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Charlie Gard e a tirania do Estado
As complicações da doença de Charlie Gard tornaram até mesmo o tratamento experimental inútil. Porém, quando seus pais decidiram lutar pela vida do menino – desafiando o diagnóstico dos médicos do hospital onde ele ficou internado, buscando tratamento fora do país, brigando na Justiça para que os aparelhos que mantinham seu filho vivo não fossem desligados, juntando via crowdfunding mais de um milhão de libras para custear o tal tratamento e alardeando em todas as redes sociais e veículos de mídia possíveis a batalha contra o hospital e a Justiça – segundo um especialista consultado, que conhece o tratamento experimental, Charlie tinha 60% de chance de recuperação. Os meses se passaram, o quadro do bebê piorou, até que chegou o dia do diagnóstico definitivo. Aqueles que impediram que Charlie fosse transferido para o hospital americano onde receberia o tratamento pioneiro do doutor Michio Hirano é que selaram o destino fatal do menino: a junta médica do Ormond Street Hospital de Londres, que levou o caso à Justiça por considerar a “morte digna” uma opção melhor do que um tratamento novo e sem eficácia garantida; e os magistrados todos que julgaram o litígio, que arrogaram-se o poder de conhecer o futuro, por não darem crédito ao tratamento experimental, e o poder de vida e morte sobre um ser humano. Quem além deles? Só Deus. Este caso nos mostra que já vivemos plenamente a era em que o Estado tem poder total sobre as crianças, à revelia dos pais. E isso é só o começo. Flávio Morgenstern analisa a jornada da família Gard, e assevera: “Se o Estado paga pela saúde, e não a família, é o Estado que define se vale a pena (se há ‘dignidade’ ou, oh, horror, ‘utilidade’) em uma vida humana”.

Eutanásia, distanásia e ortotanásia: você sabe o que são?
À parte a discussão acerca da prevalência do poder parental ou do Estado, resta a análise do caso do ponto de vista da bioética. É relevante enfrentarmos esses temas espinhosos principalmente em tempos em que, no ranking dos valores, a vida perdeu para o bem estar. Para os médicos do Ormond Street Hospital, os pais incorreram em “distanásia”, ou obstinação terapêutica. Creio que não, tanto que desistiram depois de falar com o doutor Michio Hirano pela segunda vez. A verdadeira questão a ser analisada é se os médicos londrinos perceberam ser caso de ortotanásia, ou aceitação da irremediável morte, ou se são responsáveis por uma eutanásia omissiva. Jorge Ferraz explica melhor a diferença entre os conceitos, mas pontua: “agir contra a vida é em si mesmo mais grave do que não aceitar a morte; a linha entre a eutanásia omissiva e a ortotanásia é por vezes tênue”.

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A confiança na autoridade tecnocrática dos médicos
Hélio Angotti Neto, médico que publicou diversas obras sobre bioética, olha para o caso do bebê Charlie sob o ponto de vista da medicina e da comunidade médica. Ele atesta o ressurgimento da cultura da morte entre seus pares, já amplamente disseminada. Isso compromete a confiança do paciente, ou da família do paciente, no diagnóstico do médico. “É incurável”, dizem. Será mesmo? O doutor Hélio afirma que “qualquer médico tem o direito, e às vezes o dever, de recusar tratamentos inúteis ou errados. Mas a situação [de Charlie] é bem mais complexa. Não se fala de um tratamento inútil, fala-se de um tratamento experimental que pode dar errado ou pode funcionar provocando algum tipo de melhora”.

No caminho para a eutanásia infantil
Para piorar, a decisão do Tribunal britânico, endossada tanto pela Suprema Corte britânica como pela Corte Europeia de Direitos Humanos – de que Charlie Gard deveria permanecer no hospital londrino e de que os aparelhos que o mantinham vivo deveriam ser desligados, porque ele não teria chances nem com o tratamento experimental e merecia uma “morte digna” – criou um precedente perigoso, que certamente será utilizado para a legalização da eutanásia, inclusive a comissiva, em crianças e sem a autorização dos pais. Os ativistas dessa prática mórbida argumentarão que não há diferença ética entre acabar com a vida de alguém retirando o tratamento, e administrando um agente letal. E quem acha que a sociedade jamais aceitaria uma situação dessas deve refletir melhor sobre o caso de Charlie. Nem os protestos, nem as milhões de assinaturas em petições públicas, nem a intervenção do Papa e do presidente americano conseguiram dar uma chance ao menino Gard. George Gillett alerta-nos quanto ao caminho sombrio que estamos trilhando. (texto em inglês)