitos dos que seguem tais metodologias, a Bíblia não é inspirada, e sim mero produto humano. De outro lado, as supostas novas revelações entregues sobretudo a bispos e apóstolos neopentecostais fizeram da Escritura nada mais que um simples acessório em suas comunidades. Com isso, no âmbito de certas igrejas, basta unir alguns chavões piedosos à linguagem religiosa e qualquer ideia passará facilmente por “cristã”. E os fiéis a seguem, sem nem mesmo se preocuparem em examinar as Escrituras todos os dias “para ver se as coisas eram de fato assim” (At 17,11). A nobreza se perdeu. Por isso, o que se vê hoje é o ressurgimento do velho gnosticismo, mais uma vez tentando se parecer com o cristianismo. Mas, não é demais lembrar, gnosticismo não é cristianismo.

À medida que importantes segmentos da igreja brasileira tentam loucamente pôr de lado o “bem-aventurado e único soberano, Rei dos reis e Senhor dos senhores, o que possui, ele somente, a imortalidade e habita em luz inacessível” (1Tm 6,15-16), uma nova casta sacerdotal vai surgindo com seus líderes endinheirados. Com eles, aparecem certos eruditos que não raro precisam apelar à falácia do argumento magister dixit enquanto se agarraram às teorias críticas europeias do século 19 como se fossem a última moda teológica – todos igualmente caricatos e bufões. E presenciamos o absurdo em que abandonar a Escritura, desprezar a igreja e transformar Jesus num curandeiro, mestre inofensivo ou revolucionário social é ser avant-garde. Como se isso não bastasse, qualquer crítica feita a essa nova classe sacerdotal, grandemente responsável por tal doença, equivale a blasfêmia e atrai a ira e a revolta de seus seguidores cegos, que se juntam em correntes de ódio e fúria.

E assim novas ideias tentam tomar o lugar da reta doutrina, do puro evangelho – pode ser o pelagianismo, a mensagem da prosperidade, o teísmo aberto, o “cristianismo progressista” ou o marxismo cultural, que tomou de assalto todas as esferas da sociedade e anseia por inaugurar um suposto milênio na terra, a utopia totalitária do “outro mundo possível”. Tristemente, alguns cometem a alucinada infâmia de tentar mesclar a absoluta Palavra de Deus em Jesus Cristo com uma ideologia corrupta e corruptora, um sistema de ideias que está entre os mais assassinos da história. Mas lembremos do testemunho antigo: “Jesus Cristo, como nos é atestado na Sagrada Escritura, é a única Palavra de Deus que devemos ouvir, e em quem devemos confiar e a quem devemos obedecer na vida e na morte. Rejeitamos a falsa doutrina de que a igreja teria o dever de reconhecer – além e aparte da Palavra de Deus – ainda outros acontecimentos e poderes, personagens e verdades como fontes da sua pregação e como revelação divina” (Declaração Teológica de Barmen, 8.11-12).

Em sua loucura, todos estes pervertem a mensagem cristã. E os adeptos de cada uma dessas correntes seguem não mais o evangelho, antes correm atrás de outro tipo de anúncio, ἕτερον εὐαγγέλιον, mera perversão ou caricatura, não mais a boa-nova da salvação de Deus em Cristo Jesus, que justifica, redime, reconcilia e adota ímpios somente pela fé, regenerando-os por meio da obra do Espírito Santo – “o evangelho de Deus a respeito de seu Filho que se fez carne, sofreu, ressuscitou e foi glorificado pelo Espírito santificador”, como escreveu Martinho Lutero. A mensagem para os que abandonaram a pura Palavra de Deus e para aqueles que os seguem é: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos pregue um evangelho diferente do que já vos pregamos, seja maldito. Conforme disse antes, digo outra vez agora: Se alguém vos pregar um evangelho diferente daquele que já recebestes, seja maldito” (Gl 1,8-9).

Mesmo os debates que tratam de aspectos da ética cristã são pautados não mais pela Escritura, mas pela mera opinião pessoal. Ou por seguir cegamente a crença de um líder religioso ou alguma ideologia política oposta à fé

Lamentavelmente, o veredicto de Dietrich Bonhoeffer sobre o cristianismo nos Estados Unidos do fim da década de 1930 descreve com exatidão os evangélicos no Brasil do século 21:

“Deus não concedeu ao cristianismo americano nenhuma reforma. Ele lhe concedeu vigorosos pregadores reavivalistas, pastores e teólogos, mas nenhuma reforma da igreja de Jesus Cristo por meio da Palavra de Deus. Qualquer coisa das igrejas da Reforma que chegou à América ou está em exclusão consciente e afastada da vida geral da igreja ou foi vítima do protestantismo sem reforma... A teologia americana e a igreja americana como um todo nunca foram capazes de compreender o significado da ‘censura’ pela Palavra de Deus e tudo o que isso significa. Do primeiro ao último, eles não entendem que a ‘censura’ de Deus toca até mesmo a religião, o cristianismo da igreja e a santificação dos cristãos, bem como que Deus fundou sua igreja para além da religião e para além da moralidade. Um sintoma disso é a adesão geral à teologia natural. Na teologia americana, o cristianismo ainda é essencialmente religião e moralidade. Por causa disso, a pessoa e a obra de Cristo, na teologia, vão permanecer em segundo plano e, por longo tempo, ficar incompreendidas, porque não são reconhecidas como o único fundamento do julgamento e do perdão radical. A principal tarefa na atualidade é o diálogo entre o protestantismo sem reforma e as igrejas da reforma.”

A crítica desse mártir sobre o cristianismo nos Estados Unidos está correta em sua essência e se aplica por inteiro a nós hoje, em nosso país. Em resumo, para grande parte dos evangélicos brasileiros, o cristianismo é basicamente sobre o que se faz para Deus. Como Martinho Lutero afirmou:

“Por isso, alguém não é chamado de cristão por fazer muito; mas por tomar, buscar, deixar-se presentear por Cristo. Quando alguém não toma mais de Cristo, não é cristão. O nome ‘cristão’ fica no tomar e receber, não no fazer, porque não recebe nada de ninguém, exceto de Cristo. Se ele olha para o que faz, então já perdeu o nome cristão. É verdade que devemos fazer boas obras, ajudar o próximo, aconselhar e dar; mas por isso ninguém se torna um cristão. Assim, se quisermos reconhecer se alguém é um cristão, conforme a palavra de Deus, temos de perguntar como ele está em relação a Cristo, se ele se apega somente à graça de Cristo... Por minhas obras, o jejuar, penso que posso ser chamado de jejuador; por minhas peregrinações, um peregrino, mas não de cristão.”

E é justamente nesse ponto que rompemos com a fé bíblica redescoberta na Reforma. Pois ela enfatiza e ensina somente o que Deus faz por nós por meio do Cristo crucificado, ao dar prioridade à graça livre e soberana que age em meio ao nosso pecado, vício e escravidão existencial, nos redime e faz de nós novas criaturas. Como o hino de Augustus Toplady, Rocha eterna, tão belamente testemunha:

Rocha eterna, meu Jesus
Que, por mim, na amarga cruz
Foste morto eu meu lugar
Morto para me salvar
Em Ti quero me esconder
Só Tu podes me valer

Minhas obras, eu bem sei
Nada valem ante a lei
Se eu chorasse sem cessar
Trabalhasse sem cansar
Tudo inútil, tudo em vão!
Só em Ti há salvação

Nada trago a Ti, Senhor!
Espero só em Teu amor!
Todo indigno e imundo sou
Eis, sem Ti, perdido estou!
No Teu sangue, ó Salvador
Lava um pobre pecador

Quando a morte me chamar
E ante Ti me apresentar
Rocha eterna, meu Jesus
Que por mim, na amarga cruz
Foste morto em meu lugar
Quero em Ti só me abrigar

A mensagem do evangelho não é um recurso para melhorar nossa autoestima ou para nos ajudar a ascender socialmente, ou fazer a igreja crescer em cinco passos ou qualquer outra coisa deste gênero; é sobre ouvir e crer na mensagem revelada na Escritura sobre a graça de Deus em Cristo crucificado; é sobre nossa morte e ressurreição, nossa morte e ressurreição diária, enquanto aguardamos o triunfo do Rei e Salvador, o estabelecimento do novo céu e nova terra, e a vinda da Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descerá do alto, “da parte de Deus” (Ap 21,2).

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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