Semanas atrás, abordei a forma como os reformadores protestantes do século 16 aplicaram seus estudos da Escritura ao tema da política. A título de estudo de caso, citarei o parlamentar inglês William Wilberforce como um exemplo que ilustra a influência da reflexão política oriunda na Reforma protestante na Europa pós-Reforma.
O serviço político como chamado divino
William Wilberforce nasceu numa família nobre da Inglaterra, na cidade portuária de Kingston upon Hull, em Yorkshire, em 24 de agosto de 1759, filho único de Robert e Elizabeth Wilberforce. Após estudar em escolas em Hull e Pocklington, foi aceito em 1776 no St. John’s College, na Universidade de Cambridge, onde decidiu dedicar-se à carreira política. Ele foi eleito representante de sua cidade natal aos 21 anos de idade. Permaneceu independente, não se filiando nem ao Partido Whig, de tendências liberais, nem ao Partido Tory, de linha conservadora.
Após experimentar uma conversão a Jesus Cristo, em 1784, foi convencido por John Newton, autor do hino Preciosa a graça de Jesus (Amazing Grace) e respeitado ministro anglicano da igreja St. Mary Woolnoth, em Londres, de que Deus o queria servindo na arena política, em vez de entrar para o ministério pastoral.
Wilberforce decidiu dedicar toda a força de sua juventude e todo o talento que tinha a um único objetivo, que consumiria toda sua vida: a abolição do tráfico de escravos
Depois de muito pensar e orar, Wilberforce concluiu que Newton estava certo. Ele entendeu que Deus o chamara para ser um parlamentar na Câmara dos Comuns: “Minha caminhada é de vida pública. Meu negócio está no mundo, e é necessário que eu me misture nas assembleias dos homens ou deixe o cargo que a Providência parece ter-me imposto”, escreveu em seu diário, em 1788.
Outro que o influenciou fortemente foi John Wesley. Além de uma fé vibrante no evangelho, Newton e Wesley tinham uma forte convicção de que não havia maior pecado pesando sobre o Império Britânico do que o terrível e abominável tráfico de escravos, que Wesley batizara de “execrável vileza”.
Em 1787 Wilberforce conheceu Thomas Clarkson, famoso líder abolicionista, e um grupo de ativistas evangélicos, que incluíam Granville Sharp, a educadora Hannah More e o almirante Charles Middleton, que o persuadiram a se unir a eles. Então, num domingo, 28 de outubro, ele escreveu em seu diário as palavras que se tornaram famosas: “O Deus todo-poderoso colocou diante de mim dois grandes alvos: a supressão do comércio de escravos e a reforma dos costumes”. Foi por conta dessas influências que Wilberforce decidiu dedicar toda a força de sua juventude e todo o talento que tinha a um único objetivo, que consumiria toda sua vida: a abolição do tráfico de escravos.
O Grupo de Clapham
Uma fonte de estímulo nessa luta foi sua participação ativa no chamado Grupo de Clapham (Clapham Sect), constituído de pessoas ricas cujas residências ficavam em Clapham, um elegante bairro localizado a oito quilômetros de Londres, que apoiava muitos líderes leigos na busca de uma reforma social, liderados por um humilde ministro anglicano, Henry Venn. Como destacam Robert Clouse, Richard Pierard e Edwin Yamauchi, o Grupo de Clapham foi, de longe, a mais importante expressão anglicana na esfera da ação social. Esse grupo de leigos geralmente se reunia para estudar a Bíblia, orar e dialogar na biblioteca oval de Henry Thornton, um rico banqueiro que todo ano doava grande parte de seus rendimentos para a filantropia.
Entre os que participavam do grupo estavam: Charles Grant, presidente do conselho da Companhia das Índias Orientais; o advogado James Stephen, cujo filho, chefe do Departamento Colonial, auxiliou bastante os missionários nas colônias; John Shore, Barão Teignmouth, governador-geral da Índia e primeiro presidente da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira; Zachary Macaulay, editor do Christian Observer (Observador Cristão), jornal fundado para promover o movimento; Granville Sharp; Thomas Clarkson; Hannah More, além de outros ministros evangélicos, como Charles Simeon, pastor da Igreja da Santa Trindade, em Cambridge.
Dentre várias atividades, eles ajudaram a fundar a colônia de Serra Leoa, onde escravos libertos poderiam viver livres; a reformar as condições das prisões; a combater a exploração do trabalho infantil; e a fundar a Sociedade para o Alívio dos Trabalhadores Pobres, além de outras iniciativas.
O grupo reunia pastores, jornalistas, escritores, artistas, empresários, militantes de movimentos sociais e parlamentares. Clouse, Pierard e Yamauchi nos dão um vislumbre da comunhão em que estes cristãos viviam:
“Este grupo uniu-se numa intimidade e solidariedade incríveis, quase como uma grande família. Eles se visitavam e moravam um na casa do outro, tanto em Clapham como na própria Londres e no campo. Ficaram conhecidos como ‘os santos’ por causa de seu fervor religioso e desejo de estabelecer a retidão no país. Vários comentaristas observaram que eles planejavam e trabalhavam com um comitê que estava sempre reunido em ‘conselhos de gabinete’ em suas residências para discutir o que precisava ser consertado e estratégias que poderiam usar para alcançar seus objetivos.”
Neste grupo, discutiam os erros e as injustiças de seu país, e as batalhas que teriam de travar para estabelecer a justiça.
Lutando contra a escravidão
John Wesley escreveu sua última carta a Wilberforce em 24 de fevereiro de 1791, seis dias antes de morrer, encorajando-o a executar o plano da abolição da escravatura. Um parágrafo dessa carta diz o seguinte: “Oh! Não vos desanimeis de fazer o bem. Ide avante, em nome de Deus, e na força do seu poder, até que desapareça a escravidão americana, a mais vil que o sol já iluminou”.
Wilberforce e seus amigos do Grupo de Clapham também ajudaram a fundar escolas cristãs para os pobres, a reformar as prisões, a combater a pornografia, a realizar missões cristãs no estrangeiro e a batalhar pela liberdade religiosa. Mas Wilberforce acabou por se tornar mais conhecido por seu compromisso incansável pela abolição de escravidão e do comércio de escravos.
Sua luta começou por volta de 1787 – ele já era parlamentar desde 1780. Haviam pedido a Wilberforce que propusesse a abolição do comércio de escravos, embora quase todos os ingleses achassem a escravidão necessária, ainda que desagradável, e que a ruína econômica certamente viria ao acabar com a escravidão. Apenas uns poucos achavam errado o comércio de escravos.
Para Wilberforce, a única esperança de mudança numa nação não era uma utopia, mas o Evangelho
A pesquisa de Wilberforce o pressionou até conclusões dolorosamente claras. “Confesso a vocês que a perversidade da escravidão se fez tão assustadora, apavorante e irremediável que minha própria mente se decidiu completamente pela abolição”, disse ele à Câmara dos Comuns. “Sejam quais forem as consequências, de agora em diante determino que nunca descansarei até que tenha conseguido sua abolição.”
Wilberforce falou primeiramente sobre o comércio de escravos na Câmara dos Comuns em 1789, num discurso de três horas e meia, que concluiu dizendo: “Senhor, quando nós pensamos na eternidade e em suas futuras consequências sobre toda conduta humana, se existe esta vida, o que esta fará a qualquer homem que contradisser as ordens de sua consciência e os princípios da justiça e da lei de Deus!”
No ano seguinte iniciou-se a Revolução Francesa, e ele viu como a Declaração dos Direitos Humanos gerou assassinatos, anarquia e um reino de terror. Para Wilberforce, a única esperança de mudança numa nação não era uma utopia, mas o Evangelho. Por causa desta convicção ele se lançou a uma luta que lhe custou 18 anos de trabalho incansável, e os feitos que ele realizou se deram em meio a tremendos desafios.
Vencendo no Parlamento
Quanto à tarefa, enquanto a prática da escravatura era quase universalmente aceita, o comércio de escravos era vital para a economia do Império Britânico. Quanto à oposição enfrentada, incluía poderosos interesses mercantis e coloniais, e personalidades como o almirante Horatio Nelson e a maior parte da família real. E, quanto à sua perseverança, Wilberforce continuou incansavelmente, anos a fio, antes de alcançar seu alvo. Sempre desprezado, ele foi duas vezes assaltado e surrado. Certa vez, um amigo lhe escreveu, dizendo-lhe que, do jeito que as coisas andavam, “eu espero ouvir dizer que foste carbonizado por algum dono de fazenda das Índias Ocidentais, feito churrasco por mercadores africanos e comido por capitães da Guiné, mas não desanime – eu escreverei o seu epitáfio!”
Projetos de abolição foram debatidos na Câmara dos Comuns em 1789, 1791, 1792, 1794, 1796, 1798 e 1799, mas foram todos rejeitados. O comércio de escravos foi finalmente abolido em 25 de março de 1807. Quando a lei foi aprovada, toda a Câmara dos Comuns se pôs de pé e aplaudiu Wilberforce por vários minutos, enquanto ele, já desgastado pelos anos, chorava com o rosto entre as mãos. Surpreendentemente, o povo inglês, numa época de dificuldades financeiras, doou cerca de 20 milhões de libras para dar liberdade aos escravos.
Um ano depois da morte de Wilberforce, em julho de 1834, 800 mil escravos, principalmente no Caribe, foram libertados
Em 1812, com sua saúde declinando, Wilberforce deixou de ser deputado por Yorkshire para se tornar parlamentar por Bramber, em Sussex. Com o fim das Guerras Napoleônicas, ele retomou a campanha contra a escravidão em todos os territórios britânicos. Em 1825 ele deixou a Câmara dos Comuns, e Thomas Fowell Buxton assumiu a liderança da campanha. E o voto crucial da famosa Lei de Emancipação chegou quatro dias antes de sua morte, em 29 de julho de 1833. Ele foi enterrado com todas as honras na Abadia de Westminster.
Por causa da decisão parlamentar, o governo da Grã-Bretanha declarou ao mundo que ninguém mais poderia traficar escravos. Logo, Portugal e Bélgica, as duas nações rivais, tiveram de parar com o tráfico por força do poderio naval inglês. Um ano depois da morte de Wilberforce, em julho de 1834, 800 mil escravos, principalmente no Caribe, foram libertados. Em pouco tempo, a maior parte dos países ocidentais aboliria a escravidão em definitivo.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS