Por Instituto Atuação
São dez horas da noite. Faltam algumas quadras para chegar em casa. Mas as sombras nos deixam temorosos. Histórias de assaltos nessa mesma rua apressam nossos passos. Nossas mãos seguram a alça da bolsa com força, nossos olhos vasculham cada canto da quadra por possíveis figuras suspeitas. Todos nós conhecemos essa sensação: o medo da violência urbana permeia nossa convivência diária.
Mas, ao pararmos para atravessar a rua, quando respiramos fundo e olhamos em volta, percebemos que as ruas estão vivas: patinetes e bicicletas deslizam tranquilos pelas ciclovias, ainda que levemente esburacadas, nessa rua que tanto nos amedronta. Lojinhas e cafés brilham com suas luzes ao lado das calçadas; e algo interessante acontece: ao sentir o espaço da cidade ocupado, temos nós também a vontade de fazer parte dessa ocupação. Vontade de nos soltarmos, de olharmos os outros pedestres nos olhos, de curtir a atmosfera pública, ao invés de nos apressarmos para chegar na segurança da nossa casa. As ruas da cidade passam a se tornar, também, a nossa casa.
Há uma explicação científica para essa transformação de atitude. A teoria do aprendizado social, elaborada pelo psicólogo de Stanford Albert Bandura, estabelece que aprendemos ao observar os outros. Assim, ao ver a tranquilidade na face de quem pedala pela cidade sem medo, internalizamos que nós, também, conseguimos caminhar tranquilos. Esse processo reverbera, de maneira que nos sentimos empoderados para nos apossarmos de um espaço público e transformá-lo, ao invés de sermos passivos em relação a ele. O resultado é, como estamos vendo em Curitiba, que a ocupação do espaço público o torna melhor e mais bem cuidado. Até pode parecer paradoxal, uma vez que mais pessoas transitando por uma área poderia aumentar o lixo jogado nas ruas ou as pichações nos muros. Porém, poluição não é ocupação. O verbo “ocupar”, no latim, significa “apoderar-se, assenhorar-se”. Quem se assenhora de um espaço, não o polui. Cuidamos daquilo que sentimos ser nosso.
Duas tendências motivam o cuidado com o espaço público: a aspiração universal ao belo, e o entendimento de que o público é, primeiramente, uma extensão do privado. Como o Prof. Dr. Bernardo Guadalupe Brandão observa, há um desejo humano de vivenciar o belo, seja por meio das artes, da natureza, das pequenas ou grandes coisas da vida onde a beleza habita e nos inspira a sermos as melhores versões de nós mesmos. O cultivo do belo nas cidades é uma prática antiga que ainda vive hoje: monumentos, templos, praças arquitetonicamente simétricas e o grafite artístico, por exemplo, são expressões distintas dessa mesma tendência. A dedicação ao belo, além de ser prazerosa, como apontavam Platão e Aristóteles, faz com que queiramos ser merecedores dessa beleza. Um ambiente bem cuidado e bonito não convida à destruição. Já uma rua suja parece dizer “mais um lixo no chão não faz diferença”.
Além da preocupação com o belo, o cuidado com o espaço público é produto do entendimento de que a esfera pública é uma extensão da privada, no sentindo em que o público só existe quando cidadãos individuais se dedicam a ele. Se eu não jogo lixo no chão da minha casa, por que jogar lixo na rua da minha cidade? Afinal, são meus impostos que pagam por essa rua. Por que pular a catraca do ônibus se é, em parte, graças ao dinheiro da minha passagem que o transporte público existe? O entendimento de que o privado e o público não são esferas separadas, mas interligadas, é o princípio básico da vida em sociedade. Em cidades cada vez mais urbanizadas, a necessidade de integrar o belo e o funcional se torna mais urgente, e essa integração só pode ocorrer quando nós, enquanto cidadãos, nos apossarmos de nossa cidade. Afinal, uma rua segura permite minha liberdade individual. Ao mesmo tempo, a independência e a livre iniciativa fomentam inovações, como os serviços de aluguel de bicicletas e de patinetes que propiciam e incentivam um melhor uso do espaço público.
Nosso país tem os maiores índices de desconfiança e de violência urbana do mundo[1]. No entanto, quanto mais sairmos das ruas por medo delas, mais elas deixam de ser nossas. A tendência a relegar os bens públicos ao Estado nos leva a esquecermos que é o uso consciente do espaço público que garante a sua qualidade. Por isso, a revitalização do espaço público requer não apenas coragem e inovação, mas também uma compreensão de que só temos a cidade que merecemos quando assumimos a responsabilidade individual para com ela. Nossa cidade é também a nossa casa.
[1] Conforme ranking de 2018, 17 das 50 cidades mais violentas do mundo ficam no Brasil. A quarta cidade mais violenta do mundo é brasileira: Natal. https://www.worldatlas.com/articles/most-dangerous-cities-in-the-world.html
*Artigo escrito por Luiza Leão, formada em ciência política pela Universidade de Columbia, Nova Iorque, e pesquisadora do Instituto Atuação. O Instituto Atuação é colaborador voluntário do Blog Giro Sustentável.
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