Não existe concurseiro que não lembre com nostalgia da "era de ouro" dos concursos. Ela começou no ciclo econômico pós-ajuste fiscal do primeiro governo Lula e acabou neste ano, com o congelamento de novas seleções e o fim dos reajustes salariais acima da inflação. E está nas mãos do governo Bolsonaro evitar que o Brasil passe por mais uma onda dessas.
Muita gente vai argumentar que foi nesse período que se estruturaram serviços públicos importantes e que a carreira de Estado precisa ter mesmo um tratamento diferente do que ocorre na iniciativa privada. Como todo argumento, esses dois têm até uma dose de razão, mas não levam em conta todos os custos de longo prazo da "era de ouro".
Primeiro, há uma injustiça remuneratória no serviço público federal que foi exacerbada nas duas últimas décadas. As carreiras de Estado pagam mais do que suas equivalentes na iniciativa privada. São achatadas, ou seja, o funcionário entra no serviço público com uma remuneração bastante próxima do topo. E ganharam reajustes acima do visto na iniciativa privada.
Um estudo do Banco Mundial a respeito do funcionalismo brasileiro calculou que a remuneração na esfera federal é 96% superior à encontrada na iniciativa privada. O Brasil é o país que paga o maior prêmio para o funcionalismo em uma comparação entre 53 países. Os salários altos são a regra: 44% dos servidores ganham mais de R$ 10 mil por mês.
Além de salários altos, o serviço público tem um modelo engessado. Há no país anacronismos como a vinculação de carreiras ao salário de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o que provoca o chamado "efeito cascata" quando há um reajuste para os 11 ministros da corte. Outro engessamento está na dificuldade de se avaliar e demitir um funcionário, já que as carreiras dos servidores têm o prêmio da estabilidade.
Estudo publicado nesta segunda (23) pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado mostra que, se tivesse corrigido os salários dos servidores pela média vista na iniciativa privada, a União teria economizado R$ 32 bilhões desde 2013. É uma cifra que pagaria pouco mais de um ano de Bolsa Família.
De 2008 a 2018, o gasto total com o funcionalismo federal ficou estável em relação ao PIB - foi de 4,5% do PIB no ano passado, contra 4,4% em 2008, tendo caído a 3,9% em 2014, antes da recessão. O governo aproveitou os anos de crescimento da economia para aumentar a folha de pagamento, segundo maior despesa do Orçamento. O número total de funcionários passou de 500 mil no início dos anos 2000 para 634 mil no ano passado. Em 2019, o número caiu para 615 mil, em função do congelamento de contratações e aposentadorias estimuladas pela reforma da Previdência.
No período de 2008 até 2018, cerca de 80 mil servidores foram contratados dentro do regime jurídico único, que prevê estabilidade. Outros 60 mil entraram por outros regimes, em especial o CLT.
O segundo ponto negativo da era dos concursos é que, ao aproveitar o crescimento da economia para expandir seu gasto com pessoal, a União criou uma despesa fixa, algumas vezes em áreas pouco importantes ou improdutivas. Foi uma escolha que ajudou a comprimir o Orçamento e levou a uma redução na capacidade de investimento do setor público.
Na linha de serviços, foi nesse período que o governo federal abriu a torneira para as universidades e criou a rede de institutos federais de educação - o que teve impacto zero sobre a qualidade do ensino fundamental. Foi também o período da constituição de dezenas de novas empresas estatais, várias delas agora na fila da privatização. Companhias como a atrasada fábrica pública de microchips e a empresa que construiria o trem-bala são dessa época, para dar alguns exemplos.
O estudo do IFI mostra que o Ministério da Educação foi o órgão público com maior crescimento no gasto com pessoal na era de ouro dos concursos. A despesa do MEC cresceu 129% de 2008 a 2018, atingindo R$ 48,1 bilhões. A alta foi puxada pelas universidades (72%), fundações universitárias (98%) e a criação dos institutos, que hoje consomem R$ 10 bilhões por ano com servidores.
O custo do funcionalismo das empresas estatais dependentes triplicou no mesmo período, passando de R$ 5,2 bilhões para R$ 13,7 bilhões. Tirando a Ebserh (que paga médicos de hospitais universitários) da conta, a despesa dobrou no período, alta que se concentrou em companhias 100% púbicas.
Também chama a atenção que a Justiça do Trabalho, que já tinha a maior despesa com pessoal em 2008, foi o braço do Judiciário com o maior aumento absoluto (R$ 1,6 bilhão) e o segundo maior reajuste percentual (13%). No ano passado, a Justiça do Trabalho gastou R$ 13,6 bilhões com funcionários - são R$ 3,4 bilhões a mais por ano do que a Justiça Federal.
Em resumo, a era dos concursos foi uma época em que muita gente conseguiu entrar no serviço público para ganhar salários que não são praticados na iniciativa privada, em funções que, em muitos casos, não trazem qualquer ganho na qualidade de vida da população, ou de produtividade para o país.
Como evitar a segunda era de ouro
O Brasil tem a chance de evitar que se construa uma segunda era de ouro. Esse risco existe. O ministro da Economia, Paulo Guedes, vem afirmando que até metade dos servidores vão se aposentar nos próximos anos. Se não houver mudanças e a economia voltar a crescer, haverá pressão para que o Congresso derrube a lei do teto de gastos e permita novamente um crescimento no gasto real com pessoal. Assim, as substituições desses funcionários se dariam dentro do modelo atual.
O plano de Guedes era fazer uma sequência de reformas que permitissem um ajuste forte de longo prazo no gasto com o funcionalismo. A PEC Emergencial, já enviada ao Congresso, traz regras que evitam aumentos salariais nos momentos em que as contas públicas estiverem em dificuldades. Se tivesse sido aprovada neste ano, já teria efeitos em 2020.
A PEC Emergencial, no entanto, não resolve a substituição de quem se aposenta - nos casos em que não há como automatizar o serviço, como quer o ministro. Para isso, é necessário que o governo envie a reforma administrativa para o Congresso. Espera-se que ela ataque questões como os altos salários de entrada e a existência de dezenas de carreiras no serviço público. Também espera-se uma flexibilização da estabilidade e critérios mais objetivos de avaliação.
O presidente Jair Bolsonaro decidiu segurar o envio da reforma dizendo que é preciso "dosar" o remédio para que não vire veneno. Foi um sinal bastante negativo para quem acompanha as contas públicas. Se enviado em 2020, esse projeto pode não avançar por causa das eleições municipais, ficando para 2021.
O risco é o projeto ser segurado por mais tempo, fazendo com que o ciclo eleitoral de 2022 exerça pressão sobre o tamanho do gasto com o funcionalismo. Sobre isso, o estudo do IFI é claro: as contratações de servidores são maiores nos meses que antecedem eleições presidenciais.
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