O ano passado foi o mais importante para as privatizações em uma geração. Essa é uma interpretação um pouco diferente da maioria dos balanços sobre o andamento da agenda de privatizações do governo federal. O início dos grandes leilões de saneamento passou batido, talvez por não depender inteiramente de Brasília.
É verdade que a expectativa criada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, durante a campanha eleitoral de 2018 leva a uma interpretação enviesada do que aconteceu de fato. Não vimos nenhum mastodonte federal indo para a iniciativa privada nos últimos três anos. O governo promete andar com a venda dos Correios e da Eletrobras em 2022, apenas.
Mas 2021 foi tão importante quanto o momento 1997-1997, quando vimos a Vale e, depois, o sistema Telebrás passando para a iniciativa privada. No futuro, vamos lembrar do ano passado como o momento em que o país chamou a iniciativa privada para universalizar o acesso a água e esgoto tratados. Sim, por uma escolha histórica, temos no Brasil mais pessoas com celulares na mão do que com água limpa para beber.
A privatização na área de saneamento será um híbrido da saída do governo do setor de mineração com seu recuo em telefonia. Vai levar tempo, porque são muitas empresas estatais prestando serviços em regiões de concessão espalhadas pelo país, como era na mineração e siderurgia. E vai ser sentida na vida de pessoas que estavam excluídas da prestação de um serviço essencial, como na telefonia.
Em 2021, foram contratados mais de R$ 40 bilhões em investimentos. O leilão mais importante foi a concessão de áreas antes atendidas pela Cedae no Rio de Janeiro. Esse é um caso emblemático da incapacidade do setor público em prestar o serviço porque tem um imenso cartão-postal na poluição da Baía da Guanabara. Era para estar limpa para a Olimpíada de 2016. Mas os bilhões de reais direcionados para o projeto não foram suficientes.
Quebrado financeiramente, o Rio de Janeiro teve de aceitar abrir mão da Cedae ainda durante o governo Michel Temer. O dinheiro da privatização ajudaria a pagar pela ajuda extra concedida pela União. Os R$ 20 bilhões arrecadados pelo Rio ainda não chegaram a Brasília e o estado negocia um plano de reestruturação que mais aumenta gastos do que faz ajuste fiscal. O combinado às vezes sai caro.
Além do Rio, foram feitas concessões em Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Amapá no ano passado. Para este ano, o principal projeto deve ser a privatização do serviço em Porto Alegre (RS). Há estudos avançados também no Ceará e projetos de viabilidade sendo feitos na Paraíba, Sergipe e Rondônia. O BNDES assumiu o papel de modelar vários desses projetos, saindo da função de apenas financiar obras.
É provável que neste ano também se formem vários consórcios regionais de municípios, uma novidade trazida pelo Marco Legal do Saneamento aprovado em 2020. É essa regulamentação que deu suporte à entrada de mais capital privado no setor e que deve acelerar projetos ao longo dos próximos anos.
Pelo Marco, os municípios precisam licitar o serviço de saneamento. Os contratos atuais não podem ser prorrogados e, ao mesmo tempo, precisam ser conduzidos por empresas com capacidade de universalizar o atendimento com água tratada e expandir fortemente o tratamento de esgoto na próxima década. Dezembro do ano passado foi o prazo final para essa comprovação - estudo da GO Associados mostrou que pelo menos dez companhias estaduais não tinham capacidade financeira para lidar sozinhas com as exigências da lei.
Ao longo dos próximos anos, haverá dezenas de licitações e as estatais terão de ir ao mercado procurar por dinheiro privado. Algumas serão vendidas. Outras vão encolher. Poucas, já bem geridas e capitalizadas, vão ganhar terreno.
O atraso do Brasil na área de saneamento só pode ser creditado a um fator: incompetência do setor público, que sempre concentrou a gestão sobre o que é um monopólio natural. Redes coletoras de esgoto são enterradas e a poluição dos rios muitas vezes não é vista pelo eleitor. Políticos preferem coisas mais vistosas, como asfalto nas ruas.
Atualmente, segundo o Instituto Trata Brasil, 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada e 100 milhões não têm acesso a coleta de esgoto. Doenças provocadas por água suja levam ao internamento de mais de 270 mil pessoas por ano. E há uma enorme desigualdade regional na prestação do serviço: grandes cidades de São Paulo e Paraná estão muito mais próximas da universalização do serviço do que outros estados.
E as outras privatizações?
Em 2021 houve também outros três marcos importantes para a infraestrutura, essas sim na mão do governo federal. A Infraero saiu de mais 22 aeroportos, que vão receber R$ 6 bilhões em investimentos. Foi aprovado o leilão da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), que deve ser o primeiro do tipo no país. E o projeto de capitalização da Eletrobras.
Esse último caso vem sendo vendido pelo governo com a maior privatização de fato, aquela para Paulo Guedes colocar na parede do escritório, mas não é tão simples. O primeiro passo é uma capitalização que apenas reduz a participação da União. Além disso, o projeto da Eletrobras incluiu uma série de penduricalhos que são antes intervenção do governo para ajudar redutos políticos do que itens que deveriam estar em uma privatização séria.
De qualquer forma, é provável que entre mais capital privado na Eletrobras e que sua governança avance para ficar mais próxima do que vemos no setor privado. O risco de o processo de privatização real ficar pelo caminho, no entanto, é bastante elevado.
No fim deste ano, Paulo Guedes não terá um trilhão em privatizações sobre o qual fazer propaganda. Nem deveria. A desestatização da economia é um processo longo, que começou com os aprendizados dos anos 90 e ressurgiu de forma organizada no fim do governo Dilma. Serão necessários mais muitos anos de insistência para avançar nos estados, ainda muito resistentes a perderem o poder local, sobre as "vacas sagradas" do setor público federal: Petrobras, Caixa e Banco do Brasil.
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