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Compartilho nessa semana um ensaio de Willy Robert Henriques, pastor da Igreja Batista Redenção, em Juiz de Fora (MG), graduado em Teologia pelo Seminário Martin Bucer, mestrando em Divindade pela mesma instituição, aluno de Relações Internacionais e participante do programa Mastership da Stand With Us Brasil.
J.R.R. Tolkien, o cristão que influenciou a literatura sendo “simplesmente cristão”
Do protestantismo ao catolicismo
J.R.R. Tolkien é o autor de fantasia mais famoso do mundo. O Senhor dos Anéis, sua obra principal, já vendeu mais de 150 milhões de cópias, atraindo uma legião de fãs de todas as idades nos quatro cantos do mundo. No começo dos anos 2000, o diretor Peter Jackson adaptou a obra para o cinema, resultando em um sucesso estrondoso. Juntos, os três filmes da trilogia receberam mais de 30 indicações ao Oscar, levando 17 estatuetas; O Retorno do Rei, particularmente, se tornou um dos filmes mais premiados de todos os tempos. Mas o que atrai tanto o público para essa obra, e qual o motivo de tanto sucesso?
John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 3 de janeiro de 1892, em Bloemfontein, África do Sul. Seus pais, Arthur e Mabel, eram cidadãos britânicos que se mudaram para a África por causa do trabalho de Arthur no Bank of Africa.
Os primeiros anos de Tolkien foram vividos na África do Sul. Porém, como era uma criança de saúde frágil, seus pais logo viram a necessidade de voltar para a Inglaterra para fugir do calor excessivo e encontrar ares mais frescos. Arthur decidiu permanecer na África do Sul e não abandonar o trabalho, enviando apenas a esposa e os dois filhos pequenos de volta à Europa. Infelizmente, Tolkien nunca mais viu o pai. Em 15 de fevereiro de 1896, Arthur faleceu em decorrência de uma hemorragia causada por uma febre reumática. A morte de Arthur deixou a família numa situação financeira muito difícil, levando-os a necessitar da ajuda de alguns familiares.
A intenção de Tolkien com o Legendarium era criar um corpo de lendas mais ou menos associadas, que remontassem às origens da Inglaterra
Os pais de Tolkien eram da Igreja Anglicana, e havia na família de Arthur alguns familiares batistas. Após a morte do marido, Mabel se sentiu cada vez mais atraída ao catolicismo romano e, no ano de 1900, foi recebida na Igreja Católica. Tanto a sua família quanto os familiares do falecido marido não viram essa mudança com bons olhos, e isso resultou no fim da parca ajuda financeira que Mabel recebia.
Foi nesse momento delicado que surgiu o padre Francis Xavier Morgan, um sacerdote católico que proporcionou a amizade e o auxílio que Mabel precisava. Tolkien aprendeu a amar e a respeitar o padre Morgan, que se tornou o sacerdote da família.
Educação em meio ao sofrimento
Apesar de todas as dificuldades, Mabel não renunciou à educação acadêmica dos filhos. Depois de estudar um tempo em casa com a mãe, Tolkien ganhou uma bolsa de estudos no colégio King Edward, em Birmingham, o que representou um grande avanço em sua carreira acadêmica. Por essa época, seu interesse em línguas estava florescendo, e ele se tornou um linguista muito competente para sua idade.
Infelizmente, mais uma fatalidade se abateu sobre Tolkien ainda muito cedo. Em 14 de novembro de 1904, com apenas 34 anos, sua mãe, Mabel, faleceu em decorrência de agravamentos da diabetes, numa época em que não havia os cuidados necessários para o tratamento da doença.
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Com a morte da mãe, Tolkien ficou sob a tutoria do padre Morgan, que levava muito a sério os estudos do rapaz. Com os esforços da mãe e a continuidade na vida acadêmica, Tolkien se tornou hábil em grego e latim. Foi para Oxford estudar Antiguidade Clássica; depois, estudou Língua e Literatura Inglesa, recebendo nota máxima em Filologia Comparada. Em 1915, obteve o grau de Primeira Classe (magna cum laude) em Língua e Literatura Inglesa. Mas em 4 de agosto de 1914 estourou a Primeira Guerra Mundial, levando Tolkien a se alistar no 11.º Batalhão do Lancashire Fusiliers, do Exército Real Britânico, no ano seguinte.
Toda a sua história de vida – desde o curto período em Bloemfontein, passando pela mudança para a Inglaterra, a conversão ao catolicismo, o abandono da família por causa da conversão, o apoio encontrado na pessoa do padre Francis Morgan, a morte prematura da mãe, o gosto por línguas e seu brilhantismo na área da filologia – moldou o caráter e a vida deste grande homem e preparou o terreno para toda a sua produção literária.
Suas obras
O conjunto de obras escritas por Tolkien leva o nome de Legendarium. Esse termo é usado para se referir a todas as obras que dizem respeito ao seu universo mitológico. As principais são O Silmarillion, O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Sua intenção com o Legendarium era criar um corpo de lendas mais ou menos associadas, que remontassem às origens da Inglaterra.
Tolkien sempre se mostrou completamente avesso a alegorias. Sobre isso, ele disse: “Eu detesto cordialmente a alegoria em todas as suas manifestações e sempre a detestei desde que me tornei bastante velho e cauteloso para detectar sua presença. Prefiro muito a história, verdadeira ou inventada, com sua variada aplicabilidade ao pensamento e à experiência dos leitores” (A Sociedade do Anel, 2019, p. 34). Mas, por mais que ele fosse avesso a alegorias, sua cosmovisão cristã exerceu forte influência no resultado de sua obra. Vamos analisar alguns paralelos que encontramos entre o Legendarium e o cristianismo.
Por mais que Tolkien fosse avesso a alegorias, sua cosmovisão cristã exerceu forte influência no resultado de sua obra
A Criação
O Silmarillion é um tipo de Gênesis do Legendarium. Ele começa com as seguintes palavras: “Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais fosse criado” (O Silmarillion, 2017, p. 3). No universo de Tolkien, existe apenas um Criador de todas as coisas. Ele criou primeiro os seres angelicais e depois desenvolveu o restante de sua criação. Além de haver uma única divindade, ela não se confunde nem se mistura com sua criação. Algo que condiz com a cosmogonia judaico-cristã e difere completamente das cosmogonias pagãs, que são, muitas vezes, panteístas ou panenteístas.
A Queda
Há também a ideia da Queda no Legendarium, retratada de forma bem semelhante ao relato bíblico. Dentre os seres angelicais criados por Eru, havia Melkor, o mais poderoso deles. Melkor se encheu de um desejo de emancipação em relação a Eru Ilúvatar. Num ato de total rebeldia, ele se voltou contra a divindade, trazendo desarmonia e caos à criação. Aqui há um paralelo evidente com a principal teoria do surgimento do mal na tradição cristã. Muitos acreditam que os textos de Ezequiel 28 e Isaías 14 falam sobre a queda de Satanás, originalmente criado bom, mas sucumbindo ao mal e à maldade advindas de seu próprio coração orgulhoso.
O fratricídio
Na Bíblia, após o pecado de Adão e Eva, a primeira grande tragédia relatada é o fratricídio de Caim contra Abel, por pura inveja e maldade. No Legendarium encontramos uma história bem parecida com esse relato bíblico, pelo menos de forma conceitual.
Uma das raças mais celebradas no Legendarium é a dos elfos. Eles são uma criação especial de Ilúvatar e são dotados com a imortalidade temporal, ou seja, nunca morrem de causas naturais. Um dos clãs dos elfos era o dos Noldor. Eles eram nobres e muito poderosos, vivendo entre os Ainur, os seres angelicais. Um deles, chamado Fëanor, era muito criativo e inventivo. Usando suas habilidades, ele criou três joias magníficas chamadas Silmarils. Elas tinham a forma de pedras preciosas, com aparência de diamantes, mas eram muito mais duras, de forma que não havia nenhuma força capaz de destruí-las. Melkor agiu de forma completamente maléfica e dissimulada e, por meio de mentiras, incitou os Noldor contra os Ainur, levando-os a duvidar da bondade e dos interesses de seus protetores. Em sua loucura, os Noldor resolveram partir para longe dos Ainur. Em sua partida, por pura maldade, eles atacaram, roubaram e mataram os Teleri, outro clã dos elfos. Por causa desse terrível fratricídio, eles foram amaldiçoados por Eru.
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Outros tipos de mal
Vários outros seres foram criados por Eru Ilúvatar. Existe uma classe conhecida como Maiar, seres semiangelicais, menos poderosos que os Ainur, mas mais poderosos que os elfos e os homens. O principal deles é Sauron, o Senhor do Escuro, que substituiu Melkor em maldade, depois que este foi derrotado. Sauron atua incitando elfos, homens e anões ao mal por meio de anéis de poder que foram forjados e presenteados a integrantes dessas raças. Porém, de forma sorrateira, ele construiu um Anel poderoso, transportou para ele grande parte de seu poder e, por meio dele, intencionava dominar todos os outros.
Isso é o reflexo da busca de poder pela humanidade, criticada de forma tão veemente nas Escrituras Sagradas. Homens como Ninrode, Faraó, Acabe, Jezabel, Belsazar, Hamã, Herodes e vários outros gastaram sua vida para saciar sua sede de poder e dominação, destruindo todos que se opuseram à sua empreitada maléfica.
Gollum
Originalmente chamado Sméagol, Gollum era da raça dos hobbits, seres extremamente pacatos que se ocupavam de suas vidas pacíficas e tranquilas. Após uma grande batalha, o poderoso anel de Sauron se perdeu por muito tempo e, de forma despropositada, caiu nas mãos de Sméagol. Com o tempo, o poder maléfico do anel se apoderou dele, transformando-o num ser totalmente deformado, tanto física quanto moralmente. Sua humanidade foi declinando e, cada vez mais, ele se portava como um ser animalesco e selvagem, vivendo em função do anel e não podendo se separar dele nem um momento sequer.
Isso nos leva a um paralelo direto com as consequências do pecado na humanidade. O homem, que inicialmente foi criado bom, caiu cada vez mais, declinando, submetendo-se a mortes, roubos, idolatrias, perversidades, opressão, abusos e diversas outras coisas. Assim como Gollum era retratado como uma lembrança vaga e disforme daquilo que um dia havia sido, o homem não perdeu completamente a imagem e semelhança divina na qual foi criado. Um facho de luz ainda permaneceu.
Tolkien não se preocupou em ser um revolucionário; muito pelo contrário, ele escreveu boas histórias e, mesmo que de forma inconsciente, transportou para essas histórias sua visão de mundo cristã
O Bem
Mas não foi apenas o mal que foi retratado no Legendarium. Praticamente tudo de bom que acontece naquele universo contém paralelos com o cristianismo. A ideia de providência divina é presente em toda a obra. Na teologia cristã, a providência diz respeito ao governo soberano de Deus sobre todos os detalhes da criação e sua intervenção miraculosa e sobrenatural em momentos específicos da história. Desde o caos inicial criado pela deserção de Melkor, fica evidente a noção de que nada daquilo fugia aos planos de Ilúvatar, e é assim por toda a história. Claro que não encontramos o termo “providência” na obra de Tolkien, mas esse conceito é visto claramente por trás de expressões como destino, acaso, sorte ou acidente.
A conversão
Há também a ideia de redenção na obra de Tolkien. Na teologia cristã, redenção diz respeito à salvação. Isso engloba várias noções correlatas, mas principalmente o arrependimento pessoal e a radical mudança de postura diante do mal. Vários personagens são descritos dessa forma. Boromir é um bom exemplo: inicialmente, ele tentou tomar o Anel poderoso para si, mas depois se arrependeu e morreu se sacrificando para salvar seus amigos. Thorin Escudo de Carvalho, personagem relatado no livro O Hobbit, em um dado momento demonstrou uma postura completamente arrogante e gananciosa por ouro, mas também se arrependeu e morreu de forma heroica. Vários outros exemplos poderiam ser mencionados no Legendarium.
Os três ofícios de Cristo
Além de tudo isso, não podemos nos esquecer de algo triplamente fantástico no enredo de O Senhor dos Anéis. Na demanda para destruir o Anel de Sauron, é formado um grupo chamado de “Sociedade do Anel”. Vários personagens possuem papéis significativos nessa demanda, mas quatro são muito especiais: os hobbits Frodo e Sam; o mago Gandalf; e Aragorn, da raça dos homens.
Frodo, ajudado por seu fiel escudeiro Sam, se dedicou à missão de levar o Anel para a destruição. Sua missão envolveu sacrifício, risco de morte e entrega em prol de outras pessoas. Isso nos lembra muito o ofício sacerdotal de Cristo, como aquele que carregou sobre si os nossos pecados e caminhou em direção à cruz para lá derrotar o mal de uma vez por todas. Mesmo com toda a dor e sofrimento que isso causou, Cristo foi até o fim.
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Gandalf representa o ofício profético. Ele é aquele que sempre aparece no momento certo, com a ajuda certa, com a palavra adequada. Sempre age com muita sabedoria e, em sua presença, todos se sentem mais seguros. Ele é sempre aquele que guia e conduz os companheiros. Jesus cumpre esse ofício profético. Ele prega sobre o Reino de Deus, sempre age com sabedoria e força, e em sua presença seus discípulos sempre se sentiam guardados em segurança.
Aragorn representa o ofício real. Ele é nobre, luta pelos objetivos dos outros, se porta sempre com honra e decoro, e é o grande rei da Terra Média há muito esperado. Por ser da linhagem dos reis antigos, ele possuía o poder de cura e, quando finalmente assumiu o trono, governou com justiça e promoveu a paz. Essas são características semelhantes às que vemos em Cristo. Cristo se entregou em favor dos outros. Ele é o grande Messias há muito esperado, e seu reino é marcado pela justiça, bondade, amor e paz.
Um grande legado
Muitas outras coisas poderiam ser relatadas sobre as características cristãs presentes no Legendarium de Tolkien. Todas elas comprovam o quanto esse cristão simples, com uma família simples e uma vida completamente normal, impactou o mundo com suas obras. Tolkien não se preocupou em ser um revolucionário; muito pelo contrário, ele escreveu boas histórias e, mesmo que de forma inconsciente, transportou para essas histórias sua visão de mundo cristã. Diversos autores celebrados mundialmente, como George R.R. Martin, Neil Gaiman, J.K. Rowling, Isaac Asimov (que afirmou ter lido O Senhor dos Anéis cinco vezes), Stephen King e C.S. Lewis, amigo de Tolkien que o incentivou a lançar suas obras para o grande público, alegam ter sido influenciados por ele.
Em resumo, o legado de Tolkien é imenso. Ele conseguiu entrelaçar sua visão cristã do mundo com histórias cativantes e complexas que continuam a inspirar e encantar leitores ao redor do globo. Suas narrativas não só entretêm, mas também proporcionam uma reflexão profunda sobre a natureza do bem e do mal, a importância do sacrifício e a esperança de conversão e redenção. Assim, mesmo inconscientemente, ao mergulhar no universo de Tolkien, os leitores encontram ressonâncias com a mensagem cristã “pura e simples” que tem guiado a igreja cristã e impactado a humanidade por dois milênios, gerando um sentimento de familiaridade, identificação e satisfação para seus leitores.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos