A entrada dos liberais "de mercado" na chapa de Jair Bolsonaro em 2018 foi uma união de conveniência. Quando encontrou o economista Paulo Guedes, o então candidato Bolsonaro passou a ter um fiador junto ao mercado. Sua candidatura tinha o carimbo de algumas boas intenções: reformas, redução do tamanho do Estado, privatizações, melhores condições para investimentos privados.
Essa cartilha liberal contrastava com o histórico de Bolsonaro como congressista. Mas era politicamente importante para uma candidatura que se propunha como o anti-PT. Ser pró-mercado em 2018 era também ser contra tudo o que deu errado no governo Dilma Rousseff - da política das campeãs nacionais ao controle de preços da energia.
Guedes cumpriu parte importante do seu compromisso como fiador. Montou uma equipe com nomes vindos da iniciativa privada e técnicos respeitados. Construiu uma reforma da Previdência que trouxe uma economia de longo prazo acima do que se imaginava possível. E fez uma pauta com alguns casos de sucesso no Congresso - como a Lei da Liberdade Econômica e o marco do saneamento.
A saída de Salim Mattar (da Secretaria de Desestatização e Privatização) e Paulo Uebel (da Secretaria de Desburocratização, Gestão e Governo Digital) é um momento importante porque não foi explicada por "motivos pessoais" ou a vontade de ir para a iniciativa privada, como em outras baixas recentes. Eles saíram porque suas agendas de trabalho empacaram na política.
Mattar é um empresário de sucesso e tinha a missão de fazer as privatizações do governo. Na campanha, Guedes falou bastante nas cifras bilionárias que seriam trazidas por esse programa e como ele reduziria o endividamento público e, com isso, os juros. Deixando de lado o exagero, as privatizações trariam economia aos cofres púbicos e tirariam o governo de maus negócios. Uma das peças mais importantes seria o processo de desestatização da Eletrobras, que tem oposição forte no Congresso.
Uebel também veio da iniciativa privada e tem experiência de gestão. Sua missão era continuar uma pauta antiga em Brasília, a desburocratização. Estava sob sua secretaria o cronograma de implantação da Lei da Liberdade Econômica e a reforma administrativa, que mexeria com a estrutura de pessoal do setor público. Essa reforma foi barrada pelo Palácio do Planalto.
Quem conhece um pouco de mercado imobiliário sabe que a posição de fiador nunca é confortável. Ele responde por ações que não estão sob seu controle e é lembrado no pior momento, a hora de pagar pelo calote de quem estava avalizando. A sensação que fica é a de que tanto Mattar quanto Uebel não quiseram assumir a conta do calote político do governo Bolsonaro com a turma liberal.
Desde o início, o governo ficou marcado pela existência de alas. Liberais na economia, militares na infraestrutura e coordenação política, ideólogos em pastas sensíveis na "guerra cultural" e agora o Centrão buscando seu espaço. Um dos atritos claros desse modelo foi entre liberais e militares, algo que ficou escancarado no desconforto de Paulo Guedes na apresentação do plano de investimentos que a ala militar gostaria de ver implementado - na época chamado de Plano Marshall, em referência ao plano de reconstrução da Europa no pós-guerra.
A pressão pelo aumento de gastos é grande, especialmente vindo do Centrão e de parte da ala militar. A equipe econômica tem alertado para a importância de se manter de pé o teto de gastos, algo legítimo quando se olha o histórico da gestão pública brasileira. Aqui está um ponto que parece ser o limite de Guedes: sem o controle fiscal no pós-pandemia, seu papel no governo deixará de fazer sentido.
A pandemia certamente é um fator que dificulta o trabalho da equipe econômica. Além de parar por alguns meses a pauta de reformas, ela teve de priorizar uma revisão dos benefícios assistenciais, inclusive com o risco de aumento da carga tributária se o caminho escolhido for buscar a receita com a nova CPMF para custear o Renda Brasil.
Ao mesmo tempo, a pauta de Guedes apresentou uma dificuldade clara de conexão com o mundo político, inclusive com o presidente Bolsonaro. A reforma da Previdência caminhou lentamente no início e foi bombardeada por declarações de Bolsonaro que davam a entender que ela seria menor do que se esperava. Só voltou a caminhar com celeridade depois que Guedes acertou os ponteiros com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Essa falta de conexão fica clara também na reforma tributária, na qual Guedes insiste em incluir uma nova CPMF. A proposta carece de detalhamento e é vista com ceticismo no mundo político. Outro episódio recente foi a entrada tardia da equipe econômica no debate sobre o Fundeb, no qual o governo tentou incluir uma regra estranha para uso de recursos e, no fim, acabou cedendo com a inclusão de mais verbas do que gostaria. Quase igual à forma como o auxílio emergencial chegou a R$ 600 - a reboque do Congresso, a equipe econômica topou um valor maior para ter a última palavra.
Diante da realidade política, a pauta liberalizante adquire seu tamanho real. É difícil privatizar uma estatal com várias subsidiárias e centenas de cargos apontados por políticos. Tirar as amarras do Estado e sua infinidade de normas, benefícios e exceções mexe com lobbies que cresceram junto com esse modelo mastodôntico - grupos que vão de sindicatos a grandes empresas.
Os acenos no presidente Jair Bolsonaro não ajudam. Ao mesmo tempo em que faz declarações de apoio ao teto de gastos e às privatizações, tem na cozinha do Planalto um grupo que pressiona por gastos e não quer nem ouvir falar em reforma administrativa.
Se resistir, Guedes provavelmente terá de colocar seu choque liberal de lado e focar na pauta de pequenas reformas setoriais, como a lei de cabotagem e o marco regulatório do setor de gás, aceitando que o Congresso faça a reforma tributária que quiser. Umas poucas privatizações talvez saiam até 2022, mas nada que chegue perto das "joias da coroa", como gostaria Salim Mattar. E, com sorte, as mudanças no teto de gastos fiquem para um próximo governo. Olhando em retrospecto já será bastante em um país onde o liberalismo chegou por vias tortas.
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