Há mais ou menos 12 anos, comecei a repensar de maneira profunda minha atividade profissional. Sentia uma necessidade de devolver à sociedade seu financiamento depositado através dos meus estudos de Engenharia Química numa Universidade Pública. E comecei a pensar em que segmentos meu conhecimento e habilidades poderiam ter alguma relevância. Desse dia, saíram minhas áreas de interesse em atuar. E coloquei em primeiro lugar, num ranking de três, a área de conhecimento e recurso que a meu ver é o DNA da nossa diversidade no planeta: a água.
Não é à toa que as pretensões de colonização extraterrestres da NASA correm atrás da necessidade de uma constatação “vital”: a existência de fontes de água, em qualquer estado físico. Esta pequena maravilha tri-atômica resultado da combinação de átomos de oxigênio e hidrogênio, carrega particularidades físico-químicas que permitem tecer a tênue linha da vida como ela é em nosso planeta.
Seu comportamento anômalo, comparado a outras moléculas semelhantes da mesma família, permitiu fenômenos que foram essenciais para o desenvolvimento da vida como a conhecemos. Só para citar um, o fato do gelo flutuar e não afundar, como seria de se prever por lógica, permitiu que, durante a formação dos mares, uma capa protetora contra os raios ultravioletas viabilizasse o tempo e espaço para o desenvolvimento da vida nos oceanos. Poderia ficar falando de várias e maravilhosas anomalias físico-químicas que permitiram o início de mecanismos de desenvolvimento na vida na Terra. Mas, quero, nesta resenha, dar um panorama rápido de como está nossa relação com este maravilhoso elemento.
Nossa dependência da água é transformada há cerca de 12.000 anos, com a fixação do homem à terra e o início da agricultura. Em busca de alternativas de proteínas combinadas a uma seca de mais de 1.000 anos, fomos obrigados a buscar outros alimentos que não oriundos da caça. O Homo sapiens começava, de maneira sistemática, a interferir na evolução genética dos seres vivos segregando espécies e estimulando o plantio de grãos que lhe traziam benefícios em sua dieta. O trigo e a cevada, presentes no Crescente Fértil, foram (e ainda são) os grãos que complementaram a nossa busca vitamínica e calórica. Criamos os pequenos e transformados ecossistemas que viriam a ser as pequenas plantações agrícolas e criadouros de animais.
Em nossa iniciativa de domesticar plantas e animais, sentimos a óbvia necessidade de retirar do meio doses extras de água, taxas acima das usadas até então para atender nossas necessidades metabólicas como indivíduos. Desde então, até os dias de hoje, nosso consumo desse bem natural passou a ter um peso significativo no nosso meio de vida moderno. E está ligado intensamente à nossa produção de alimentos. Nossa distribuição de uso da água doce do planeta, segundo a ONU, é de 70% para a Agricultura, 20% para a Produção Industrial e 10% para consumo humano direto (no Brasil, 83% para o Agronegócio, 9% consumo urbano, 7% para a indústria e 1% para consumo humano rural). Soma-se a essa discussão, um novo demandante de água para a agricultura sem fins alimentícios: biocombustíveis e bioplásticos, na busca por fontes alternativas aos de origem fóssil.
A geração de nossos pais cresceu despreocupada com esse recurso. Apesar do nome por nós dado a este incrível planeta ser Terra, temos dois terços de sua superfície composta de água. Mas, desses 1,6 bilhões de km³, apenas 2,7%, aproximadamente, é água doce. Cerca de 0,3% está disponível de maneira mais ou menos fácil para uso, na forma de rios, lagos ou lençóis subterrâneos de até 750 metros de profundidade. Com um forte agravante: estamos poluindo essa quantidade em tempos recordes. Nossa disponibilidade de água doce está diminuindo ao mesmo tempo que nossas necessidades por ela crescem exponencialmente junto à nossa explosão demográfica. O fenômeno do aquecimento global (independente do causador) traz mais uma incógnita à nossa capacidade de planejamento: mares inteiros de água doce estão, neste momento, evaporando e sendo carregados para longe de nossas expectativas de extração. Todo o ciclo hidrológico está vivendo um período de estresse e as reservas estão sendo consumidas sem a devida renovação em suas fontes.
Segundo a OMS, dois quintos da população mundial não têm acesso ao saneamento básico, levando a epidemias em massa de doenças transmissíveis pela água. Metade dos leitos de hospitais do mundo está ocupada por pessoas com doenças propagadas pela água e de fácil prevenção, segundo a própria entidade. A água contaminada é uma das principais causas de 80% de todas as enfermidades e doenças do mundo. Na última década, o número de crianças mortas por diarreia ultrapassou o número de pessoas mortas em todos os conflitos armados DESDE a Segunda Guerra Mundial. A cada oito segundos uma criança morre por beber água suja e um bilhão de pessoas não têm acesso à água potável.
Essa disparidade não é democrática também. Segundo a OMS, o ser humano necessita de 50 litros por dia por habitante para beber, cozinhar e fazer sua higiene. O norte-americano usa em média quase 600 litros/dia. O africano, 6 litros/dia. As fracas políticas públicas dos países em desenvolvimento também mostram seus pífios resultados: apenas 2% da água residual da América Latina recebe algum tratamento e mais de 700 milhões de indianos não têm saneamento básico adequado. Na China, 80% dos principais rios estão em tal estado de degeneração que não apresentam mais condições para a vida aquática e 90% de todas as águas subterrâneas sob as principais cidades está contaminado. Dos 25 países do mundo com a pior “oferta” de água limpa, 19 são africanos. Por conta desse panorama, milhares de angolanos morreram de uma epidemia de cólera em 2006.
Vários episódios bélicos dos últimos anos tiveram como pano de fundo crises hídricas. Normalmente, quando tentamos explicar a eclosão de um confronto armado como o da Síria ou os levantes sociais da Primavera Árabe, é tentador apegar-nos a uma explicação simplista como intolerância religiosa ou disputas de poder por minorias. Mas, contextualizar a sequência de fatores que aumentaram a tensão social em uma determinada geopolítica requer lentes e dados muitas vezes indisponíveis. Se, num rápido resumo, tentasse explicar parte da guerra na Síria, teria que falar da seca que assolou o país previamente. A indisponibilidade de água na superfície forçou a prospecção e perfuração de poços para utilização na agricultura em anos anteriores. O agravamento da seca forçou os agricultores a procurarem água a profundidades maiores, a custos proporcionais.
Num momento onde a crise hídrica se agravou, o governo de Bashar Al-Assad proibiu novas perfurações sem autorização do governo, que acabou sendo moeda de propina para os fiscais e todas as mazelas que esse tipo de corrupção pode trazer. Com os custos de produção de alimentos no campo sendo inviabilizados, começou um êxodo rural para as cidades, despreparadas, que se tornaram um caldeirão de tensões sociais. O último capítulo é o mais noticiado e, portanto, mais conhecido. A primavera árabe teve um pano de fundo parecido, com impacto direto sobre o preço do trigo e, consequentemente, o do pão.
Aliás, especialistas colocam o preço do pão como um indicador de estabilidade política, antecedendo problemas sociais e confrontos. Parece haver uma sequência lógica que sucede a escassez de água: agitação civil, migração em massa, insurgência e confronto bélico de grande escala. São vácuos perfeitos para a infiltração de grupos terroristas e conturbação do status de poder. Países como Chade, Somália, Níger e Nigéria, e, mais recentemente, o Irã, estão em situações análogas. Países do oriente médio, incluindo Israel, utilizam reservas fósseis de água, oriundas das últimas chuvas, de 10 mil anos atrás. No caso do Irã, políticas de auto-suficiência na produção de alimentos levou a um incentivo na plantação de trigo, que acabou colocando suas reservas de água subterrânea em exaustão: 12 de suas 31 províncias esgotarão totalmente seus aquíferos nos próximos 50 anos.
Acompanhamos os noticiários sobre a tensão no Oriente Médio, mas pouco ou nada se fala sobre a escassez de água. Não há lição a ser observada? Em conversas com pessoas da Europa, percebe-se que o grande tema que permeia assuntos entre várias amostras é a migração em massa. A pressão sobre os aparatos de seguridade social é sentida no Velho Continente também. Desde 1992, não eram registradas tantas migrações no planeta e o mundo passou dos 20 milhões de refugiados pela primeira vez em 2015. Todos os dias, 4.600 pessoas são forçadas a fugir de seus países. No Brasil, temos nossos conflitos há larga data. Se dividirmos a quantidade de água disponível por habitante na cidade de São Paulo, temos um indicador chocante: há menos água disponível que no sertão nordestino. São Paulo disputa a água de mananciais da região de Campinas há tempos.
Em 2014, a ONU publicou uma lista da situação hídrica das 500 maiores cidades do planeta. Uma em cada quatro está em situação de estresse hídrico, onde a disponibilidade de água é inferior a 1.700 m3/hab/ano. Até 2030, teremos um déficit de 40% no suprimento de água, resultante de efeitos combinados de mudanças climáticas, crescimento da população e ação do homem. E a lista das cidades modernas que também sofrerão crise hídrica inclui Miami, Cidade do Cabo, Bangalore, Pequim, Cairo, Jacarta, Moscou, Istambul, Cidade do México, Londres, Tóquio… e São Paulo.
Nessa pintura do holocausto, há os que apostem em soluções tecnológicas como a dessalinização, por exemplo. Há de se colocar na conta das soluções, o dispêndio energético para que soluções como essas sejam minimamente viáveis. Existe o custo entrópico para que uma tecnologia como a osmose reversa aconteça e transforme água salgada em água doce. Isso custa muitos mais dólares/m³ do que os métodos mais convencionais usados hoje em dia. Além disso, devem ser somados os custos da distribuição e manutenção das redes.
Em uma apresentação da Suez, em 2002, mostrando os resultados da privatização das Águas de Manaus em seus 2 anos de operação, mostrou-se que seu maior desafio era reverter a quantidade de “gatos” no sistema de abastecimento. Era algo impressionante a quantidade de canos que retiravam água da principal adutora: o conflito social com a multinacional francesa estava escancarado. Ficou claro que as soluções neoliberais de mercado auto-regulatório não foram suficientes, necessitando haver o avanço e a interferência de políticas públicas.
Temos agravantes culturais em nossa relação com a água. No Brasil, nossos rios foram historicamente usados como receptor final de dejetos. Entre desvios de verbas, projetos ruins e omissão, chegamos ao século 21 com parcos 43% de esgoto tratado no Brasil, onde 27% da população sequer tem a coleta do esgoto, sendo este despejado a céu aberto. Os corpos hídricos que recebem os dejetos são rapidamente associados a doenças e insalubridade, áreas de risco e baixo valor da terra. Nas cidades, rio bom é rio encanado. Esse pensamento coletivo enterra montantes de dinheiro em obras públicas e não permite a regeneração e o equilíbrio de ecossistemas locais, quebrando aquele ciclo das águas que aprendemos no ensino fundamental.
Maltratamos nossas águas urbanas, que representam 7% do consumo no Brasil e, ao mesmo tempo, temos grandes desperdícios nas redes (40% só na distribuição). As campanhas de conscientização têm grande enfoque na economia de água durante o banho e o escovar dos dentes. Claro que ações como essas ajudam e muito a amenizar a demanda por água. Mas 72% da água é utilizada na agricultura, portanto entender a pegada hídrica dos alimentos e enfatizar uma cultura de não desperdício é mais importante que a ducha econômica. Quando uma alface deixa de ter uma aparência robusta, vai murchando para o lixo e carrega consigo 40 litros de água que foram necessários até chegar ao refrigerador do seu lar. O maior consumidor de café em pó é a boca da pia, pois quase 40% do café coado acaba frio e pelo ralo e, junto com ele, 132 litros de água pra cada xícara desperdiçada. Isso equivale a um banho de 15 minutos. Na Europa, redes de supermercados começaram a atentar para isso e a vender com desconto legumes e verduras que tenham defeito de aparência, mas em perfeito estado de consumo. Obviamente que é dinheiro no bolso, diretamente. Mas também há o impacto moral de se desperdiçar tanto recurso apenas por uma questão de aparência.
Temos um desafio imenso pela frente, num cenário complexo e com fatores mudando rapidamente antes que tenhamos tempo de analisá-los. Há 3 ou 4 gerações vivemos o esplendor da revolução científica. Para todas as mazelas ambientais que nosso modo de vida moderno e nosso crescimento demográfico explosivo nos trouxe, esperamos hoje saídas milagrosas por parte da ciência. E assim o fazemos com as questões da água.
Confesso que dediquei bom tempo dos últimos dez anos a sensibilizar e conscientizar o máximo de pessoas a mudarem hábitos e senti na pele como é difícil provocar efeitos culturais rapidamente. Hoje, às portas da revolução da Internet das Coisas e da computação cognitiva, fico esperançoso ao ver a quantidade de startups desenvolvendo sensores, algoritmos, aplicativos, equipamentos, drones, nano-satélites e toda a parafernália tecnológica promissora para o aumento de eco-eficiência no campo, principalmente na questão do manejo da água. Um voto de fé ao esplendor tecnológico, para que não tenhamos que passar pela escassez de água.
*Artigo escrito por Marcos Iorio, Engenheiro Químico, especialista em sustentabilidade.
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