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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Franklin Ferreira é pastor da Igreja da Trindade e diretor-geral e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos-SP, professor-adjunto no Puritan Reformed Theological Seminary, em Grand Rapids-MI, nos Estados Unidos, secretário geral do Conselho Deliberativo do IBDR, presidente da Coalizão pelo Evangelho e consultor acadêmico de Edições Vida Nova.

Uma definição de antissemitismo

Campo de concentração de Auschwitz
Campo de concentração de Auschwitz: milhões de judeus morreram nos campos de concentração nazistas, mas continua a haver quem negue o Holocausto. (Foto: BigStock)

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O deputado francês Meyer Habib fez um discurso diante da Assembleia Nacional da França, em dezembro de 2019, destacando a extensão da ameaça antissemita e a íntima relação entre o ódio aos judeus e o ódio a Israel: “O antissionismo é a demonização obsessiva de Israel e um abuso da retórica antirracista e anticolonial que tem como objetivo privar os judeus de sua identidade”. Na atualidade, jornais europeus publicam artigos apoiando o boicote econômico e cultural contra Israel, e há uma crescente enxurrada de caricaturas antissemitas que agora acompanham artigos anti-israelenses na imprensa europeia. Muitas charges retratam os judeus como “parasitas”, exatamente como na imprensa alemã antes da Segunda Guerra Mundial e nos países muçulmanos na atualidade. Neste ano, foram pichados slogans antissemitas em vários barracões no Memorial de Auschwitz, na Polônia.

Cristãos e judeus contra o antissemitismo

Uma das áreas chave do diálogo entre judeus e cristãos consiste, como afirma o documento católico Porque os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis: reflexões sobre questões teológicas atinentes às relações católico-judaicas por ocasião do 50.º Aniversário da Nostra Aetate, “na luta comum contra toda manifestação de discriminação racial para com os judeus e contra toda forma de antissemitismo, o qual certamente não foi ainda erradicado e refloresce de modos diversos em vários contextos”. Pois “pela estreita ligação de amizade” que une judeus e cristãos, “a Igreja [...] se sente particularmente em dever de fazer o que está em seu poder, juntamente com os nossos amigos judeus, para rejeitar as tendências antissemitas. [...] Um cristão não pode jamais ser um antissemita, sobretudo por motivo das raízes judaicas do cristianismo”.

Como o mesmo documento lembra, no “Novo Testamento, as repreensões dirigidas aos judeus não são mais frequentes nem mais duras do que as acusações contra eles [presentes] na Lei e nos Profetas”. Então, sob hipótese alguma “não devem, por conseguinte, servir de fundamento para o antijudaísmo. Uma utilização para esse objetivo é contrária à orientação de conjunto do Novo Testamento”. É preciso enfatizar: “Um verdadeiro antijudaísmo, isto é, uma atitude de desprezo, de hostilidade e de perseguição contra os judeus enquanto judeus não existe em nenhum texto do Novo Testamento e é incompatível com o ensinamento que ele contém”.

Muitas charges na imprensa europeia atual retratam os judeus como “parasitas”, exatamente como na imprensa alemã antes da Segunda Guerra Mundial e nos países muçulmanos na atualidade

O direito de Israel existir

É preciso destacar que, como escreve Mark Bailey, chanceler do Seminário Teológico de Dallas, de uma “perspectiva judaica, um argumento para o apoio a Israel na terra de Israel é garantido pela criação de um espaço onde os judeus possam viver sem serem perseguidos ou tratados como bode expiatório como tem acontecido ao longo da história”. Também é importante destacar que a Declaração de Balfour, de 1917; o Mandato da Liga das Nações, de 1922; o Plano de Divisão das Nações Unidas, de 1947; a admissão de Israel nas Nações Unidas, em 1949; e a Resolução 242 das Nações Unidas, de 1967, que exige que todos os Estados da área reconheçam o “direito de Israel de viver em paz com fronteiras seguras e reconhecidas e livres de ameaças e de atos de força”, evidenciam o direito de Israel existir na terra natal dos judeus.

Este direito de Israel viver em sua terra ancestral é a realização da visão de Theodor Herzl, o fundador do sionismo, como ele afirmou em seu livro Der Judenstaat, de 1896: “Os judeus que desejam terão um Estado. Viveremos finalmente como homens livres em nosso próprio solo e morreremos pacificamente em nossas próprias casas. O mundo será livre com nossa liberdade, enriquecido com a nossa riqueza, engrandecido por nossa grandeza. E tudo o que tentarmos realizar ali para nosso próprio bem-estar, terá um feito poderoso e benéfico para o bem da humanidade”.

Nesse sentido, o que Israel alcançou nos últimos 70 anos é um milagre surpreendente. No Democracy Index 2020, da The Economist, o Estado de Israel é listado em 27.º lugar no mundo em termos de democracia e liberdades – e está em primeiro lugar no Oriente Médio e Norte da África. A título de comparação, o Líbano se encontra em 108.º lugar, a Palestina em 113.º, a Jordânia em 118.º, o Egito em 138.º, o Irã em 152.º e a Síria em 164.º lugar. Deixando claro, Israel é a única democracia liberal na região; todos os demais países são classificados como estando sob governos autoritários. A Turquia, de regime híbrido, ocupa o 104.º lugar, o último na Europa Ocidental.

De acordo com Bailey, Israel tem 0,2% da população mundial, mas os judeus respondem por 54% dos campeões mundiais de xadrez; 27% dos laureados com o Nobel de Física e 31% dos premiados em Medicina; 21% do corpo estudantil da Ivy League; 26% dos homenageados pelo Kennedy Center; 37% dos diretores premiados com o Oscar; 38% dos que estão na lista recente dos líderes da filantropia do Business Week; e 51% dos vencedores do prêmio Pulitzer da categoria de não ficção. Esses dados já são espantosos, mas Bailey continua: “Israel [...] detém a maior proporção per capita de graus universitários no mundo. Israel produz mais trabalhos científicos per capita do que qualquer outra nação em uma larga margem de vantagem, bem como detém o maior número de patentes registradas per capita”.

E ele oferece mais dados: “Os esforços humanitários israelenses estão entre os mais dignos de nota. Por mais de 26 anos, Israel enviou 15 grupos de auxílio emergencial para oferecer ajuda a países que sofreram desastres naturais. Ao longo de sua existência, Israel estendeu ajuda e assistência humanitária internacional a mais de 140 países”. Em janeiro de 2019, chegou ao Brasil uma equipe das Forças de Defesa de Israel, com 136 soldados e oficiais reservistas, entre eles especialistas em engenharia, médicos e pessoal de resgate, além de soldados da Unidade Canina Oketz, bombeiros da Brigada de Incêndio Lehava e membros da unidade submarina da Marinha. A equipe era chefiada pelo comandante da Unidade Nacional de Resgate, o coronel da reserva Golan Vach. Eles vieram ao Brasil para ajudar no trabalho de resgate das vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho, em Minas Gerais, na qual morreram 270 pessoas. Foi reconhecido que os equipamentos israelenses se revelaram de grande utilidade, para mapeamento de celulares e para diferenciar a lama do concreto. A equipe retornou para Israel depois de receber uma homenagem do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, no quartel do 12.º Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro. Alguns dos principais meios de comunicação brasileiros simplesmente decidiram não destacar e valorizar a ajuda recebida de Israel.

Por fim, de acordo com Bailey, “poderíamos continuar falando sobre os rápidos avanços nas ciências da vida, cuidados de saúde de qualidade e custo-benefício, pioneirismo farmacêutico global, projetos únicos em biotecnologia com uma variedade de dispositivos protéticos que auxiliam na mobilidade dos doentes e incapacitados a funcionalidade e produtividade. O moderno Estado de Israel tem em grande conta a educação, o trabalho em equipe e soluções criativas para os problemas do mundo”.

Em Israel, os cristãos estão crescendo em número, desfrutando da democracia em todos os seus melhores aspectos – liberdade de religião, movimento e expressão

Sobre os cristãos, que são 2% da população de Israel, as vidas destes diferem muito daquelas dos cristãos que viveram por séculos como cidadãos de segunda classe sob regimes árabes islâmicos ou nações seculares com maioria árabe ou islâmica, como também daqueles cristãos que passam por sofrimentos e perseguições hoje no Iraque, Síria, Egito e Líbano. Nesses países, os cristãos veem seu número diminuindo acentuadamente desde o século passado e agora muitos enfrentam estupros, massacres e islamização forçada. Desde 2011, centenas de cristãos coptas foram assassinados e várias igrejas foram destruídas no Egito por muçulmanos. O contraste com a vida dos cristãos em Israel dificilmente poderia ser maior. Em Israel, os cristãos estão crescendo em número, desfrutando da democracia em todos os seus melhores aspectos – liberdade de religião, movimento e expressão. Por exemplo, no vilarejo de Jish, os cristãos arameus estão revivendo a língua aramaica com o apoio da Suprema Corte de Israel.

Quanto aos cristãos árabes palestinos, que são apenas 2,5% da população palestina (em 1922 eram 9,5%), seu êxodo não seria apenas por causa do conflito entre Israel e os árabes, mas sobretudo devido à perseguição movida contra esses cristãos pelo Hamas e pela Autoridade Palestina. Enquanto isso, os cristãos árabes que vivem em Israel estão entre as pessoas mais cultas no país. Na verdade, pessoas de todas as religiões desfrutam de uma qualidade de vida melhor do que na maioria das nações desenvolvidas e até mesmo em algumas democracias ocidentais. Os islamitas chegam a 14% da população do país. Se Israel assegura direitos civis para todos os seus cidadãos – judeus e não judeus –, há algo ainda mais notável. Alguns de seus cidadãos não aceitam a existência do Estado de Israel, mas o Estado continua assegurando esses mesmos direitos a eles.

Desmascarando o antissemitismo

Tudo isso torna ainda mais necessário o esforço comum de cristãos e judeus para a completa rejeição do antissemitismo. A Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) assim o define: “O antissemitismo é uma determinada percepção dos judeus, que se pode exprimir como ódio em relação aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são orientadas contra indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas”. Os seguintes exemplos são oferecidos como ilustração: “As manifestações podem ter como alvo o Estado de Israel, encarado como uma coletividade judaica. No entanto, as críticas a Israel, semelhantes às dirigidas contra qualquer outro país, não podem ser consideradas antissemíticas. O antissemitismo acusa frequentemente os judeus de conspirarem para prejudicar a humanidade e é utilizado, muitas vezes, para culpar os judeus pelas ‘coisas que correm mal’”. E o antissemitismo pode ser expresso “oralmente, por escrito, sob forma visual e através de ações, utilizando estereótipos sinistros e traços de personalidade negativos”.

E os “exemplos contemporâneos de antissemitismo na vida pública, nos meios de comunicação social, nas escolas, no local de trabalho e na esfera religiosa podem incluir, mas não se limitam a: 1. Apelar, ajudar ou justificar o assassinato ou os maus tratos a judeus em nome de uma ideologia radical ou de uma visão extremista da religião. 2. Fazer alegações enganosas, desumanizadoras, demonizadoras ou estereotipadas sobre os judeus como tal ou sobre o poder dos judeus como um coletivo – tais como, em particular mas não exclusivamente, o mito de uma conspiração judaica mundial ou de os judeus controlarem os meios de comunicação social, a economia, o governo ou outras instituições societais. 3. Acusar os judeus como povo de serem responsáveis por irregularidades reais ou imaginárias, cometidas por um judeu ou um grupo judaico, ou até por atos cometidos por não judeus. 4. Negar o fato, o âmbito, os mecanismos (por exemplo, as câmaras de gás) ou o caráter intencional do genocídio do povo judeu às mãos da Alemanha nacional-socialista e seus apoiantes e cúmplices durante a Segunda Guerra Mundial (o Holocausto). 5. Acusar cidadãos judeus de serem mais leais a Israel, ou às alegadas prioridades dos judeus a nível mundial, do que aos interesses das suas próprias nações. 6. Negar ao povo judeu o seu direito à autodeterminação, por exemplo afirmando que a existência do Estado de Israel é um empreendimento racista. 7. Aplicar uma dualidade de critérios, requerendo um comportamento que não se espera nem exige de qualquer outra nação democrática. 8. Utilizar símbolos ou imagens associados ao antissemitismo clássico (por exemplo, alegações de os judeus terem matado Jesus ou do libelo de sangue) para caracterizar Israel ou os israelitas. 9. Efetuar comparações entre a política israelita contemporânea e a dos nacional-socialistas. 10. Considerar os judeus coletivamente responsáveis pelas ações do Estado de Israel.

Por fim, “os atos antissemíticos são crimes quando assim definidos por lei (por exemplo, a negação do Holocausto ou a distribuição de material antissemítico em alguns países)”. E “são antissemíticos quando os alvos dos ataques, quer sejam pessoas ou bens – tais como edifícios, escolas, locais de culto e cemitérios –, são selecionados porque são judaicos ou associados aos judeus, ou vistos como tal”. Além disso, “a discriminação antissemítica consiste na recusa aos judeus de oportunidades ou serviços disponibilizados a terceiros e é ilegal em muitos países”.

O IHRA foi iniciado em 1998, e conta com apoio destes países-membros: Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Bulgária, Canadá, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Israel, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Romênia, Sérvia, Suécia e Suíça. Cada um desses países reconhece que uma coordenação política internacional é imperativa para fortalecer o compromisso moral das sociedades e combater o crescente negacionismo do Holocausto e o antissemitismo. Outros parceiros do IHRA são as Nações Unidas, a União Europeia e a Unesco, entre outros.

Antissionismo é antissemitismo

Hoje se tornou comum se dizer que não é antissemitismo criticar o Estado de Israel. Pode-se concordar com isso. A maioria dos israelenses critica seu próprio governo a maior parte do tempo. Mas as críticas a Israel se tornam desproporcionais quando, por exemplo, como o teólogo anglicano Gerald McDermott escreve, “igrejas cristãs publicam declarações criticando Israel por seus supostos atos de injustiça”, enquanto simplesmente ignoram “o terrorismo palestino contra Israel” e a “opressão de outros palestinos pela Autoridade Palestina e pelo Hamas”. Muitas das organizações cristãs que muito rápida e prontamente criticam Israel “geralmente ignoram a perseguição muçulmana aos cristãos árabes [...] na Cisjordânia e em Gaza e não se dão conta dos perigos que os cristãos árabes enfrentam quando mencionam essa perseguição em público”. Foi esse tipo de hipocrisia inconsistente dos assim chamados antissionistas que levou o pregador batista Martin Luther King Jr. a dizer, pouco antes de ser assassinado, em 1968: “Quando as pessoas criticam os sionistas, estão se referindo aos judeus; você está falando de antissemitismo”.

Judeus e cristãos devem estar unidos contra o projeto de empurrar o judaísmo e o cristianismo para a esfera privada, silenciando-os publicamente

E o teólogo judeu David Novak destaca um outro ponto, que a ressurgência do antissemitismo deve ser percebida em um contexto mais amplo – isto é, em como judeus e cristãos estão sendo perseguidos na atualidade, inclusive no Ocidente. Ele lembra que “nos últimos 50 anos ou mais, judeus e cristãos tiveram de enfrentar um inimigo comum, o secularismo militante, cuja postura anticristã envolve uma rejeição pública do aspecto mais judaico do cristianismo”. E que “o secularismo de hoje é hostil aos mandamentos morais da Torá, normas afirmadas por cristãos e judeus. Em um sentido real, a ideologia secularista militante afirma” a intenção de substituir publicamente “tanto o judaísmo quanto o cristianismo, insistindo que tem o direito exclusivo de legislar a moralidade pública”.

Portanto, “judeus e cristãos tradicionais que afirmam a lei moral de Deus como autoritativa não estão”, ao se oporem unidos ao secularismo militante, “se engajando em um tipo de sincretismo que negaria as consideráveis ​​diferenças teológicas entre o judaísmo e o cristianismo”. Pois “o fato de haver uma moralidade judaico-cristã não significa que haja uma religião judaico-cristã”. Sendo tanto o judaísmo como o cristianismo crenças baseadas na revelação, ambas recebem a lei moral de Deus como revelação normativa. Assim, Novak destaca, somos rejeitados juntos, judeus e cristãos, pelos secularistas que imaginam “que a humanidade ‘progrediu’ além da autoridade divina e da moralidade bíblica” objetiva. Portanto, judeus e cristãos devem estar “unidos em rejeitar esse supersessionismo secular”, que tem como intento empurrar o judaísmo e o cristianismo para a esfera privada, silenciando-os publicamente.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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