A neta de um dos fundadores da Disney, Abigail Disney, virou notícia nos Estados Unidos na última semana ao fazer uma série de publicações no Twitter reclamando do contracheque do CEO da empresa, Bob Iger. Na terça-feira (24), ela voltou a tocar no assunto em um artigo para o jornal The Washington Post, no qual diz considerar indecente o fato de Iger ter recebido US$ 65 milhões no ano passado, 1,4 mil vezes mais do que o salário médio dos funcionários da companhia.
Abigail é neta de Roy O. Disney, que fundou a companhia com seu irmão Walt em 1923. A herdeira não tem funções na empresa e diz manifestar sua opinião, e não a da família. A crítica ocorre no contexto de um corte de impostos que beneficiou grandes empresas nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que há um debate forte sobre o salário mínimo pago no país.
No ano passado, grandes corporações americanas foram beneficiadas com um corte em impostos que inflou o retorno para acionistas e executivos. Em muitos casos, o caixa extra foi usado para a recompra de ações, o que eleva preços e beneficia acionistas e executivos (que comumente recebem parte do pagamento na forma de ações). Em seu artigo, Abigail destaca que a própria Disney usou US$ 3,6 bilhões para a recompra de ações, enquanto gastou somente US$ 125 milhões para conceder um bônus de US$ 1 mil para seus funcionários.
A crítica da herdeira da Disney toca em outro ponto delicado para grandes companhias nos Estados Unidos: o salário mínimo. Várias delas resistem à aprovação de leis que elevem o salário mínimo – como ocorreu em 2018 na cidade californiana onde a Disney mantém um de seus parques. O mínimo nacional de US$ 7,25 a hora está bastante defasado (não sobe desde 2009), o que tem levado sindicatos a pressionarem empesas, cidades e municípios a adotarem mínimos mais altos.
O debate sobre a diferença entre os salários de executivos e outros funcionários ficou acirrado depois da crise de 2008, quando foram pagos bônus para ex-executivos de empresas que haviam sido resgatadas pelo governo americano. Dados coletados pelo Economic Policy Institute mostram que atualmente os CEOs das grandes empresas dos EUA ganham em média 300 vezes o salário médio de seus funcionários. Esse número era de 20 vezes nos anos 60.
A ascensão de CEOs com salários estratosféricos começou nos anos 90 e é uma característica da atual fase da vida corporativa global. Os conselhos das grandes companhias defendem que esse pagamento é necessário para gerar valor aos acionistas, já que os resultados das empresas dependem em grande medida das decisões de suas lideranças. Mas, ao mesmo tempo, esse é um fator que pode estar elevando a desigualdade e minando a confiança no capitalismo.
Nos Estados Unidos, a desigualdade vem aumentando nas últimas três décadas. A participação do grupo dos 1% mais ricos do país na renda total passou de 11% no início dos anos 80 para 20% atualmente. A participação dos 50% mais pobres caiu de 20% para 13%. E o pagamento de executivos é um dos fatores envolvidos nesse processo.
Mesmo economistas liberais têm se dedicado a falar sobre a desigualdade salarial no mundo corporativo. O prêmio Nobel Angus Deaton, um dos maiores especialistas em desigualdade da atualidade, chama a atenção para o tipo de desigualdade que está associada à injustiça. É o tipo de processo em que a desigualdade não está associada à aplicação do engenho ou empreendedorismo, mas sim à uma ação considerada injusta – como a corrupção. E há, segundo ele, razões para acreditarmos que há, pelo menos nos EUA, processo do segundo tipo associado à distribuição dos resultados corporativos.
Críticas desse tipo estão inclusive virando um gênero de não-ficção. Recentemente, o próprio Deaton fez a resenha de dois livros sobre o assunto. Um deles, com o título de Third Pillar: How Markets and the State Leave Communities Behind, foi escrito por Raghuram Rajan, que leciona no coração da análise econômica liberal, a Universidade de Chicago. Seu argumento é o de que os mercados deixaram de ser um limitador do poder do Estado após o surgimento da social-democracia e, com a chegada da revolução digital, não assumiram o papel de ajudar seus empregados a encarar a mudança tecnológica. No lugar, os mercados passaram a proteger acionistas acima de tudo.
Esse tipo de análise é importante para explicar o momento político. Vozes como a de Abigail Disney podem ser mal interpretadas – não por acaso, há uma aceitação maior do socialismo entre jovens americanos, que não testemunharam a derrocada da União Soviética -, fortalecendo a ideia de que precisamos de um sistema alternativo à economia de mercado. Ao mesmo tempo, as críticas são importantes para que o sistema capitalista recupere sua legitimidade antes que populistas de esquerda ou direita façam estragos irreversíveis.
A pressão tem surtido algum efeito. No ano passado, a Amazon decidiu aplicar um salário mínimo de US$ 15 por hora, um movimento que pode fazer outras grandes empresas a seguirem em breve – a Target, por exemplo, instituiu um salário de US$ 13 logo depois. A própria Disney teve de se adaptar à lei californiana com um salário mínimo maior. Em uma resposta à herdeira, a companhia diz que paga o dobro do salário mínimo nacional e está gastando US$ 150 milhões por ano em inciativas de educação para seus funcionários.
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