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Em São Paulo, a Assembleia Legislativa aprovou em 21 de abril um projeto de lei de autoria do deputado estadual Campos Machado (Avante), “que considera que, por ser uma questão de saúde pública, a decisão de tomar a vacina não pode ser [decisão] individual”, e que impõe restrições a quem não tomar a vacina contra a Covid-19. Se sancionado, o projeto prevê que pessoas não imunizadas não poderão utilizar transporte público, realizar inscrições em concursos públicos, emitir documentos ou ingressar em instituições de ensino. Outros estados brasileiros, como Goiás, já debatem a implementação do passaporte da vacina, inclusive com o uso de multas e penalidades.
Um projeto de lei de passaporte da vacina digital, de autoria do deputado federal Felipe Carreras (PSB-PE), tramita na Câmara Federal e poderá ser votado em breve. Este terá a possibilidade de ser usado “como mecanismo de controle sanitário e de acesso a espaços públicos e privados, podendo determinar multas e penalidades”, de acordo com a Agência Câmara de Notícias. E “o documento digital poderá ser usado para autorizar a entrada do portador em eventos e locais públicos, meios de transporte ou qualquer local onde haja aglomeração de pessoas”.
O passaporte da vacina no exterior
A China, o Japão e a União Europeia já têm projetos de passaporte de vacinação. No caso desta última, seriam certificadas as pessoas que receberam vacinas de um dos quatro laboratórios europeus – AstraZeneca, Pfizer, Moderna e Janssen. Pessoas vacinadas com imunizantes dos laboratórios chineses Sinovac (que produz a Coronavac) e a Sinopharm, bem como com a Sputnik V, de fabricação russa, podem ser impedidas de entrar em seus 27 países-membros. Somente em junho haverá uma decisão.
Os Estados Unidos afirmaram que não vão exigi-lo de forma obrigatória, embora deixem espaço para que empresas privadas peçam um certificado deste tipo. Na primeira semana de abril o uso de passaportes da vacina foi proibido na Flórida. De acordo com a ordem assinada pelo governador republicano Ron DeSantis: 1. qualquer entidade governamental no estado fica proibida de emitir passaportes da vacinas e impedir que as empresas exijam qualquer documentação dos consumidores; 2. há preocupação com a liberdade e a privacidade, pois a implementação de passaportes para vacinas criaria duas classes de cidadãos com base nas vacinações; 3. e muitos moradores ainda não tiveram oportunidade de obter a vacina, e outros podem não se vacinar devido à saúde, religião etc.
Os “passaportes de vacina” podem eventualmente proibir pessoas de realizar uma série de ações fundamentais caso não se vacinem
Mas, de uma forma geral, os meios de comunicação e as Big Techs têm se mostrado favoráveis a esses projetos. O argumento mais usado é de que já somos obrigados a apresentar comprovantes de vacinação para viajar a alguns lugares. De fato, eu mesmo já fui vacinado para poder embarcar para países na África, onde se exige comprovação de vacina contra a febre amarela. No entanto, há aqui uma diferença importante: não precisamos nos preocupar com as leis de imigração de outros países, pois nem sempre iremos visitar esses lugares. A situação a que se referem esses projetos de passaporte da vacina são bem diferentes, pois podem se tornar uma lei do país, que eventualmente proibirá pessoas de realizarem uma série de ações fundamentais caso não se vacinem.
Importa notar que, aparentemente, até o presente – quando apenas 7,6% da população global já foi vacinada totalmente –, a discussão trata mais dos aspectos práticos do passaporte da vacina e menos sobre os aspectos éticos de adoção.
No Reino Unido, clérigos expõem suas preocupações publicamente
No Reino Unido, no fim da primeira quinzena de abril, mais de 1,5 mil clérigos cristãos assinaram e endereçaram uma carta aberta ao primeiro-ministro Boris Johnson e aos membros do Parlamento britânico, que no momento discutem a implementação do passaporte de vacinação.
Esses clérigos indicaram que desafiarão as regras do passaporte da vacina se forem implementadas nas igrejas: “Negar às pessoas a entrada [numa igreja] para ouvir esta mensagem vivificante e receber este ministério vivificante seria uma traição fundamental a Cristo e ao Evangelho. [...] Para a Igreja de Jesus Cristo, excluir [das igrejas] aqueles considerados pelo Estado como indesejáveis sociais seria um anátema para nós e uma negação da verdade do Evangelho”.
E a carta aberta continua: “As pessoas podem ter várias razões para não poder ou não querer receber as vacinas disponíveis atualmente, incluindo, para alguns cristãos, sérias questões de consciência relacionadas com a ética da fabricação de vacinas ou teste”. Tal percepção demonstra sensibilidade pastoral dos clérigos que assinaram a carta aberta.
Em defesa da objeção de consciência
A Instrução Dignitas Personae, “sobre algumas questões de bioética”, publicada pelo Vaticano em setembro de 2008, trata do “uso de ‘material biológico’ humano de origem ilícita” nos parágrafos 34 e 35, afirmando que “na investigação científica e na produção de vacinas ou de outros produtos, utilizam-se, por vezes, linhas celulares, que são o resultado de uma intervenção ilícita contra a vida ou contra a integridade física do ser humano. [...] Tudo isto dá lugar a diversos problemas éticos, em tema de cooperação com o mal e de escândalo”. Assim, dois princípios destacados são o “dever de, no exercício da própria atividade de investigação, se distanciar de um quadro legislativo gravemente injusto e de afirmar com clareza o valor da vida humana” e o das “responsabilidades diferenciadas” de cooperação para o mal, em que, por exemplo, “nas empresas que utilizam linhas celulares de origem ilícita, não é igual a responsabilidade dos que decidem a orientação da produção e a dos que não têm nenhum poder de decisão”.
Em dezembro de 2020 o Vaticano também publicou a “Nota sobre a moralidade do uso de algumas vacinas anticovid-19”. Ela afirma que “podem ser utilizadas todas as vacinas reconhecidas como clinicamente seguras e eficazes [para conter a difusão pandêmica da Covid-19], com a consciência certa de que o recurso a tais vacinas não significa uma cooperação formal para o aborto do qual derivam as células com que as vacinas foram produzidas. [...] Pede-se tanto às empresas farmacêuticas como às agências de saúde governamentais que produzam, aprovem, distribuam e ofereçam vacinas eticamente aceitáveis, que não criem problemas de consciência para os profissionais da saúde nem para quantos se devem vacinar”. E mais adiante: “Para a razão prática parece evidente que, em geral, a vacinação não é uma obrigação moral e, por conseguinte, deve ser voluntária. [...] Quantos por motivos de consciência rejeitam as vacinas produzidas com linhas celulares derivadas de fetos abortados devem esforçar-se para evitar, com outros meios profiláticos e comportamentos idôneos, de se tornar veículos de transmissão do agente contagioso” – isto é, fazendo uso de todas as medidas de higiene e distanciamento que ajudem a evitar a propagação do vírus.
No blog Tubo de Ensaio, aqui na Gazeta do Povo, o editor Marcio Antonio Campos escreveu dois textos muito úteis. No primeiro, chamado “Vacinar-se contra o coronavírus é ser cúmplice de um aborto?”, o autor, deixando de lado “motivos inventados e teorias da conspiração” e “algum ceticismo razoável”, trata com sensibilidade “um tipo de objeção de consciência [que] terá de ser levado seriamente em consideração, e talvez até analisado nos tribunais em caso de vacinação obrigatória: se as vacinas que vencerem a corrida [o texto é de setembro de 2020, quando ainda não havia nenhuma vacina aprovada] forem aquelas que usaram linhagens celulares de fetos abortados em sua preparação, imagino que não serão poucos os que recusarão a tomá-la”. Mas, ainda que se deva garantir o direito à objeção de consciência para aqueles que não quiserem tomar vacinas que foram criadas a partir das linhagens celulares de fetos abortados, deve-se requerer “aos governos que ofereçam também as vacinas produzidas sem o uso de linhagens celulares oriundas de abortos”, como a indiana Covaxin e a chinesa Sinopharm (um imunizante diferente da Coronavac).
É o respeito por parte do Estado à objeção de consciência que revela se este ainda permanece dentro de seus marcos legais ou se tornou uma tirania vulgar
No segundo texto, “As vacinas e o sutil estrangulamento da objeção da consciência”, demonstra-se que, ainda que cristãos devam evitar as vacinas de origem eticamente ilícita, nem de longe deve-se defender que tomar tais vacinas seja moralmente errado, ou pecaminoso – quando os documentos oficiais da Igreja Católica citados acima já afirmaram que esse é um recurso moralmente lícito na ausência de outras alternativas e em casos de gravidade. Ainda assim, “ter vacinas é necessário, mas igualmente necessário é ter vacinas boas do ponto de vista ético”. Por outro lado, “haverá aqueles cuja consciência os proíba de usar essas vacinas, pois não querem nenhum tipo de cooperação com o mal. Essas pessoas não estão violando suas obrigações morais ao recusar a vacina; estão apenas agindo de acordo com sua consciência”.
Assim, é colocada uma questão séria: se clérigos “não defenderem a objeção de consciência dos seus fiéis, como esperar que o Estado a defenda? Não me surpreenderia se um tribunal qualquer negasse esse direito a alguém, transformando sua vida em um inferno, forçando-o a escolher entre fazer algo que sua consciência não lhe permite fazer, ou tendo de encarar quase que um banimento da vida social”.
Precisamos lembrar que, para os cristãos, a consciência é encarada, como diz Leland Ryken, “como aquela faculdade que Deus pôs no homem para ser uma caixa de ressonância de sua Palavra, em sua aplicação às nossas vidas”. E a questão da objeção de consciência é importante porque, no fim, para os cristãos, suas consciências são cativas à Escritura, a Palavra viva do Deus vivo. Como escreveu o clérigo inglês David Clarkson, no século 17: “A consciência deve ser sujeitada a Ele, a Ele somente; pois só ele é Senhor da consciência [...]. A consciência é representante de Deus e [...] deve limitar-se às ordens e instruções do Senhor soberano”. Assim, para os cristãos, é imperativo manter suas consciências sujeitas à vontade de Deus, revelada na Escritura. Aliás, é o respeito por parte do Estado à objeção de consciência que revela se este ainda permanece dentro de seus marcos legais ou se tornou uma tirania vulgar.
A importância da carta aberta
Por isso, a carta aberta afirma claramente: “Como tal, esta [ideia do passaporte da vacina] constitui uma das propostas políticas mais perigosas já feitas na história da política britânica”. Publicada em importantes jornais britânicos como o The Telegraph, o The Spectator e o The Guardian, foi assinada por vigários, reverendos, pastores e presbíteros da Igreja da Inglaterra e de igrejas batistas, católicas, independentes, metodistas, ortodoxas, pentecostais e presbiterianas de todo o Reino Unido.
Um dos líderes dos signatários é William Philip, ministro sênior da The Tron Church, em Glasgow, que liderou a revisão judicial na Escócia segundo a qual a proibição de cultos religiosos é inconstitucional e viola os direitos humanos. Foi a primeira vitória legal contra as leis da Covid-19 que atingem as igrejas cristãs no Reino Unido. Outro líder é Mez McConnell, ministro sênior da Niddrie Community Church, em Edimburgo, e coautor da obra Igreja em lugares difíceis: como a igreja local traz vida ao pobre e necessitado, publicado em 2016 no Brasil.
Até que ponto estamos dispostos a ir, ao aceitarmos imposições tais como o passaporte da vacina ou eventual violação de consciência sem levarmos em conta que somos – e devemos continuar sendo – moralmente responsáveis pelas escolhas que fazemos?
A carta aberta surgiu quando o governo foi avisado pela Comissão de Igualdade e Direitos Humanos (EHRC) de que passaportes da vacina podem ser discriminatórios e que tal medida pode criar uma “sociedade de duas camadas” no Reino Unido, atingindo sobretudo os mais pobres e os imigrantes.
Um porta-voz da Igreja da Inglaterra também fez um alerta, dizendo: “A Igreja adotou uma política clara de encorajar as pessoas a serem vacinadas, mas, exceto em circunstâncias muito excepcionais, isso não justifica limitar o acesso aos cultos ou organizações religiosos com base em passaportes de vacinas. Tal abordagem seria contrária ao princípio de que a Igreja é um lar e um refúgio para todos”.
Em 19 de abril o Comitê de Emergências sobre a Covid-19 da Organização Mundial da Saúde (OMS) se posicionou contra o estabelecimento da obrigatoriedade para os viajantes internacionais de um passaporte de vacinação da Covid-19. Os especialistas que aconselham a agência das Nações Unidas recomendaram em uma declaração que “não se exija prova de vacinação como condição de entrada” para viajantes internacionais, “dada a evidência limitada sobre a eficácia das vacinas para interromper a transmissão [do vírus] e a desigualdade persistente na distribuição global das vacinas”.
As sociedades ocidentais estão se fragmentando rapidamente. Divisões raciais, sexuais, sociais, políticas e religiosas já estão sendo impostas a todos e em todo o lugar. Os Estados-nação vão sendo lentamente fracionados em “tribos”, em guerra aberta umas contra as outras. Agora, uma divisão sanitária está no horizonte.
O que está em jogo não é se devemos ou não tomar a vacina. O principal questionamento é até que ponto estamos dispostos a ir, ao aceitarmos imposições tais como o passaporte da vacina ou eventual violação de consciência sem levarmos em conta que somos – e devemos continuar sendo – moralmente responsáveis pelas escolhas que fazemos. A forma como respondermos a esse desafio determinará se continuaremos a ser cidadãos livres ou cairemos num autoritarismo desprezível, não nos importando com que o Estado controle as nossas interações familiares, sociais, sanitárias, trabalhistas e religiosas de forma minuciosa.
A tradução da íntegra da carta aberta
Carta aberta de líderes cristãos ao primeiro-ministro sobre propostas de passaporte da vacina
Para: O primeiro-ministro Boris Johnson
Abril de 2021
Caro primeiro-ministro,
Como líderes cristãos de várias denominações, continuamos orando neste momento pelo seu governo e por todos os que ocupam cargos importantes, “para que tenhamos uma vida tranquila e serena, em toda piedade e honestidade” (1 Timóteo 2,2).
No entanto, escrevemos-lhe sobre uma área de grande preocupação, nomeadamente a possível introdução na nossa sociedade dos chamados “passaportes das vacinas”, que também têm sido chamados de “certificados de status-Covid” e “passes de liberdade”. Opomo-nos totalmente a esta sugestão e desejamos trazer três pontos para a consideração potencial de qualquer esquema deste tipo.
Em primeiro lugar, fazer da vacinação a base para alguém ter permissão de entrar em um local ou participar de uma atividade não faz sentido lógico em termos de proteção de terceiros. Se as vacinas são altamente eficazes na prevenção de doenças significativas, como parece ser a evidência dos resultados dos ensaios até o momento, então aqueles que foram vacinados já receberam proteção; não há benefício para eles se outras pessoas forem vacinadas. Além disso, uma vez que as vacinas não previnem a infecção per se, mesmo uma pessoa vacinada poderia, em teoria, ser portadora e potencialmente transmitir o vírus; então, decidir o status de “não disseminador seguro” de alguém com base na prova de sua imunidade à doença é espúrio.
Em segundo lugar, a introdução de passaportes da vacina constituiria uma forma antiética de coerção e violação do princípio do consentimento informado. As pessoas podem ter várias razões para não poder ou não querer receber as vacinas disponíveis atualmente, incluindo, para alguns cristãos, sérias questões de consciência relacionadas com a ética da fabricação de vacinas ou testes. Corremos o risco de criar uma sociedade de dois níveis, um apartheid médico no qual uma classe inferior de pessoas que recusam a vacinação é excluída de áreas significativas da vida pública. Há também um temor legítimo de que este esquema seja o fim da cunha, levando a um estado de coisas permanente em que o status da vacina da Covid poderia ser expandido para abranger outras formas de tratamento médico e talvez até outros critérios além desse. Este esquema tem o potencial de acabar com a democracia liberal como a conhecemos e de criar um estado de vigilância em que o governo use a tecnologia para controlar certos aspectos da vida dos cidadãos. Como tal, esta constitui uma das propostas políticas mais perigosas já feitas na história da política britânica.
Finalmente, como líderes cristãos, desejamos declarar que não prevemos nenhuma circunstância em que possamos fechar nossas portas para aqueles que não têm passaporte da vacina, certificado de teste negativo ou qualquer outro “comprovante de saúde”. Para a Igreja de Jesus Cristo, excluir aqueles considerados pelo Estado como indesejáveis sociais seria um anátema para nós e uma negação da verdade do Evangelho. A mensagem que pregamos é concedida por Deus para todas as pessoas e consiste em nada mais do que o dom gratuito da graça oferecido em Cristo Jesus, com uma chamada universal ao arrependimento e fé nele. Negar às pessoas a entrada para ouvir esta mensagem vivificante e receber este ministério vivificante seria uma traição fundamental a Cristo e ao Evangelho. Verdadeiras igrejas e organizações cristãs não poderiam fazer isso e, como líderes cristãos, seríamos compelidos a resistir vigorosamente a qualquer ato do Parlamento desse tipo.
Chamamos sua atenção para a recente Revisão Judicial que anulou a proibição do governo escocês relativa ao culto público, o que demonstra que esse impedimento desproporcional do direito de culto é uma violação clara do Artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Não podemos ver como qualquer tentativa de impedir que as pessoas se reúnam para o culto com base em testes ou em não vacinação não seja igualmente considerada uma violação. Concordamos com os membros do Parlamento que já se opuseram a esta proposta: que seria divisivo, discriminatório e destrutivo introduzir qualquer certificação sanitária obrigatória na sociedade britânica. Apelamos ao governo para que afirme com firmeza e clareza que não irá contemplar este plano iliberal e perigoso, nem agora nem nunca.
Com os melhores cumprimentos,
Rev. Dr. Jamie Franklin, Curador, St. George in the Meadows, Nottingham, Inglaterra
Rev. David Johnston, Ministro Emérito, Presbyterian Church in Ireland, Irlanda
Rev. Dr. William J. U. Philip, Ministro, The Tron Church, Glasgow, Escócia
Rev. A. Paul Levy, Ministro, Ealing International Presbyterian Church, Londres, Inglaterra
Rev. Mez McConnell, Ministro Sênior, Niddrie Community Church, Diretor de 20schemes, Diretor da A29 Church in Hard Places, Escócia
Sr. Terence McCutcheon, Diretor Executivo, Hope For Glasgow, Addiction Recovery Centre, Escócia
Confira aqui a lista das mais de 1,5 mil assinaturas.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos