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Fátima* tinha uma vida considerada comum para muitos de nós. Recém-formada, tinha um bom emprego, que gostava e no qual se dedicava muito, uma família unida e amigos para se divertir nos finais de semana. Eu não conseguia deixar de me ver um pouco nela, tínhamos a mesma idade e sonhos muito parecidos, mas Fátima nasceu em um país diferente do meu, e isso, de repente, fez toda a diferença. Nascida e criada em Aleppo (cidade da Síria), viu sua cidade ser destruída por uma guerra civil que fez de seus nacionais suas maiores vítimas, e não somente pela destruição iminente de toda uma cultura milenar, mas também porque a guerra transformou todos aqueles cidadãos, desesperados e amedrontados, em potenciais inimigos para o resto do mundo. Fátima é uma refugiada síria, que encontrou no Brasil a paz que um dia teve em sua casa. Mas as coisas nunca mais seriam como antes, a língua e a cultura eram barreiras que iriam marcar uma luta diária de adaptação e aprendizado. Sua casa agora é aqui.

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Assim como Fátima, milhões de pessoas enfrentam desafios constantes de adaptação, aceitação e até de sobrevivência em busca de paz e dignidade, que seus países não puderam mais lhes prover. Foi uma escolha? Sim, com certeza, mas entre viver e morrer, se torna óbvia qual a escolha certa a se fazer. Segundo dados da Agência da ONU para Refugiados – ACNUR, atualmente há mais de 65 milhões de pessoas em situação de refúgio, o equivalente à 1 em cada 119 pessoas. Nós vivemos a maior crise imigratória desde a Segunda Guerra Mundial, e assim como no século passado, vemos muros sendo erguidos, justificando uma eventual proteção econômica, das fronteiras e dos valores nacionais. Mas diferente de suposições, a realidade mostra um outro lado da moeda.

Segundo um estudo do criminologista alemão Christian Walburg, com base nas estatísticas do Departamento Federal de Investigações, não houve o aumento da taxa de criminalidade média entre 2015 e 2016, anos marcados pela intensa chegada de refugiados em território alemão. Nos EUA, foram comparados dados do FBI com os do Censo Americano entre os anos de 1990 e 2013 e constataram que à medida que a imigração aumentava, os índices de crimes violentos, como assassinato e estupro, diminuíram. Entretanto, cresceram os números de crimes cometidos contra os requerentes de asilo, em um relatório preliminar da polícia alemã (Federal Criminal Police Office – BKA), foram registradas 970 denúncias somente em 2016. Mas não precisamos ir tão longe. Entre 2015 e 2016 foram registrados casos de espancamento, morte e situações análogas à escravidão em locais de São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Santa Catarina.

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Porém, os impactos não se limitam ao âmbito da segurança pública, e os questionamentos se tornam ainda mais efusivos diante de um cenário global de incertezas e crises econômicas, mesmo este não sendo um episódio inédito. Como brasileiros, vivemos épocas de intenso fluxo migratório desde o período escravocrata, passando pela vinda dos europeus para as fazendas de café, os judeus refugiados de guerra, os libaneses, os japoneses e tantos outros povos que foram essenciais para o desenvolvimento econômico do país, durante grande parte do século XX, período em que também vivemos intensas crises econômicas, altos índices de desemprego e inflação. Com a chegada dos anos 1980, o fluxo inverso se consolidou e milhares de brasileiros se viram como imigrantes no Japão, nos EUA e na Europa, enfrentando aqueles mesmo desafios diários de dignidade e adaptação.

A imigração é um processo que sempre ocorreu na história da humanidade e trouxe êxitos. Segundo um estudo realizado pela Universidade de Cornwell, nos Estados Unidos, a entrada de estrangeiros traz muitos benefícios para o país que os recebe, incluindo crescimento econômico através da inovação e do empreendedorismo, com pouco ou nenhum efeito sobre os salários e empregos dos trabalhadores nativos. Novas perspectivas e vivências, só tendem a agregar ao setor produtivo e econômico, trazendo soluções diferentes e facilitando processos. Não à toa que gigantes dos negócios, como Facebook, Apple e Google referências mundiais em inovação, são grandes importadores de talentos de todos os cantos do mundo. Na outra ponta, estes trabalhadores também são essenciais em setores que muitas vezes o mercado não consegue preencher com trabalhadores nacionais, normalmente nas áreas de manutenção, instalação, produção e consertos. Nos EUA e na Europa, um quarto dos trabalhadores destes setores são estrangeiros, inclusive brasileiros, segundo dados da Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico, após análise de 33 países do mundo.

Em seu último ano de mandato, o ex-presidente Barack Obama fez um chamamento público para que empresas norte-americanas fizessem a sua parte na crise imigratória. JP Morgan, AirBnb, LinkedIn, Microsoft, Goldman Sachs, Mastercard, Coursera entre outras, estão entre os nomes de empresas que entenderam seu papel como agente de transformação social. Na Alemanha, quem assumiu a frente deste processo foi Siemens, Porsche e Accenture. No Brasil também temos alguns movimentos, ainda que tímidos, como das Lojas Renner, o Instituto Superior de Administração e Economia – ISAE e EMDOC, por exemplo

Então por que admiramos aquele amigo corajoso, que resolveu tentar a sorte trabalhando como garçom na Austrália ou na Inglaterra e desdenhamos o haitiano o que nos atende com gentileza, ou temos dúvida em contratar o sírio com todas as competências que sempre buscamos? Porque temos medo. Medo do diferente, do novo, da coragem dos outros diante das nossas incertezas, medo de perder aquilo que conquistamos.

Mas nada nos modifica tão profundamente quanto nos colocar no lugar do outro, a tal da empatia. Vivendo como imigrante, lá em 2011, entendi os desafios diários de adaptação e integração, e hoje, acompanhando tantos outros migrantes e refugiados que atendemos através do Linyon, vejo esses mesmos desafios, agravados pelo contexto dos quais fizeram parte. Quando questionamos a integração destas pessoas, não levamos em conta apenas a questão social que envolve, mas no quanto podemos fazer parte deste processo e o quanto também temos a ganhar com isso.

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Estando à frente do Linyon, eu e minha equipe buscamos trazer estas novas perspectivas, através do trabalho e do empreendedorismo, àqueles que foram obrigados a abrir mão de tudo o que tinham para poder sobreviver e àqueles que estão dispostos a trabalhar a diversidade como fonte de inovação. Somos uma ponte para os novos desafios, para construirmos novos sonhos, novas perspectivas e, porque não, para novas formas de se fazer negócio e de fomentar nossa economia. Integrar é mostrar que podemos construir juntos um novo futuro, de abundância e prosperidade.

 

*Artigo escrito por Marcela Milano, que  é internacionalista, especialista em negócios sociais e fellow do Social Good Brasil. Atuou na área de desenvolvimento de negócios da Câmara Americana de Comércio e, após uma temporada morando na Irlanda, resolveu unir sua experiência para gerar impacto social. Em 2015, fundou o Linyon, negócio social de inteligência cultural e empoderamento econômico de migrantes e refugiados. Marcela é parceira do Instituto Legado de Empreendedorismo Social; que é parceiro do Instituto GRPCOM no blog Giro Sustentável.

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