Ano passado abordei a forma como os reformadores protestantes do século 16 aplicaram seus estudos da Escritura ao tema da política. Como um estudo de caso, abordarei o clérigo holandês Abraham Kuyper como outro exemplo que ilustra a influência da reflexão política oriunda da Reforma Protestante na Europa pós-Reforma.
Uma peregrinação espiritual
Abraham Kuyper nasceu na Holanda, em 1837, em Maassluis, filho de um ministro da Igreja Reformada Neerlandesa. Ele foi educado em casa por seu pai e fez o ensino médio em Leiden. Em 1857, fez seu curso superior na Universidade de Leiden, estudando filosofia, teologia e literatura. Ele recebeu o grau de doutor em teologia, em 1862, por seus estudos sobre o reformador polonês Jan Laski.
Quando estudante, Kuyper foi fortemente influenciado pelo liberalismo teológico racionalista de seus professores. Em 1881, lembrou, diante dos alunos da Universidade Livre, sua petulância espiritual: “Em Leiden eu me achava entre os que aplaudiram calorosa e ruidosamente quando nosso professor manifestou sua ruptura total com a fé na ressurreição de Cristo”, acrescentando, porém: “Hoje a minha alma treme por causa de desonra que outrora infligi a meu Salvador”. Ele também escreveu mais tarde: “No mundo acadêmico eu não tinha defesa contra os poderes da negação teológica. Fui roubado da fé da minha infância. Era inconverso, arrogante e aberto a dúvidas”.
Mesmo com suas dúvidas, ele foi ordenado pastor em 1862, e em 1863 assumiu uma congregação em Beesd, um povoado de Gelderland. Nesse mesmo ano ele se casou com Johanna Hendrika Schaay, com quem teve cinco filhos e três filhas. Durante seu pastorado de quatro anos em Beesd, Kuyper ministrou a pessoas que permaneceram fiéis a Cristo, algumas das quais possuíam um notável conhecimento das Escrituras e da fé reformada. Ele disse mais tarde: “Quando saí da universidade e fui para lá [Beesd], meu coração estava vazio”. Mas não permaneceu vazio, pois os membros de sua congregação oraram pelo pastor e assistiram à sua conversão.
Uma jovem camponesa, Pietje Baltus, fazia objeções à pregação de Kuyper, e a sua influência alterou a vida dele para sempre. Essa jovem testemunhou ao pastor sobre a graça de Deus em sua vida. Estimulou-o a estudar as confissões de fé reformadas, insistiu com ele para que lesse as Institutas da religião cristã, de João Calvino, e lhe expôs a Palavra de Deus. Ele se converteu, e depois testificou que ela e outros em Beesd foram os meios que Deus usou para levá-lo a Cristo. Em suas palavras: “Eu descobri que as Santas Escrituras não somente fazem-nos encontrar a justificação pela fé, mas também mostram o fundamento de toda vida humana, as santas ordenanças que devem governar toda existência humana na sociedade e no Estado”. Ele também disse que o coração humano “fortalecido por essa divina comunhão, descobre seu elevado e santo chamado para consagrar todos os departamentos da vida e toda a energia da vida para a glória de Deus”. No estudo da teologia dos reformadores, ele conseguiu poderosos argumentos bíblicos para fazer frente à influência da teologia liberal de sua época.
Durante algum tempo, Kuyper pastoreou uma igreja em Utrecht, até que, em 1870, mudou-se para Amsterdã, para se tornar pastor da Nieuwe Kerk, sendo responsável por outras dez igrejas locais, com vinte e oito ministros, além de presbíteros e diáconos. Aquela cidade fora um baluarte da teologia liberal, mas multidões, que apreciavam o calor e a paixão de sua ortodoxia, vinham ouvir suas pregações. Ele falou de seu sonho para a igreja holandesa: “A igreja que eu quero é reformada e democrática, livre e independente, e também totalmente organizada no ensino doutrinário, no culto formal e no ministério pastoral”. Mas a crescente preocupação de Kuyper acerca das questões sociais e políticas da Holanda lançou-o na vida política. Para se candidatar, Kuyper afastou-se do ministério pastoral.
Servindo no Parlamento holandês
Em 1874, ele foi eleito membro da Casa Baixa do Parlamento, como representante do recém-formado Anti-Revolutionaire Partij (ARP, Partido Anti-Revolucionário), que foi o primeiro partido político moderno da Holanda, e adversário dos princípios da Revolução Francesa e do liberalismo político. Este partido foi fundado pela inspiração de Guillaume Groen van Prinsterer, um ícone no cenário eclesiástico e político holandês. O alvo político deste partido era o reconhecimento, por parte do Estado, das escolas ligadas às Igrejas Reformadas nos Países Baixos.
Em 1901, o ARP chegou ao poder, e Kuyper foi convocado pela rainha Wilhelmina para ser o primeiro-ministro. Seus alvos políticos abrangiam a extensão do voto, o reconhecimento do Estado sobre o direito dos cristãos de conduzirem suas próprias escolas e uma legislação social que ajudasse a proteger o povo trabalhador. Em 1905, após uma amarga campanha eleitoral, Kuyper perdeu seu mandato, por não ter conseguido lidar com uma greve dos ferroviários, ocorrida em 1902. Ele foi o grande líder do partido entre 1879 e 1920. Kuyper continuou a exercer sua influência política no parlamento e, a partir de 1913, como membro do senado. Ele continuou a atuar como redator de um jornal político, De Standaard (O estandarte), que ele havia fundado em 1872. Ele escreveu neste jornal até pouco antes de sua morte, em 1920.
A soberania das esferas
Sua teoria social e política da soberania de Deus sobre todas as esferas da vida humana é uma tentativa de limitar o poder do Estado. Para tanto, Kuyper enfatizou que, enquanto a igreja permanece igreja, esta capacita os cristãos a que se dediquem, para a glória de Deus, ao entretenimento, educação, política, família, tudo isso de maneira distinta da missão da igreja. Portanto, uma igreja cristã, radicalmente fundamentada nas Escrituras, produzirá pessoas que mudem a sociedade, ainda que a igreja – enquanto igreja – não se engaje diretamente nesses empreendimentos.
Em seu pensamento, cada esfera da vida humana – família, igreja, Estado, trabalho, economia – tem sua própria área de responsabilidade, que é derivada diretamente de Deus; as pessoas dentro de cada esfera são responsáveis apenas perante Deus, e o dever do cristão é lutar para ver Cristo honrado em cada uma dessas esferas.
Para Kuyper, as várias esferas que compõem a sociedade são independentes do Estado, pois existem sem este, derivando sua autoridade somente de Deus; o papel do Estado é mediador, intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou para defender os fracos contra o abuso dos demais. Esse princípio foi uma fortaleza contra toda forma de totalitarismo e o fundamento de um verdadeiro pluralismo moderno. Ele entendia, então, que a função do Estado era preservar na sociedade a justiça de Deus, como revelada em sua Palavra.
Nas palestras que ele proferiu no Seminário Teológico de Princeton, nos Estados Unidos, em 1898, editadas com o título de Calvinismo, ele afirmou: “Mas a confissão [...] da soberania de Deus vale para todo o mundo, é verdade para todas as nações, e está forçosamente em toda autoridade que o homem exerce sobre o homem; até mesmo na autoridade que os pais possuem sobre seus filhos. [...] Somente Deus – e nunca qualquer criatura – possui direitos soberanos sobre o destino das nações, porque somente Deus as criou, as sustenta por seu poderoso poder, e as governa por suas ordenanças”. Sua visão da sociedade não se centralizava no indivíduo nem no Estado, mas na soberania das esferas, nas quais muitas e diferentes instituições funcionam debaixo do reinado de Deus. Em outras palavras, como resumido por David Koyzis, o clérigo holandês afirmou uma compreensão não hierárquica da sociedade, onde “(1) a soberania derradeira pertence somente a Deus; (2) toda soberania terrena é subsidiária da soberania de Deus e (3) não há nenhum foco último (ou penúltimo) de soberania neste mundo do qual todas as demais soberanias sejam derivadas”.
O entendimento de Kuyper sobre a relação entre as diversas esferas foi resumido nas palestras de 1898: “O cristianismo está exposto a grandes e sérios perigos. Dois sistemas de vida estão em combate mortal. O modernismo está comprometido em construir um mundo próprio a partir de elementos do homem natural, e a construir o próprio homem a partir de elementos da natureza; enquanto, por outro lado, todos aqueles que reverentemente humilham-se diante de Cristo e o adoram como o Filho do Deus vivo, e o próprio Deus, estão resolvidos a salvar a herança cristã [...]. Desde o início, portanto, tenho sempre dito a mim mesmo: se o combate deve ser travado com honra e com esperança de vitória, então, princípio deve ser ordenado contra princípio”.
Para Kuyper, o cristianismo verdadeiro é mais do que um relacionamento com Jesus Cristo, que se expressa em piedade pessoal, frequência à igreja, estudo da Bíblia e obras de caridade. É mais do que acreditar num sistema de doutrinas. O cristianismo genuíno é uma maneira de ver e compreender toda a realidade. É um sistema de vida, uma cosmovisão. Baseada na Escritura, a cosmovisão cristã pode ser resumida em quatro conceitos: a criação do universo e da vida; a queda no pecado, arruinando a boa Criação de Deus; a obra de Deus em Cristo para a redenção de pecadores e o nosso chamado para aplicar esses princípios a todas as áreas da vida, criando uma nova cultura, antecipando a restauração de toda a Criação.
Uma visão de mundo cristã
A cosmovisão cristã provê uma maneira coerente de viver no mundo, abarcando todas as esferas da Criação: da política à educação, passando pelo culto, vida em família, artes e ciência. Quando a Universidade Livre iniciou suas atividades em 1880, Kuyper declarou em seu discurso inaugural: “Na extensão total da vida humana não há nenhum centímetro quadrado acerca do qual Cristo, que é o único soberano, não declare: Isto é meu!” Conforme Lloyd-Jones disse, “o cristão não deve estar preocupado apenas com a sua salvação pessoal. É seu dever ter uma visão completa da vida como ensinada nas Escrituras. Devemos ter uma visão do mundo”.
Como Henry de Vries escreveu, Kuyper foi um “reconstrucionista consciente e determinado”, que tornou os cristãos holandeses familiarizados “com os símbolos da fé reformada e, por meio da exposição das Escrituras, manteve e defendeu as posições desses símbolos”. Sua convicção era que “a salvação da Igreja e do Estado só poderia ser encontrada no retorno aos fundamentos abandonados da teologia reformada”, redescobertos e adaptados para “as necessidades, demandas e infortúnios do presente”. Tais ênfases podem ser ilustradas na preocupação de Kuyper com o tema da pobreza.
Em 1871, Kuyper deixou clara a compreensão de sua tarefa diante dos desafios sociais: “Lutar contra um mal social isolado ou resgatar os indivíduos, embora excelente, é muito diferente de agarrar o problema socioeconômico em si com o sagrado entusiasmo da fé”, reconhecendo que os interesses comerciais, e não apenas os governamentais, podem oprimir os pobres. Falando no Parlamento, em 28 de novembro de 1874, ele defendeu a elaboração de um código de leis que protegessem o trabalhador, numa época em que tais códigos não existiam. Em seguida, tirou do bolso um Novo Testamento e leu o texto de Tiago 5.1-11: “Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão”. A reação escandalizada da oposição pareceu transformar a Câmara em um hospício.
Tempos depois, Kuyper discursou sobre o mesmo tema, no Congresso Social Cristão, em 1891, dizendo: “Onde pobres e ricos se encontram frente a frente, [Cristo] nunca escolhe seu lugar entre os mais abastados, mas se associa sempre aos pobres. Ele nasce em uma manjedoura, e, mesmo que as raposas tenham seus covis e as aves do céu seus ninhos, ele, o Filho do Homem, não tem onde reclinar a cabeça. [...] Não é da vontade de Deus que alguém, mesmo que trabalhe de forma diligente, experimente escassez de pão, tanto para alimentar a si mesmo como para alimentar sua família. É ainda menos a vontade de Deus que alguém, que tem mãos e tem vontade para trabalhar, pereça literalmente de fome ou se encontre condenado a uma vida de pedinte, simplesmente porque não encontra trabalho. Se tivermos “sustento e com que nos vestir”, aí sim o santo Apóstolo exige que nos contentemos com isso. Mas não podemos nem devemos nos desculpar por haver miséria entre nós. Pois, onde nosso Pai celeste, desejoso em nos dar, nos oferece, por meio desta sua bondade divina, abundância de alimento proveniente do campo, não será exonerado em nome do Senhor aquele que aceitar que por sua culpa tal riqueza seja compartilhada com tanta desigualdade. Desigualdade que faz com que uns tenham pão com fartura enquanto outros permaneçam com estômago vazio ao se deitar em seu saco de dormir ou até mesmo se encontrem dormindo ao relento sem ter onde reclinar a cabeça. [...] O próprio Cristo, como também os apóstolos e também os profetas, registraram esse fato e eram invariavelmente contra tudo o que era poderoso e luxuriante frente aos sofredores e oprimidos. [...] A esta altura, vemos algo que se mostra, como ensino, totalmente oposto ao ensino do socialista: ‘Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas.’ (Mateus 6.33). Portanto, a teoria se volve para ambos os lados, estendendo-se ao mesmo tempo para o rico e para o pobre, cortando a raiz do pecado encontrada em nosso coração”.
A representação cristã na esfera pública
O multifacetado ministério de Kuyper na Holanda lembra que devemos ter cristãos se candidatando à política. Como destacou D. M. Lloyd-Jones, a obra desse homem “se ergue como um grande monumento à única oposição verdadeira a toda a ideia que está por trás da Revolução Francesa”. Porém precisamos cada vez menos de pessoas despreparadas, amadoras, ingênuas ou desonestas, eleitas por um voto corporativista, para representar os interesses de uma igreja particular ou para fazer favores à congregação. Temos de ter pessoas preparadas, com sólida formação bíblica, com um bom programa de governo, desempenhando seu chamado nos centros de decisão – sejam eles simples associações comunitárias, sindicatos, partidos políticos, assembleias legislativas ou palácios do governo –, onde o destino do povo é traçado, lutando pelo bem comum da sociedade, erradicando da mesma os males que são ofensivos a Deus. Em síntese, sendo sal da terra e luz do mundo, representando o Senhor da glória, para expansão de seu reinado. Precisamos de cristãos como Abraham Kuyper, que desejem uma igreja forte, ortodoxa e disciplinada e uma sociedade justa, que tenham como seu lema: “Estimar a Deus como tudo e todos os outros como nada”.
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