Um velho truque na hora de comer na estrada é observar onde estão parados os caminhões. Os caminhoneiros, melhor do que ninguém, sabem os lugares para comer bem sem ser roubado no preço. Dispensam firulas, decorações pseudo-sofisticadas e outros salamaleques que só servem como pretexto para tungar o freguês na hora de fechar a fatura.
Se tiver ônibus de linha parado, porém, fuja como o capeta foge da cruz! São lugares acostumados a tratar os pobres passageiros que, apertados pela fome ou apenas por costume mesmo, se submetem aos preços abusivos e à comida meia-boca da sua única opção em horas de estrada pela frente.
Dito isto, achamos que dá para fazer a mesma comparação com o Mercado Municipal. Embora existam outras opções excelentes, é consenso de que a melhor comida servida no MM é a do box da Dona Yfa. Que o digam os trabalhadores do Mercado que, a partir das onze fazem os panelões com arroz, feijão, carne de panela ou vaca atolada (só para citar alguns exemplos) parecer pequenos. Há 54 anos, seo Ionézio era dono do único box do Mercado Municipal que servia comida. Ele conta que o movimento era, então, garantido no box da Dona Yfa, sua esposa, que continua na lembrança de todos no Mercado, mesmo falecida há mais vinte anos. De todos, talvez não, mas dos mais antigos, certamente. Daqueles que fizeram suas vidas no Mercado Municipal e ajudaram a torná-lo referência em abastecimento em Curitiba. Uma pena que, segundo nos revelam fontes há tempos instaladas no próprio mercado, gente como seo Ionézio e sua clientela não tenha mais lugar ali, isso na “visão de futuro” de parte dos responsáveis por administrar e “modernizar” o espaço, cada vez mais parecido com um shopping center e menos com um mercadão. A tal ponto que o próprio seo Ionézio um dia sugerir que tirassem o “Mercado” e colocassem “Shopping” no lugar. Ironia das ironias, o atual prefeito de Curitiba (que se despede do cargo no fim do mês) se orgulha de ter sido criado ali mesmo, no mercado. Donde fica a pergunta: o que Luciano Ducci pensa da elitização do Mercado Municipal de Curitiba?
Não que seo Ionézio tenha qualquer queixa da administração ou da associação que representa gente como ele, a Ascesme (Associação dos Comerciantes do Mercado Municipal de Curitiba). Pelo contrário. “Sempre me ajudaram em tudo que precisei, sempre me apoiaram”, ele nos conta. Mas isto não esconde o fato de que existe, numa e noutra, gente que gostaria de ver Mercado Municipal como uma espécie de extensão do Batel Soho (sic). Daí, azar de quem precisa do Mercado Municipal para aquilo que sempre foi: um local para se comprar gêneros alimentícios sempre frescos e de qualidade inquestionável a preços condizentes.
Sintomaticamente, hoje se inicia a última semana em que poderemos nos servir nos panelões do seo Ionézio, hoje em dia pilotados por sua irmã, dona Ivone. Em mais alguns dias, o box se tornará uma pastelaria, na sobreloja do Mercado, local para onde devem se mudar os restaurantes ora instalados na área provisória. Aos 76 anos, seu Ionézio tem planos de deixar um pouco de lado a vida atrás do balcão do seu box e aproveitar a aposentadoria para ficar mais junto da família. Aproveitar a vida, enfim.
Modernidade jeca
Seu Ionézio deixará para trás um Mercado Municipal que se torna, aos poucos, um arremedo de shopping center. Uma boa medida disto são os anexos recentemente construídos nos últimos anos (o segundo deles prestes a ser inaugurado), que lembram o que existe de mais banal nos lançamentos imobiliários e shopping centers mais modernos da cidade. Questionada sobre o porquê de tanto mau gosto, uma funcionária do Ippuc (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba) respondeu, em audiência pública, que o prédio original foi erguido nos anos 1950, e que buscar manter esta linha arquitetônica seria um mero pastiche. Argumentou, ainda, que se deveria buscar algo que reflita o momento atual da cidade.
Até aí tudo certo – nada pior do que aqueles botecos construídos para parecer “antigões”.
Mas qual a cara da Curitiba contemporânea? A nosso ver, temos hoje uma cidade que se distanciou do planejamento urbano que, entre erros e acertos, a caracterizou por muitas décadas (desde o plano traçado pelo urbanista Alfredo Agache, nos anos 1930). Em vez disso, abraçou, faceira, a especulação imobiliária que arruinou tantas outras cidades no Brasil. Estreita calçadas para dar passagem a automóveis. Ainda louva como “modelar” um sistema de transporte coletivo obviamente superado, a tal ponto que perde usuários ano a ano, e que sofre para implantar inovações já corriqueiras até, veja você, em São Paulo (como a tarifa temporal).
Eis o momento atual da cidade. É isso que se buscou, portanto, refletir nos novos anexos do Mercado Municipal, segundo o Ippuc. Nós não gostamos nem de um nem dos outros. E, acreditamos, não estamos sós. O “Mercado Municipal de Orgânicos” vive às moscas, em comparação com o prédio antigo. E nunca justificou sua razão de ser, uma vez que já se vendiam orgânicos, em todo o mercado, muitos anos antes do poder público gastar um bom dinheiro nessa “inovação”.
Pois essa contemporaneidade de fachada nós rejeitamos. Em vez disso, ficamos com o muito mais acolhedor Mercado Municipal que ainda resiste, cada vez mais pressionado por especuladores imobiliários, em boxes como o de seo Ionézio. Em breve, iremos perdê-lo. Mas ainda dá tempo de conhecer os encantos da comida da dona Yfa.
Eis o cardápio da semana:
Segunda: Peito de frango e bife
Terça: Frango a passarinho ou ao molho
Quarta: Peixe
Quinta: Carne de Panela com purê de batata e macarronada
Sexta: Vaca atolada
Sábado: Bisteca de porco
(Importante: chegue cedo, que a rapaziada do Mercado Municipal não brinca em serviço, e você se arrisca a perder a viagem se ficar se enrolando muito)
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Serviço
Box da Dona Yfa – Mercado Municipal
Entrada pela rua da Paz, box sem sinalização que fica entre o Take e o Anarco
De segunda a sábado, das 11h às 13h30
Não passa cartão
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Mapa da Baixa Gastronomia
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