O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional, Felipe Santa Cruz, diz que vai à guerra contra a reforma tributária. Ele acusou o governo de estar atuando como um Robin Hood ao contrário, tirando dinheiro da classe média para dar para os ricos. A reação de Santa Cruz não é surpreendente e mostra por que discutimos essa reforma há duas décadas e nada mudou de fato.
Ninguém paga impostos por patriotismo. Essa é uma questão de dinheiro na conta e, por isso, a tendência natural dos sistemas tributários é descambar para o corporativismo. Não podemos dizer que o Brasil tem um sistema político exatamente avesso à influência de grupos de pressão e o resultado é que os impostos aqui são complexos e cheios de exceções.
Temos na mesa três propostas de reforma tributária e todas têm o mesmo sentido: unir tributos, especialmente os que incidem sobre consumo, e equalizar as alíquotas. O que a proposta do governo apresentada pelo ministro Paulo Guedes adicionou aos dois projetos que estão no Congresso foi apoio. A unificação de PIS e Cofins já estava no centro do debate, que envolve também IPI, ICMS, ISS (todos presentes nas propostas que estão na Câmara e no Senado).
O apoio da equipe econômica à reforma tornou mais tangível a profundidade das mudanças e o preço que deverá ser pago por quem hoje é beneficiado pelas exceções do sistema. PIS e Cofins são impostos com mais de 100 regimes especiais, têm um contencioso bilionário na Justiça e trazem características bastante ruins: se acumulam nas cadeias produtivas (embora exista a possibilidade de compensação de créditos, ela é imperfeita) e não oneram todos os produtos e serviços da mesma forma.
O sistema de tributação do consumo no Brasil foi montado para uma realidade diferente da atual, em que indústria e comércio eram a maior parcela do mercado. Em uma economia de serviços, faz sentido uma equalização da carga tributária: serviços pagam mais, indústria paga menos, tornando as decisões econômicas menos distorcidas.
Em resumo, se o país evoluir mesmo para um imposto único de valor agregado (um IVA que englobaria PIS e Cofins), qualquer serviço seria tributado com a mesma alíquota que um produto. A justiça também seria feita dentro dos próprios setores, já que há produtos e serviços que pagam mais ou menos impostos hoje devido aos inúmeros regimes especiais.
A proposta do governo dá uma pista de que essa alíquota única não vai ser baixa. Só para unificar PIS e Cofins, a União está pedindo 12%. O número precisa ser melhor explicado, mas pode ter sido uma estratégia do governo federal para negociar no Congresso sua parcela no IVA. A proposta de imposto único que está na Câmara destinaria entre 9% e 10% para a União de uma alíquota de 25%.
O receio com o aumento da carga tributária geral do país nesse debate é genuíno. Não seria saudável começar a reforma tributária com um aumento de carga, especialmente sobre o consumo. Idealmente, a reforma deveria entregar no longo prazo um rebalanço também entre impostos, taxando mais a renda e menos o consumo.
Mas não é desse receio de que fala o presidente da OAB ao dizer que a classe média vai pagar a conta. A questão que incomoda a entidade (e outras no setor de serviços, que também estão se posicionando contra a reforma) é que seus impostos subirão para que outros segmentos paguem menos - a equipe econômica prepara uma lista com os beneficiados pela mudança no PIS/Cofins para reforçar esse lado do debate.
O ponto central aqui é entender que o IVA é um tipo de imposto neutro entre firmas. Do ponto de vista do consumidor, o produto ou serviço que ele compra é tributado exatamente pela alíquota aplicada, independente do número de etapas no processo produtivo. Isso porque são gerados créditos no meio do caminho com o IVA pago por fornecedores. Assim, um carro (com cadeia longa) seria tributado da mesma forma que um serviço sem cadeia de fornecimento.
Essa característica é ótima para uma maior especialização e sofisticação da economia e se soma à neutralidade entre produtos. Se a alíquota final de perfume e água de colônia for a mesma, uma empresa terá só a preferência do consumidor como estímulo para produzir mais de um produto ou de outro. O exemplo anedótico do perfume é real existe aos milhares no sistema tributário brasileiro.
A posição da OAB não é uma surpresa, portanto. E vai ficar ainda mais aguerrida se a reforma tributária for para valer e chegar a outros benefícios que existem no país. Por uma ironia, advogados são o exemplo preferido do ex-ministro da Fazenda Armínio Fraga quando ele fala sobre a distorção dos impostos no Brasil. A categoria foi admitida no Simples Nacional em 2014, o que permite uma redução bem significativa no Imposto de Renda (a frase de Fraga em um evento no ano passado foi a seguinte: "R$ 4,8 milhões é dinheiro e 4% de IR é um desaforo"; o tema foi tratado por ele em um artigo disponível aqui). Detalhe: a proposta de Guedes não atinge o Simples. Faça a conta.
A oposição de prestadores de serviços à implementação do IVA é uma oportunidade para que a reforma tributária vá mais longe e abrace também outros três temas: maior tributação da renda (no lugar de produtos e serviços), oneração de dividendos (no lugar do Imposto de Renda Pessoa Jurídica) e redução de benefícios fiscais (entre eles, o Simples).
Não sei por que uma máquina de lavar roupa automática paga o dobro de IPI de uma não automática. Alguém deve ter imaginado que faria um bem à sociedade ao cobrar 20% de IPI para uma modernidade dessas, que é só um exemplo pequeno de como o discurso de que a reforma prejudica a classe média é enviesado. Um sistema com menos exceções tem alíquotas médias mais baixas, melhora a alocação de recursos, gera riqueza e conforto para mais pessoas.
A maluquice do sistema tributário brasileiro é uma das razões para o baixo crescimento econômico e, consequentemente, pequena densidade da nossa classe média. Não é ela que vai ser prejudicada por uma reforma profunda nos impostos.
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