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Guido Orgis

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Blog que discute ideias em economia política

O imposto “socialista” da equipe econômica

Máquina de Cartão de Crédito ou Débito
(Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo)

Ninguém duvida do viés liberal da atual equipe econômica liderada pelo economista Paulo Guedes. Por isso é estranho ver como a tese da criação da nova CPMF ganhou corpo na proposta do governo para a reforma tributária.

O novo imposto substituiria a contribuição previdenciária patronal, que hoje é a fonte de financiamento, juntamente com a contribuição do empregado, para a Previdência. Na conta que o próprio governo usa para defender a reforma da Previdência, o déficit é calculado a partir da receita dessas contribuições, menos as aposentadorias pagas. Na prática, há uma conexão entre a contribuição e um benefício concentrado em membros específicos da sociedade - aqueles que se qualificam nas regras definidas em lei.

A ideia de substituição dessa contribuição por um imposto sobre transações financeiras socializa o sustento das aposentadorias. Em uma palestra na última terça-feira (10), Marcelo de Sousa Silva, secretário especial adjunto da Receita Federal, defendeu o imposto sobre transações financeiras justamente por essa característica: "Estamos transferindo o ônus para toda a sociedade", disse.

Essa retórica de que é justo socializar o custo da Previdência é encoberto por um detalhe semântico. O secretário usou o termo "seguridade social" e não Previdência, dando a entender que a nova CPMF só estaria transferindo para toda a sociedade o custo de um serviço que é também prestado a todos. A interpretação muda quando se coloca que é o financiamento da Previdência que está em jogo.

A reforma da Previdência foi feita justamente para "dessocializar" o seu financiamento. Afinal, o déficit é pago por todos os contribuintes, sendo eles beneficiários do INSS ou não. É por esse argumento que se defende o aumento do tempo de contribuição e a retirada de benesses de algumas carreiras públicas. É também esse argumento que permitiu ao relator da reforma no Senado, Tasso Jereissati, retirar benefícios setoriais, como os concedidos à agricultura comercial e exportadora, empresas optantes do Simples e entidades filantrópicas.

Aqui a questão ainda não é sobre qual forma de se cobrar o imposto é mais eficiente, mas sim sobre sua justiça. É muito difícil a um economista liberal defender que a aposentadoria de trabalhadores formais (ou seja, uma parcela que não é a maioria da população) deva ser paga por todos os cidadãos. Milton Friedman, o economista liberal que inspira muitas das ideias de Paulo Guedes, defendia que nem houvesse sistema público de previdência. Para ele, economizar para a velhice era uma escolha pessoal, uma liberdade que o indivíduo não deveria conceder ao Estado.

Friedman tinha uma visão liberal radical e, na prática, influenciou na criação de um modelo de intervenção menor sobre o cidadão - a capitalização adotada no Chile criou poupanças individuais administradas pela iniciativa privada. Hoje sabemos, a partir das pesquisas sobre economia comportamental, que dificilmente a maioria das pessoas tomariam sozinhas a decisão (bastante racional, diga-se) de economizar para a velhice.

Há na visão liberal, portanto, uma conexão entre renda do trabalho e poupança para o futuro. Esse é o cenário ideal, mas ainda inviável no Brasil por causa do custo de um sistema montado sobre a fundação da repartição simples - ou seja, quem está na ativa paga para quem está inativo e, com isso, garante seu direito no futuro. A ligação da renda com o benefício é entre gerações, mas ainda pautada pela renda do trabalho custeando a aposentadoria.

O custo da poupança para o futuro está embutido no custo do trabalho em todo o mundo. O que varia é a forma como a conta é feita. No Brasil, decidiu-se dividir entre um custo patronal de 20% e outro de até 11% para o empregado. Daria no mesmo se fosse 31% retirados do salário do trabalhador. Talvez, se fosse assim, a população teria apoiado antes a reforma da Previdência, já que não é preciso fazer muitas contas para se chegar à conclusão de que é melhor colocar esse dinheiro em qualquer investimento do que deixar para o governo gerir.

O Brasil deveria pensar em uma forma de ir mais rapidamente para um modelo semelhante ao do Chile, inclusive aprendendo com seus erros. A nova CPMF, no entanto, caminha na direção contrária. Se aprovada, ela desconecta completamente a renda do trabalho do benefício previdenciário. Pessoas emprestando dinheiro para pagar uma conta e sem emprego formal, por exemplo, pagariam pela aposentadoria de quem está empregado com carteira.

A equipe econômica tenta vender a versão de que a troca geraria empregos. Isso é possível em setores exportadores, nos quais variações marginais no custo da mão de obra podem melhorar a competitividade. Mas estudos sobre o assunto mostram que os efeitos mais prováveis são um aumento da margem e de salários, em parte para compensar a maior carga tributária em outras frentes.

No Brasil, também seria esperada uma maior formalização do emprego, o que é um efeito que deve ser perseguido. Por isso, a pauta do governo poderia começar com a retirada de penduricalhos da folha de pagamento, como o sustento do Sistema S e o salário educação. Alguma desoneração da folha poderia ser feita também com outros impostos, para alinhar o Brasil à media internacional de tributação - aqui, a ideia é que a formalização melhoraria o financiamento da Previdência no longo prazo.

A pergunta que fica é se um imposto como a CPMF seria o caminho para esse estímulo à formalização. É consenso entre especialistas que este é um imposto de baixa qualidade, cumulativo, que onera operações nas quais não há geração de valor e distorce o uso do sistema financeiro. Ao mesmo tempo, é um tributo muito poderoso para arrecadar, com baixo custo para a Receita Federal, e que pega a economia informal. Ele possivelmente teria um ponto ótimo se aplicado com alíquotas muito baixas (entre 0,08% e 0,1%).

O governo fala em uma alíquota de 0,4% para saques e depósitos em dinheiro, e 0,2% para transações financeiras (créditos e débitos sem uso de dinheiro). A proposta parece tentar penalizar o uso de dinheiro para evitar o efeito da desbancarização - na prática uma operação que precisa ser feita em dinheiro tem alíquota de 0,8%, enquanto no sistema financeiro o custo é de 0,4%. Uma conta alta que seria paga por todos e usufruída por poucos.

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