Na segunda-feira, um juiz de Brasília determinou que o Congresso instaurasse em 30 dias uma CPI para investigar a dívida pública brasileira. A decisão caiu no dia seguinte – era uma clara intromissão indevida do Judiciário no funcionamento do Legislativo e não tinha razão de prosseguir. Mas talvez fosse bom que fizessem de uma vez essa auditoria para acabar de vez com o argumento de que o país precisa revisar a dívida.
Uma CPI poderia “revelar” ao público, por exemplo, que a dívida foi toda contraída pelo governo para pagar déficits naqueles momentos (crônicos, no nosso caso) em que o gastou mais do que arrecadou. E também provaria que essa dívida está em sua maior parte na mão de brasileiros que toparam emprestar para o governo. Muitos deles pequenos poupadores que têm cotas em fundos de investimento ou contas no Tesouro Direto.
O argumento populista em torno da dívida ainda convence muita gente que acha absurdo o governo ter de pagar juros, como se pagar empréstimo fosse errado. A turma da revisão na dívida se divide em diversos espectros ideológicos e tem presidenciáveis na lista – do militante das invasões Guilherme Boulos (do PSTU), que quer o calote, ao senador Alvaro Dias (Podemos), que quer a auditoria da dívida. O que eles não contam é que, se decidir não pagar ou revisar o pagamento de sua dívida, o governo vai deixar na mão fundos de pensão que pagam aposentadorias, empresas que têm recursos investidos, e poupadores. Bancos também podem sair perdendo, o que não é exatamente uma boa notícia, já que a quebra do sistema financeiro deixaria ainda mais gente na mão.
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A dívida pública se tornou um daqueles mitos que circulam entre a população e são aproveitados por políticos oportunistas. Eles dizem que o endividamento é uma caixa-preta, que seu cálculo é feito sem acompanhamento, beneficiando estrangeiros, e que há a nefasta incidência dos juros compostos.
O juiz que deu a ordem para a criação da CPI ecoou outros argumentos, como o fato de haver contingenciamento de gastos públicos e até propostas para se reformar a Previdência por causa da dívida. Dá a impressão de que falta dinheiro para a saúde porque pagamos muitos juros.
Essas são ideias tão sedutoras para o populismo quanto simplistas. Todo título público (que é o registro da dívida) é um contrato. Ele tem duas partes, o emissor (governo) e o comprador, que concordam com seus termos, que variam um pouco com cada título, mas são em resumo uma promessa de pagamento de juros dentro de determinado prazo. Não pagar um título significa romper um contrato – no qual está escrito que a forma de cálculo é o juro composto. E aqui a polêmica é em torno do que diz a Constituição, em um artigo que poderia acabar com o sistema financeiro se fosse seguido à risca. A prática dos juros compostos é universal e beneficia até quem deposita o dinheiro na poupança ou tem recursos no FGTS.
A ideia de que há uma caixa-preta também não cola na realidade. O Tesouro Nacional publica os dados sobre a dívida pública. Claro que não cabe ao Tesouro dizer quem comprou qual título, por uma questão de sigilo fiscal – a obrigação dos detentores é fazer a declaração dos títulos como um bem ou direito no Imposto de Renda.
Por último, os defensores da “auditoria cidadã” não explicam como funciona o orçamento público. Todos os gastos são realizados antes do pagamento dos juros da dívida. Ou seja, o governo realiza seu orçamento de receitas e despesas antes de pensar na dívida, o chamado resultado primário. Se esse resultado é superavitário, o governo consegue abater parte da dívida. Se for deficitário, ele aumenta a dívida (para além dos juros daquele ano).
O estoque de dívida em relação ao PIB é o resultado dessa dinâmica. Quando aumenta muito, o estoque pressiona os juros, já que o mercado desconfia da capacidade do país de pagar a dívida no longo prazo. No momento, o Brasil tem o maior endividamento bruto entre os países emergentes. Por isso, economistas defendem que se busque um superávit primário nos próximos anos para se estabilizar a dívida e controlar os juros. Como? Com um ajuste fiscal que envolva reformas profundas, como a da Previdência. Não fazer esse trabalho significa deixar o gasto público crescer indefinidamente, gerando mais déficits e fazendo a dívida crescer a ponto de realmente o país ter de buscar uma renegociação.
Todos os processos de renegociação de dívida são traumáticos. Grécia e Argentina são casos recentes em que houve uma recessão profunda por causa desse processo. O Brasil passou por isso nos anos 80 e um dos efeitos colaterais foi uma hiperinflação que atormentou o país durante anos. Pouca gente lembra que, ao mesmo tempo em que formulava o plano real, a equipe do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, conseguiu fazer um acordo para colocar em dia um calote dado nos investidores nos anos 80. Quem negociou foi o futuro ministro Pedro Malan.
Quanto deve o governo? São R$ 5,1 trilhões em dívida interna e R$ 129 bilhões em dívida externa. Não podemos culpar, portanto, os estrangeiros pelos juros que pagamos. Nem achar que revisar a dívida é um atalho para um país melhor.