É simbólico que o presidente Jair Bolsonaro fosse o brasileiro mais aguardado no Fórum Econômico Mundial, enquanto a estrela do país em encontros anteriores, o ex-CEO de Nissan e Renault Carlos Ghosn, está preso no Japão por suspeita de fraude fiscal. Os dois são, de certa forma, representação de um mesmo fenômeno construído com a ajuda dos “homens de Davos”, a cidade suíça onde ocorre o encontro anual da elite do capitalismo global.
A expressão “homem de Davos” foi cunhada em 2004 pelo cientista político Samuel Huntington, que se referia a uma elite de CEOs, representantes de think tanks, ONGs, artistas e afins que seriam empoderados pelo fenômeno da globalização. Esse homem (a referência masculina é proposital, já que as mulheres são minoria no encontro) está desconectado do que o autor chamava de lealdade nacional. Pouco mais de uma década depois, vimos os efeitos desse confronto entre laços globais e lealdade nacional nas eleições dos Estados Unidos e no Brexit, para ficar nos dois exemplos mais óbvios.
Há tempos analistas chamam a atenção para o distanciamento de Davos. O encontro tem uma boa causa de fundo e, na prática, uma dose elevada de hipocrisia. É ali que o cantor Bono Vox participou de vários painéis sobre redução da pobreza, sem contar como ele mesmo usa paraísos fiscais para pagar menos impostos.
A globalização tem o efeito construtivo de permitir mais trocas, acesso a mercados, resultando no crescimento de países em desenvolvimento. Nos últimos 30 anos, vimos a emergência dos Tigres Asiáticos, da China e de parte da América Latina. A desigualdade de renda global nunca foi tão baixa na história recente. Calcula-se que cerca de 1 bilhão de pessoas deixaram a condição de pobreza extrema no processo.
A ideia de liberalização econômica foi um componente importante nesse processo. Mas ela também encobertou pontos que não estão na cartilha liberal. A concentração de poder econômico em um número pequeno de empresas e a formação de monopólios globais, mesmo em indústrias nascentes, são efeitos colaterais indesejados. Sem falar na construção de um sistema financeiro que, quando quase levou o mundo para o buraco e foi salvo por governos nacionais, continuou pagando seus bônus milionários. E que deu aos mais ricos a chance de esconder seus patrimônios do pagamento dos impostos devidos.
O brasileiro Carlos Ghosn se tornou uma representação dessa dicotomia. Conhecido como “cost cutter”, o redutor de custos, ele transformou a Nissan de montadora problemática em uma das mais eficientes do planeta. Construiu a aliança que engloba Renault e, mais recentemente, a Mitsubishi. Ele soube aproveitar a onda da globalização para criar um grande grupo global. Mas, segundo autoridades japonesas, também caiu em um vício comum das estrelas corporativas do século 21, a fraude fiscal.
Jair Bolsonaro ganhou as eleições com um discurso dúbio sobre a globalização. Ele disse que quer fazer comércio com o mundo, sem olhar para questões ideológicas. Ao mesmo tempo, ele criticou o que chama de globalismo, representado por entidades internacionais. A ideia do bolsonarismo parece ser a do nacionalismo aberto para negócios: contra a imigração, avesso a acordos na área de direitos humanos, pronto para acordos comerciais vantajosos. Não combina com a pauta de Davos, que se concentra em coisas como aquecimento global, diversidade e tecnologia. Lá, o politicamente correto é protagonista.
Desde a campanha, Bolsonaro tem sido colocado pela imprensa internacional ao lado de populistas como Donald Trump e Giuseppe Conte, o primeiro-ministro italiano do Movimento 5 Estrelas. Isso o torna mais um argumento para que a elite do capitalismo global pense melhor nos rumos que decidiu dar à economia. A estagnação na renda e degradação do emprego em algumas regiões do mundo desenvolvido provocou reações políticas. Além disso, a forma como os governos foram chamados a salvar o sistema financeiro e, ao mesmo tempo, a corrida para paraísos fiscais em busca do menor imposto, aceleraram a aversão das pessoas comuns ao “homem de Davos”.
Visto de dentro do Brasil, Bolsonaro é um fenômeno com nuances próprias. Sua candidatura foi alavancada pelo antipetismo e pelo discurso contra a corrupção. Seu nacionalismo está antes contra a internacional comunista do que contra as mazelas do capitalismo global – a raiva aqui é contra o “homem da mala” e não o “homem de Davos”. Mas há coisas em comum: uma classe média financeiramente espremida, a desindustrialização do emprego e a frustração diante do sucesso de umas poucas pessoas. O povo entende que não é só uma questão de força de vontade para você se tornar Carlos Ghosn.