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No fim dos anos 1990 e começos dos anos 2000, foram publicadas dezenas de obras sobre espiritualidade cristã, por algumas das mais importantes editoras nacionais. Tal segmento literário se tornou bem popular entre os evangélicos brasileiros. Entre os autores de destaque estavam, entre outros, Dallas Willard, Richard Foster, Henri Nouwen, Brennan Manning, Philip Yancey, Eugene Peterson e James Houston. Qual foi, ao fim, seu legado para a igreja brasileira?

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Os mais influentes

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A principal obra de Dallas Willard, filósofo e apologista batista, foi Conspiração divina. Seu ponto principal nesse livro é que os cristãos não levam Jesus a sério e há mais no evangelho do que apenas “ser salvo”. Mas, ao optar por oferecer sua própria tradução do texto bíblico, o autor termina por ajustar a Bíblia ao modo como ele quer enfatizá-la, afastando-se perigosamente do significado natural das palavras bíblicas. Ele era aderente do teísmo aberto, e frisou esse ponto numa passagem particularmente infeliz sobre oração nesta obra. O espírito das disciplinas é um pouco melhor, sobretudo quando aborda as disciplinas de abstenção e de engajamento. Ele exerceu muita influência sobre o quaker Richard Foster, autor do imensamente popular Celebração da disciplina, e fundador da Renovare, que era uma organização cristã dedicada a ajudar cristãos e igrejas a se engajarem na “formação espiritual cristã intencional”. O best-seller desse autor pode ser considerado um resumo de O espírito das disciplinas. Aliás, Foster também estava associado com o teísmo aberto, conhecido aqui no Brasil como “teologia relacional”, a infame tentativa de reinterpretar a divindade reduzindo-a a um ser preso ao tempo e história e limitado em conhecimento – tão menor e completamente diferente do Senhor Deus Todo-Poderoso, criador e sustentador de todas as coisas, como revelado nas Escrituras.

Do padre católico Henri Nouwen, duas obras de destaque foram A volta do filho pródigo e Transforma meu pranto em dança, e ambas têm bons insights pastorais. Um ponto digno de nota é que ele lutou contra tentações homossexuais durante grande parte de sua vida, mas nunca quebrou seus votos de celibato. Do também padre católico Brennan Manning, uma obra de destaque foi a cansativa O evangelho maltrapilho. Além de oferecer suas percepções muitas vezes baseadas em paráfrases livres de textos da Bíblia, quanto à salvação não há menção de arrependimento e não há referência ao novo nascimento ou à regeneração. Manning apoiou a causa homossexual abertamente, negando ser a homossexualidade um pecado. Um detalhe curioso é que, na época, as editoras evangélicas que publicaram Nouwen e Manning no Brasil não os identificaram como sacerdotes católicos romanos.

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Um dos problemas mais sérios das obras de Philip Yancey é que sua concepção de graça é, na melhor das hipóteses, inadequada. Ela esvazia a palavra de qualquer significado bíblico, o que acabará por esvaziar o próprio evangelho de qualquer significado

Já o jornalista evangélico Philip Yancey, que foi editor da Christianity Today e ganhou status de unanimidade, era pretensioso demais, sempre misturando às suas afirmações críticas duras aos cristãos conservadores, rotulados sempre como desalmados “fundamentalistas”. Soava injusto e hipócrita, sobretudo de um entusiasmado apoiador do ex-presidente democrata Bill Clinton. Livros como Decepcionado com Deus, O Jesus que nunca conheci, Maravilhosa graça, Alma sobrevivente e A Bíblia que Jesus lia circulavam pelas igrejas evangélicas como a mais atualizada e a mais profunda novidade teológica. Ao mesmo tempo, Yancey, que também era associado ao teísmo aberto, chegou a declarar que encontrou mais fé, fervor e comprometimento em comunidades LGBT do que em muitas igrejas evangélicas conservadoras. Um dos problemas mais sérios de suas obras é que sua concepção de graça é, na melhor das hipóteses, inadequada. Ela esvazia a palavra de qualquer significado bíblico, o que acabará por esvaziar o próprio evangelho de qualquer significado. E, embora sejamos ensinados a perdoar porque fomos perdoados, faríamos bem em reconhecer as promessas de Deus, em quase todas as páginas da Bíblia, de que a justiça será feita. Então, o que há de tão incrível na graça? O que é tão surpreendente sobre a graça é que o Deus justo, que jurou punir o pecado e executar a justiça, ainda assim achou por bem estendê-la a um pecador como eu – por meio de Cristo, no qual a graça e a santidade são conciliadas.

Um pastor de pastores pop

O pastor presbiteriano Eugene Peterson, autor da celebrada paráfrase da Bíblia A mensagem, elogiada pelo vocalista da banda U2, Bono Vox, publicou uma série sobre teologia pastoral que foi bem popular no Brasil. O destaque foi O pastor que Deus usa, uma investigação do ministério pastoral em cinco livros bíblicos: Cantares, Rute, Lamentações, Eclesiastes e Ester. Pastores segundo o coração de Deus e Pastor contemplativo também receberam muitos elogios, assim como À sombra da planta imprevisível, relançado como A vocação espiritual do pastor. O alvo de Peterson era oferecer uma compreensão teológica do ministério pastoral nessas obras. O livro escrito com Marva Dawn, O Pastor desnecessário, não alcançou grande destaque. Outro livro dele muito apreciado foi Transpondo muralhas – um estudo biográfico devocional sobre o rei Davi.

Outros livros dele que circularam pelo meio evangélico foram Corra com os cavalos (relançado depois como Ânimo!), Coma esse livro que foi lançado faltando vários capítulos (e relançado completo depois como Maravilhosa Bíblia) – e os dois livros dele sobre os Salmos, A oração que Deus ouve e Uma longa obediência na mesma direção. Esses, que procuravam ser mais expositivos, não fugiam do lugar-comum. Já havia boas obras, sólidas, que combinavam boa profundidade exegética do saltério com aplicações devocionais ricas. O pequeno livro de Dietrich Bonhoeffer Orando com os Salmos é um exemplo disso: de falar muito em poucas palavras, com precisão e riqueza devocional, trazendo percepções surpreendentes dos Salmos, interpretados numa perspectiva toda centrada na pessoa do Senhor Jesus.

Alguns problemas que podem ser identificados em suas obras foi que Peterson aceitava o método histórico-crítico, que ficava evidente na opção por uma datação tardia, pós-exílica, de livros do Antigo Testamento, e na suposição de eles serem edições multiautorais, com consequências diretas na interpretação e aplicação do texto bíblico. E, também, ele dependia claramente de percepções bartianas: em Take and read, uma lista anotada dos livros que Peterson julgava mais importantes para a formação espiritual, ele afirmava seu débito com Karl Barth, cuja leitura do comentário aos Romanos era considerada uma das mais importantes que ele fez – e sim, Der Römerbrief é uma obra impressionante, talvez o livro mais importante da teologia contemporânea europeia do século 20.

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Um detalhe pouco divulgado é que Peterson foi clérigo ordenado da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA), denominação fortemente influenciada pela teologia liberal e pelo esquerdismo, e que tem redefinido doutrinas cristãs fundamentais, além de se caracterizar por legitimar, por meio do uso de novas hermenêuticas, o antissemitismo, a homossexualidade e o aborto. Em 2017, Peterson falou positivamente sobre homossexuais que ele conheceu na igreja e descreveu a homossexualidade como “nem uma coisa certa nem uma coisa errada”. Questionado se estaria disposto a realizar uma cerimônia de casamento entre pessoas do mesmo sexo, ele respondeu que “sim”. A entrevista causou alvoroço imediato nos círculos cristãos, tanto nos Estados Unidos como no Brasil. Logo depois, no entanto, ele publicou uma declaração afirmando crer “na visão bíblica do casamento: um homem e uma mulher” e se retratou de sua resposta à pergunta sobre oficiar um casamento homossexual. Winn Collier, na biografia autorizada de 2021 Fogo em meus ossos, afirmou que a retratação de Peterson foi na verdade escrita por um editor. E que o filho de Peterson, Eric, também pastor da PCUSA, afirmou que a retratação não refletia as convicções de seu pai.

A escada para a glória

A grande e fatal ausência nas obras e propostas de espiritualidade desses vários autores é quanto à centralidade do Senhor Jesus. Há muita ênfase em imitar o Cristo, em estar aberto para Deus, na resposta humana apropriada, em disciplinas espirituais como o jejum e o silêncio, na crítica à espiritualidade verbal tradicional, como se esta estivesse em oposição à espiritualidade estática ou mística, entre outros pontos. Mas não há ênfase na cruz, na morte substitutiva e penal de Cristo, em seu sofrimento vicário, na ressurreição da carne.

Em outras palavras, o que se tem na obra destes autores é o que o reformador Martinho Lutero chamou, no Debate de Heidelberg, de “teologia da glória”. Ou, colocando de outra forma: nessas obras há muita ênfase sobre o subjetivo, sobre a resposta do ser humano, sobre a ascensão do ser humano para a glória, por meio ou de moralidade (mortificação, flagelação da carne e jejum), ou de misticismo (purgação, mortificação e iluminação), ou de especulação teológica (teísmo aberto), mas pouca ênfase no que é objetivo, no que Deus fez e faz, na criação e na cruz, e na tumba vazia. Como bem percebeu Lutero, o que se prioriza nessas três escadas da moralidade, do misticismo e da especulação é a união da alma de forma imediata com Deus, sem a mediação do Cristo crucificado. Mas, para Lutero, o fiel somente encontra Deus não nas manifestações de poder que supostamente acompanham as três escadas, mas em fraqueza, na cruz, pois somente por meio da morte de Cristo somos justificados.

A grande e fatal ausência nas obras e propostas de espiritualidade desses vários autores é quanto à centralidade do Senhor Jesus. Há muita ênfase em imitar o Cristo, em estar aberto para Deus, mas não há ênfase na cruz

Por isso, alguns dos que promoveram essas obras no Brasil eram clérigos e teólogos liberais, que não viam problema em se posicionar, por exemplo, como admiradores dos escritos de Paul Tillich ou seguidores do teísmo aberto de Clark Pinnock, Greg Boyd e John Sanders, unindo estas ideias aos escritos de Pseudo-Dionísio, Meister Eckhart, Madame Guyon e Thomas Merton, ao mesmo tempo em que buscavam uma vida de meditação e contemplação, aparentemente cristã, mas, mais precisamente, aparentada ao gnosticismo, ao pelagianismo e ao panenteísmo – além, claro, de uma aderência dogmática ao socialismo.

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Outro ponto importante é que esses autores, clamando um cansaço diante do racionalismo iluminista e do aparente dualismo entre o aspecto de narrativa, de história (story, história de vida, experiência pessoal), e o de argumentação e sistematização teórica, optaram pelo primeiro, afirmando a pluralidade da vida e rejeitando toda sistematização racional, em comum acordo com a “tolerância” moderna que quer se passar por “amor” em nossos dias. Desprezaram, assim, a teoria para priorizar a diversidade dos fatos da vida, a experiência. Nesse sentido, Peterson, em Maravilhosa Bíblia, no capítulo sobre a proeminência da narrativa pessoal sobre a sistematização teórica, termina elogiando uma comunidade judaica como exemplo de boa leitura bíblica. Após apontar erros na igreja tradicional evangélica, culpando-a por ater-se a certos modos de pensamento e interpretação “racionalistas”, louva como exemplar, em termos de leitura bíblica, uma comunidade que nem sequer crê no Senhor Jesus como único Salvador e Messias.

Em suma, falta nessas obras uma sólida exegese das Escrituras. O uso que estes diversos autores faziam dos textos bíblicos reduzia-se ao uso de textos-prova (dicta probantia) similares aos dos antigos fundamentalistas – o que não deixa de ser irônico, em retrospecto; isso quando não se apoiavam em paráfrases da Bíblia ou flertavam com modelos interpretativos liberais. Esta fraqueza estava refletida na Bíblia de Formação Espiritual Renovare, onde os comentaristas demonstravam pouco interesse em exegese histórico-gramatical ou teologia. Curiosamente, a versão original em inglês trazia os textos deuterocanônicos ou apócrifos: 1 e 2 Esdras, Judite, 1, 2, 3 e 4 Macabeus, Salmo 151, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque e Tobias, acompanhados de comentários, mas que não foram traduzidos na edição lançada no Brasil. Em síntese, a literatura de espiritualidade lançada no Brasil entre 1990 e 2010 terminou por promover uma noção errônea e perigosa de que a unidade por meio da experiência espiritual está acima da unidade confessional.

Um notável impacto

Um autor diferente nessa época foi o batista James Houston. Seus livros, tais como O desejo, O discípulo, O criador, A oraçãoA felicidade e Meu legado espiritual, eram excelentes. Vários livros clássicos de espiritualidade editados por ele, de Teresa de Ávila, Blaise Pascal, John Owen, Jonathan Edwards e William Wilberforce, também foram publicados em português. Eu tive oportunidade de escutar muitas de suas palestras gravadas em fitas cassete – quando estas existiam! O conhecimento que ele demonstrava da história da espiritualidade cristã em obras e palestras era simplesmente invejável. Ele passeava com desenvoltura por Agostinho de Hipona, Bernardo de Claraval, Ulrich von Hutten, João Calvino, John Bunyan, John Owen, Edwards, Hans Urs von Balthasar e Barth. Os livros eram bem escritos, e as ideias e conceitos eram construídos criativamente.

Como Houston mesmo afirmou, em um encontro de espiritualidade realizado no interior do estado de São Paulo, ele não tinha interesse em fazer exegese. Seu alvo era fazer uma leitura espiritual da Bíblia, a lectio divina, uma aplicação imediata do texto bíblico à vida de quem o lê. Isso envolve uma série de riscos, de, enfim, cair no antigo devocionalismo medieval, que se abria para o místico, sem muito interesse no ensino orientado pela exegese e pela teologia. Ora, a aproximação do texto bíblico em amor, pautada pela exegese e pela teologia, era justamente o tipo de leitura bíblica espiritual que os reformadores, seguindo a devotio moderna, redescobriram, e que Houston propunha, ao enfatizar a necessidade de manter juntos a sapientia (sabedoria) e scientia (conhecimento) no desenvolvimento da devoção cristã. Na verdade, cumpre destacar que Houston é considerado o principal responsável pela redescoberta da literatura de espiritualidade cristã entre os evangélicos ocidentais, na segunda metade do século 20.

Um caminho melhor

Mas, tristemente, vários dos principais escritores de espiritualidade e, especialmente, seus seguidores nas igrejas brasileiras terminam por promover a “teologia da glória” – a suposição arrogante de que se poderia chegar a Deus pelo próprio esforço ou obras, por meio da tentativa de construir escadas para o céu, tal qual no episódio da Torre de Babel (Gn 11,1-9; cf 28,1-22). Como consequência, o que foi oferecido aos fiéis era uma mística destituída de conteúdo e da cruz. E todo esse esforço tentou afirmar a graça divina, apresentada, algumas vezes, em oposição à soberania e onipotência divina – logo, deixando de ser graça, pois a graça, para ser graça, deve ser soberana e livre (Rm 11,5-6). E o subjetivismo evidenciado nos muitos testemunhos, como aqueles citados em Maravilhosa graça, de Yancey, acabavam por subverter a graça, tornando-a naquilo que Bonhoeffer caracterizou de “graça barata”.

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Vários dos principais escritores de espiritualidade e, especialmente, seus seguidores nas igrejas brasileiras terminam por promover a “teologia da glória” – a suposição arrogante de que se poderia chegar a Deus pelo próprio esforço ou obras

Infelizmente muitos dos consumidores desse segmento de literatura lançado no Brasil são avessos à autoridade da Bíblia e à confessionalidade. São críticos severos e injustos da Igreja, ao mesmo tempo em que reintroduzem o gnosticismo, o pelagianismo e até mesmo o maniqueísmo, misturados ao marxismo, pela porta dos fundos da igreja cristã, muitas vezes num discurso que se pretende atual, mas ao fim é uma ruptura com a tradição cristã e evangélica. Ainda que propondo uma espiritualidade mística, rotulada supostamente como cristã, esta se encontra destituída de conteúdo cristocêntrico objetivo: a cruz, a expiação e a morte vicária, o momentum e o centro da fé cristã histórica. Na verdade, a busca ávida por livros de espiritualidade parece ser determinada por uma visão “mecanicista” da devoção; as pessoas parecem procurar uma fórmula de espiritualidade que “funcione” – uma compreensão da devoção totalmente oposta à perspectiva bíblica da espiritualidade, que é determinada não por um modelo estático, mas pela perspectiva da peregrinação pessoal diante do Deus pessoal e infinito, que elege e firma aliança com pessoas. Assim, é preciso perguntar: qual é o alvo da experiência mística? Se não é sermos unidos misticamente com Cristo, morto e ressurreto, e recebido pela fé por meio da Palavra e dos sacramentos, se não é termos em nós as marcas de nosso Salvador, então este esforço já deixou de ser espiritualidade cristã.

Por fim, é necessário promover boa literatura na área de espiritualidade, como por exemplo, clássicos como os de Bernardo, Tratado sobre o amor de Deus; de Tomás à Kémpis, A imitação de Cristo; de Lewis Bayly, A prática da piedade; de Henry Scougal, A vida de Deus na alma do homem; de Edwards, A vida de David Brainerd; e de Bonhoeffer, Discipulado – para citar algumas das melhores obras disponíveis em português. Uma literatura que seja bíblica e teologicamente orientada para Deus, que nos ajude a encontrar a Cristo Jesus nas Escrituras, como oferecido na pregação fiel, requerendo quebrantamento, arrependimento, crescimento na fé e na santificação, mas oferecendo união com o Salvador e uma rica vida eclesiástica e sacramental, que priorize a busca por avivamento da Igreja como dádiva do Espírito Santo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]